A genialidade de uma fotógrafa acidental

“As mulheres de Maria Lamas” em exposição na Fundação Gulbenkian

A genialidade de uma fotógrafa acidental

O átrio da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian recebe, até final de maio, As mulheres de Maria Lamas, uma exposição que mostra, pela primeira vez em Portugal, a obra fotográfica da notável jornalista, escritora, tradutora e lutadora pelos direitos humanos e cívicos em tempos de ditadura. Com curadoria de Jorge Calado, a exposição assinala os 75 anos da obra As Mulheres do Meu País, um marco monumental do jornalismo e literatura portugueses do século XX.

Maria Lamas (1893–1983) terá sido, porventura, uma das mais notáveis mulheres portuguesas no século XX. Apesar de perdurar uma certa memória da sua afirmação e ação políticas enquanto militante comunista durante o Estado Novo e do seu “autoexílio” em Paris, a verdade é que a sua obra literária e jornalística se encontra praticamente esquecida, com muito poucos dos seus livros disponíveis no mercado. Ainda menos lembrada, a sua faceta de fotógrafa, impressionante mesmo, como refere Jorge Calado, “pela tão grande quantidade de obras-primas” num espólio tão curto.

“Extraordinariamente modernas”, as fotografias de Maria Lamas nunca haviam sido expostas em Portugal, sendo agora o foco desta exposição. As Mulheres de Maria Lamas reúne uma seleção de 65 das fotografias que captou, essencialmente, nos meios rurais da zona centro do país.

Testemunhos exemplares da condição das mulheres portuguesas durante a ditadura salazarista, maioritariamente provas vintage (da época), de pequenas dimensões, mas também algumas ampliações, a exposição exibe ainda provas da época de outros fotógrafos, como Adelino Lyon de Castro, Artur Pastor ou Maria T. Mendonça, incluídas, a par das de Lamas, em As Mulheres do Meu País, obra publicada pela primeira vez em fascículos entre 1948 e 1950.

Apesar do elenco de ilustres fotógrafos que figuram no livro, as fotografias de Lamas destacam-se pela sua verdade e vivacidade, constituindo por si só uma obra absolutamente singular na história de fotografia portuguesa. Surpreendentemente, ela tornou-se fotógrafa de um modo quase acidental, imbuída do seu espírito de lutadora militante e opositora ao regime. “Nunca tinha fotografado e usa a máquina mais elementar que existia, o modelo caixote da Kodak, que não dava possibilidade de focar”, lembra Calado a esse propósito.

Além das imagens, expõem-se ainda objetos pessoais de Maria Lamas, bem como o seu retrato pintado por Júlio Pomar, em 1954, e o busto em gesso esculpido, em 1929, por Júlio de Sousa. A secção destinada à obra literária e jornalística inclui exemplares de primeiras edições de obras fundamentais da autora, nomeadamente no campo da literatura infantil, da poesia e da ficção, traduções de clássicos da literatura juvenil e algum jornalismo.

Embora aqui esteja no papel de curador, o professor Jorge Calado não esconde o lado emocional com que projetou esta exposição. Para si, Maria Lamas é uma “heroína”, “a mais notável mulher portuguesa do século XX”, jamais deixando de sublinhar “a genialidade” na obra e na vida. “Desde menino que a admiro. E, à medida que fui crescendo, ela tornou-se numa heroína ainda maior, muito devido à sua oposição à ditadura”, diz, acrescentando que, “por outro lado, também a admiro muito por ter sido uma mulher generosa e amorosa nas suas relações, não só com a família como com os amigos. Ela era uma pessoa admirável, sempre pronta a ajudar os outros.”

Por isso, a exposição procura “revelar uma faceta relativamente desconhecida de Lamas, bem como homenagear a mulher que foi”. “Maria Lamas lutou por libertar as mulheres, não como mulheres, mas como cidadãs e como seres humanos. Não se tratava dos direitos da mulher, mas dos direitos humanos”, acrescenta.

As Mulheres de Maria Lamas está patente ao público até 28 de maio.