entrevista
João Tordo
"A exposição dos lados mais sombrios e difíceis do ser humano é de onde parte a literatura"
João Tordo comemora 20 anos de carreira literária, uma data redonda que serviu de mote a uma conversa com o autor. Escritor de grande sucesso em Portugal, conta com 20 livros publicados, incluindo 15 romances, três policiais e dois ensaios. Falámos sobre o seu mais recente livro, O nome que a cidade esqueceu, publicado em novembro, sobre as dificuldades do ofício de escritor, a sua relação com os leitores e ainda sobre o processo de ter uma 'voz própria', entre muitos outros temas.
Ao longo destes 20 anos, o que mudou na tua ficção e o quais são os elementos característicos da tua escrita?
Quando eu era adolescente, quem frequentava as livrarias era tendencialmente a classe média, classe média/alta. O livro democratizou-se, e ainda bem, para que todos os portugueses tenham acesso às livrarias e possam comprar livros. Por outro lado, isso também implicou que a literatura se tenha democratizado e encontrado vertentes que são hoje as coisas mais procuradas e que não é bem aquilo que eu faço. Tenho um público muito fiel e os meus livros vendem bastante bem, mas os autores que mais vendem em Portugal nem sequer são autores literários. A minha geração, que apareceu ali na viragem do século (final dos anos 90 e início de 2000) ajudou, de certa forma, a regenerar a literatura portuguesa, que era uma coisa um bocadinho estanque nesses tempos…
“Estanque”?
Tínhamos nomes que eram constantemente os mesmos ao longo de algumas décadas: Saramago, Lídia Jorge, Agustina, José Cardoso Pires, António Lobo Antunes, Vergílio Ferreira… A minha geração (que inclui também o Valter Hugo Mãe, o José Luis Peixoto, a Dulce Maria Cardoso e o Gonçalo M Tavares) foi quase obrigada a fazer qualquer coisa diferente. Era mesmo um requisito que fizéssemos alguma coisa diferente. Se não fosse assim, não havia espaço para nós. Levei muito tempo até conseguir encontrar aquilo a que chamamos de ‘voz própria’, uma coisa que não se sabe definir exatamente o que é, mas que é mais ou menos como a melodia na música. Podes andar vários anos na escola a aprender ritmo e harmonia se quiseres ser compositor ou músico, mas não aprendes o aspeto melódico da música, que é mais ou menos a mesma coisa do que quando dizemos que um escritor tem uma ‘voz própria’. Se eu for a uma livraria e me derem um livro sem que eu consiga ver a capa e o título, e se for o Saramago, eu sei que é o Saramago ao fim de quatro linhas. Ou o James Joyce ou a Virginia Woolf. Porque são autores que têm essa melodia inexplicável, que é uma espécie de figura mistério nesta tríade: temos o ritmo, a harmonia e o elemento misterioso. Estou a comparar com a música porque acho que a narrativa literária tem coisas muito parecidas com a posição em pauta. Coisas que se conseguem aprender na escola e outras que não se aprendem. Às tantas, são coisas que aparecem conforme vais evoluindo. De repente, aquilo aparece, não se sabe muito bem como.
Quando é que te apercebeste disso?
Apercebi-me disso quando estive a estudar nos Estados Unidos. Tinha um professor de Fiction Writing [escrita de ficção], a quem passei um ano a mostrar as coisas que escrevia. Levava pequenos contos, depois o princípio de uma narrativa, depois uma cena de um romance, etc. Ele dizia sempre que gostava ou que se percebia quais eram as minhas influências. Ao fim de um ano e tal, no segundo ano de aulas, levei-lhe uma coisa que tinha escrito e ele disse-me “isto é o princípio do teu primeiro livro. Tudo o resto que tu me trouxeste eu sei o que é. Isto eu não faço ideia do que seja”. Foi aí que percebi o que ele queria dizer. É nesses momentos que percebes que encontraste qualquer coisa que já estava lá, mas que ainda não tinhas capacidade para perceber. A minha tentativa de encontrar essa ‘voz’ foi sendo construída ao longo dos livros e do tempo, e depois os leitores começaram a identificar-me. Não sou um daqueles escritores que escreve para si próprio. Escrever dá muito trabalho, e eu gosto mesmo desse lado de saber o que os leitores acham. Não escreveria 20 livros para mim próprio. Se não tivesse tido feedback e conquistado um segmento de leitores bastante alargado não teria continuado a escrever com tanta energia.
