A morte ainda lhes fica tão bem

"It's not over until the soprano dies", uma ópera da Mala Voadora no Teatro São Luiz

A morte ainda lhes fica tão bem

Da Butterfly de Puccini à Carmen de Bizet, incontáveis são as heroínas do reportório operático dos últimos séculos que perdem a vida. A Mala Voadora compilou quase três dezenas de árias de ópera onde acontecem femicídios e criou It´s not over until the soprano dies, uma ópera "perversa", plena de mulheres que morrem sob a beleza do virtuosismo musical.

“Não quisemos entrar numa lógica de festival nem de best of sobre em qual ópera se morre mais ou se jorra mais sangue”, esclarece o encenador Jorge Andrade. O mote para It’s not over until the soprano dies foi olhar para “esta coisa algo perversa de, no final de tantas óperas, quando as mulheres morrem, o momento ser dos mais belos, quer ao nível do virtuosismo das intérpretes, quer da composição musical.”

A sustentar esse momento pleno da sedução operática, capaz de arrancar fortes emoções e continuados aplausos das plateias há séculos, está um estudo da filósofa feminista Catherine Clément, citado na folha de sala do espetáculo, que sublinha a violência e a crueldade a que são sujeitas as protagonistas femininas para que esse “momento” de beleza aconteça. Segundo um levantamento de Clément sobre o reportório clássico da ópera, “os modos como estas mulheres encontram a morte” são: “nove à facada, das quais duas por suicídio; três queimadas; duas atiram-se; duas por doença; três afogadas; três envenenadas; duas de medo; e algumas de causa desconhecida.”

O que a Mala Voadora faz neste espetáculo é compilar 30 árias de 27 óperas para “partilhar com o espectador o dilema de ter, por um lado, o tratamento a que estas mulheres são votadas nestas histórias, nestes libretos baseados em mitos clássicos ou em romances – sempre refletindo o modo como os homens imaginam as mulheres a acabar – e, por outro lado, o momento que elas proporcionam ao morrer”. Contudo, alerta o encenador, se é legítimo questionarmos como é que ainda hoje “aplaudimos esta violência, jamais foi nosso objetivo estar aqui a sugerir o cancelamento destas óperas.”

Recusando, assim, qualquer “visão panfletária”, até porque o reportório operático se fundamenta em contextos históricos, Jorge Andrade explica que, no espetáculo, “essas árias surgem descontextualizadas da sua narrativa, para tornar ainda mais evidente o sofrimento das mulheres perante a violência da morte”. Ao mesmo tempo, as óperas “saem também do contexto temporal” da sua ação, já que o elenco de cantores e atores se move numa casa dos dias de hoje, onde se preparam refeições, se encetam rotinas quotidianas, como tomar banho, vestir e despir, ou conviver à mesa entre amigos e familiares.

Com arranjos e direção musical de Nuno Côrte-Real, It´s not over until the soprano dies percorre vários séculos de ópera, desde a mais antiga Dido and Aeneas (Purcell, 1688/89) a Lulu (Alban Berg, 1937), dando particular ênfase, naturalmente, ao século XIX. A interpretar as grandes e mortais heroínas estão as soprano Bárbara Barradas, Eduarda Melo, Inês Simões e Joana Seara, e as meio-soprano Cátia Moreso e Patrícia Quinta, acompanhadas pelas vozes masculinas do tenor Marco Alves dos Santos e do barítono Tiago Matos.

Com a Orquestra Metropolitana de Lisboa e as participações dos atores António MV, Carlota Lagido, Cecília Matos Manuel, Danilo da Matta, Francisco Rolo, Jorge Andrade, Mariana Magalhães, Pedro Tavares, Tânia Alves e Vítor d’Andrade, It´s not over until the soprano dies estreia a 12 de janeiro no Teatro São Luiz, estando agendadas récitas no Coliseu do Porto, a 5 de julho, e na cidade de Dresden, na Alemanha, em setembro.