Vasco Wellenkamp

O coreógrafo é agraciado com a Medalha Municipal de Mérito Cultural

Vasco Wellenkamp

Vasco Wellenkamp, 82 anos, é um nome incontornável da dança em Portugal. Bailarino e coreógrafo na época dourada do Ballet Gulbenkian, criou depois a Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo, que segue os mesmos pressupostos de qualidade artística, tendo por finalidade aliar a beleza à emoção. No momento de balanço, por ocasião da atribuição da Medalha de Mérito Cultural da Câmara Municipal de Lisboa, Wellenkamp tempera o desânimo com a esperança de que possa ter mais uma década para continuar a criar a dança.

Que significado tem para si a atribuição da Medalha Municipal de Mérito Cultural que lhe vai ser entregue dia 15 deste mês?

Tem um significado muito particular e muito especial, numa altura da vida em que estou bastante desanimado com a situação dos meus bailarinos, que estão a trabalhar numa espécie de corda-bamba. Não recebermos apoio do Estado, a Direção-Geral das Artes, relativamente à Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo (CPBC), parece exercer uma espécie de censura. Não há vez que nós concorramos que não chumbem a candidatura. Relativamente a esta medalha, sinto-a como uma compensação, para mim e para os meus bailarinos, que me faz sentir muito honrado, muito orgulhoso, embora surja num momento de mágoa.

Que política para a dança podia ajudar a preencher o vazio criado com a extinção do Ballet Gulbenkian em 2005?

A pergunta liga-se a uma das razões essenciais para a existência da nossa companhia. Fui o coreógrafo residente principal do Ballet Gulbenkian mais de 20 anos, e a CPBC seguiu a linha estética do Ballet Gulbenkian. Estamos hoje num momento tão bom como estava o Ballet Gulbenkian quando acabou. Digo-o sem nenhuma pretensão pessoal. Os bailarinos foram muito bem formados, de acordo com o meu estilo e a minha escola que foi o Ballet Gulbenkian. Em 2007, a CPBC foi a Nova Iorque. Tivemos uma crítica no New York Times que dizia que éramos das melhoras companhias que tinham passado naquele ano pela cidade. E Nova Iorque vê tudo…

Se lhe fosse dada a possibilidade de regressar aos seus 20 anos, conseguiria tirar o mesmo partido da vida e da dança, ou até mais?

Fui muito feliz todo o tempo em que estive no Ballet Gulbenkian. Era considerada das cinco melhores companhias europeias. Tivemos um desenvolvimento absolutamente excecional. Os melhores mestres do mundo vieram trabalhar connosco. Se voltasse aos meus 20 anos, talvez tivesse depois optado por aceitar uma proposta que me fizeram para dirigir uma companhia no Brasil.

Quando avalia a prestação de um bailarino, em que é que os seus sentidos reparam em primeiro lugar?

Nós fazemos audições que duram, no máximo, três dias. É muito difícil de avaliar a qualidade de um bailarino em três dias. Ela vai-se revelando de acordo com a inteligência que tem, e com o interesse que manifesta pelo que está a fazer. A avaliação faz-se com o tempo. A primeira coisa que procuro descobrir são as qualidades técnicas e artísticas. Ao fim de seis meses a um ano de estarem a trabalhar comigo, consigo dizer se os quero manter ou não. Não coloco um bailarino em cena sem ter absoluta certeza de que está como quero.

A ideia da dança inclusiva trouxe para esta arte corpos de todos os tipos. Acredita que toda a gente pode dançar num palco?

Não acredito. Não é toda a gente que tem qualidade e inteligência para fazer dança. Muitas pessoas não têm as condições físicas para serem um bailarino. A dança é uma arte tão difícil técnica e fisicamente como o desporto de alta competição. A dança contemporânea que eu faço continua a ter uma forte ligação com a dança clássica. Mas também existe a dança que não dança, aquela que vejo mais como sendo teatro físico.

AmarAmália é das seus trabalhos mais celebrados. Que outro ícone nacional poder-lhe-ia sugerir uma nova criação?

A música é, para mim, a maior de todas as fontes de inspiração. Não encontro outro motivo mais importante do que a música clássica ou contemporânea. Mas fiz também uma coreografia para o centenário da poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen (Em Redor da Suspensão, com Miguel Ramalho). Juntei a poesia dela com estudos e prelúdios de Rachmaninov, e fiz um trabalho de homenagem a Sophia. Usei três poemas ditos, mas não consigo ir mais longe que isto dado não ser um coreógrafo teatral.

O que caracteriza, no seu entender, a identidade da Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo?

O que procuramos na CPBC é, sobretudo, a qualidade artística. A beleza dos pormenores aliada à qualidade dos bailarinos. Somos uma companhia com uma estética ligada à beleza do movimento. Nunca mais esqueci a frase de um escritor polaco que diz: “uma melodia não tem nenhum sentido, no entanto tem sempre qualquer coisa a dizer-nos que não pode ser dita por palavras”. Esta verdade aplica-se à dança. O que sempre procuramos é uma emoção. Somos uma companhia extremamente emocional.

Encontrou em algum dos seus grandes mestres qualidades humanas que iam de par com o génio artístico?

Encontrei sim. Quando fui para a América trabalhei com um dos maiores génios da dança mundial. Uma mulher chamada Martha Graham. Deu origem a muitos coreógrafos, e estudei com ela três anos. Trazia sempre para o estúdio uma frase, uma conversa com as pessoas. As suas coreografias revelam a sua qualidade humana. Mas, na realidade, penso que as qualidades humanas nascem connosco.

O que é que o “bichinho” da dança ainda o leva a fazer no quotidiano?

Nesta fase da minha vida já não dirijo a CPBC. Só lá vou para coreografar, ou então para ver o trabalho que vai sendo desenvolvido. A minha memória está muito cansada, a única coisa em que me sinto completamente à vontade é quando estou a coreografar. Nada me falha, não há nada que não consiga perceber. Já não consigo é fazer, ou mostrar.

Preocupa-se com a posteridade: com o seu legado e os modos como será lembrado?

A dança tem um problema muitíssimo grande. Evolui muito rapidamente e as obras vão ficando para trás, vão ficando esquecidas. Mas eu já cá não vou estar. Já não vou sentir nada. O que sinto hoje é que gostava de viver mais dez anos.