És, de facto, um escritor muito prolífico. Isso deve-se a sentires uma dívida para com os leitores ou às exigências do mercado editorial?
Tenho um amigo que diz que sou compulsivamente criativo. Quando não estou entretido com uma narrativa começo a prestar atenção a coisas que não têm importância nenhuma. Começo a ficar entediado e a aperceber-me de que o mundo não é exatamente como eu gostava que fosse. Começo a prestar demasiada atenção aos vizinhos, ao ruído ou às finanças. Quando estou entretido com um projeto literário desvio a minha atenção para aí e a minha energia está concentrada, o que me deixa pouco tempo para enlouquecer, que é uma coisa fácil de acontecer [risos]. Não só a minha saúde mental está mais saudável quando estou a escrever, mas tenho várias áreas em que vou escrevendo, não é só o romance literário. É também o policial e os ensaios. Há uma gama variada de possibilidades e não sinto propriamente que estou em falta. Há também a questão da sobrevivência…
Já vives dos livros?
O período dos últimos dez anos foi quando me fixei mais obsessivamente na questão de ganhar a vida com os livros, que é um exercício difícil em Portugal. Tem de se trabalhar muito e fazer muitas coisas que são exteriores ao livro: viagens, encontros, sessões, ir ter com os leitores para que eles possam, de certa maneira, conhecer-me. Isso tem sido toda uma experiência passada entre os livros e o exterior. Tenho a noção de que, se quero viver disto, não posso ficar parado muito tempo. Não me posso dar ao luxo de publicar um livro a cada cinco anos. Para já, nunca seria esse tipo de escritor. Não é minha tendência ficar num livro durante cinco anos, não consigo. Preciso de coisas novas, novas situações, novas personagens, novos desafios e, por isso, não é bom para mim ficar muito tempo preso a um livro.
Como é a tua relação com os prémios?
A minha tendência é preocupar-me mais com a escrita. Quando as redes sociais invadiram a nossa vida, comecei a afastar-me porque percebi que me iam roubar muito do tempo que dedico à escrita. Claro que tenho dias em que estou mais atento às redes sociais e outros que estou menos, mas a minha tendência é ir-me afastando e profissionalizar as redes sociais. Aquilo é uma coisa distrativa, que serve para me manter em contacto com as pessoas e sobretudo com os leitores, mas não uso muito de modo lúdico porque me ia roubar o tal espaço para escrever, o que requer muita da minha energia e do meu tempo. Outra coisa que achei interessante com o surgimento das redes sociais foi a mudança no papel da crítica. A crítica tinha um espaço muito reservado na imprensa e tinha muito poder nos anos 1980 e 90. As pessoas iam muito pelo que os críticos diziam. Acho que a crítica até durou mais tempo do que devia ter durado com este poder e foi, entretanto, substituída pelo comentário. Se pensarmos bem, não há diferença nenhuma entre alguém que sabe muito de livros e que escreve no Expresso ou no Público e um tipo que sabe muito de livros e que escreve no Facebook. A verdade é que, grande parte das pessoas que escreve sobre aquilo que eu faço, não sabe muito bem o que está a dizer porque não é uma prática que grande parte dos críticos conheça ou tenha. A prática da narrativa enquanto ofício demora décadas a aprender. Essa é uma das coisas que acho engraçada e curiosa acerca do mundo de hoje. Devo ser, provavelmente, o autor português que foi mais vezes finalista dos prémios todos. Fui finalista para aí umas 20 e tal vezes, portanto já estou habituado a não ganhar prémios [risos]. Há coisas que não conseguimos combater, como estar agrupado contra bestsellers que, muitas vezes, nem pertencem à mesma categoria do que o que eu faço. Muitos são autores de autoajuda, por exemplo, não tem nada a ver com a minha escrita. Acho que em Portugal faz falta uma divisão das categorias. Claro que estou muito grato pelo Prémio Saramago que, em Portugal, é o único que abre muitas portas e que dá uma grande visibilidade. O facto de o ter recebido quando o Saramago ainda estava vivo foi uma grande recompensa. Era uma pessoa de quem eu gostava muito, adoro os livros dele. E o Prémio Fernando Namora, em 2021, também veio dar uma ajuda, mas já são muitos mais os prémios que não ganhei do que aqueles que ganhei.
Tens uma relação muito próxima com os leitores. O que retiras dessa cumplicidade?
Acho que aprendo muito com eles. Por exemplo, os dois livros de ensaios que publiquei nasceram dos meus diálogos com os leitores. De ir às bibliotecas, às escolas e a sessões pelo país fora. De conversar com as pessoas e perceber quais são as curiosidades delas em relação àquilo que faz um escritor. Essa curiosidade levou-me a fazer uma série de perguntas. ‘Porque é que escreve?’ é das perguntas que mais me fazem e é uma pergunta estranha, mas muito curiosa. Acabei por escrever dois livros de ensaios muito inspirado pelas perguntas e pelas conversas que fui tendo com os leitores ao longo do tempo e as preocupações parecem ser sempre as mesmas. São as pessoas que leem os meus livros, que gastam dinheiro a comprá-los e por isso devo-lhes essa atenção. A minha dívida de gratidão não é com os académicos nem com os críticos, é com os leitores. Claro que cada um faz a sua parte, mas quem sustenta aquilo que faço são os leitores. Sempre que posso vou tentando pagá-la estando próximo. A escrita exige muito de mim e da minha atenção. Uma das coisas mais tranquilizadoras acerca do processo de escrever e de envelhecer com isso, e de já estar nisto há um tempo considerável, é que, nos primeiros anos, estava sempre em constante dúvida sobre o que estava a fazer porque ainda não compreendia. Uma das vantagens de ter escrito estes livros todos e de escrever algumas partes de livros que não foram publicados é que, essa experiência, levou-me a um lugar em que eu compreendo o que estou a fazer. Essa compreensão é uma grande ajuda. Posso sentar-me à secretária e pode correr mal, pode ser algo de que às tantas me desinteresso ou vai por um caminho que não era o que eu queria… isso às vezes acontece, derrapo e escrevo 50 ou 100 páginas e o texto fica guardado no computador e nunca mais pego nele, mas eu compreendo. Esta compreensão demora muito tempo a chegar, mas quando chega é uma grande ajuda. Sento-me ao computador e conheço o ritmo e a harmonia, sei o que estou a fazer. Pode correr mal, mas sei. De tal maneira que já não consigo não fazer aquilo.
O que acontece a esses textos? Ficam esquecidos no computador sem terem uma segunda oportunidade?
Por exemplo, quando me pedem um conto, por vezes vezes descubro que essas experiências fracassadas lhe podem dar resposta. Vou lá, corto e limo. Nunca houve nenhuma ocasião em que eu tivesse começado a escrever um livro, escrevesse 100 páginas, desistisse e depois voltasse lá. Nunca sucedeu.
O teu mais recente livro, O nome que a cidade esqueceu, volta a ser escrito no feminino. Como resumirias este livro?
Inspirei-me num artigo que li no New York Times sobre um homem que foi encontrado morto pelos vizinhos. A história despertou a minha curiosidade. Vou guardando estas notícias pela casa e de vez em quando vou pensando nelas. No final de 2019 comecei a escrever o livro. Normalmente junto duas coisas que não têm união possível. Neste caso também me lembrei de uma história que apareceu já não sei onde, de uma rapariga que queria revisitar Nova Iorque pós-Guerra Fria. Decidi então escrever através dos olhos de uma rapariga que vem de um país que vive mergulhado numa guerra civil e que vai viver para Nova Iorque nos anos 90. É uma cidade que já não existe. Tal como Lisboa de 1990 também já não existe. Há algumas cidades que continuam a manter-se. Estive recentemente em Belgrado e a cidade parece ter parado no tempo: o modo das pessoas se vestirem, parece que estás nos anos 80, é engraçado. Mas há cidades que não param. Queria fazer essa revisitação, mas unir as duas histórias. Este homem morreu sozinho em casa. O que aconteceria se tentássemos descobrir como é a vida de uma pessoa que se fecha dentro de casa durante sete ou oito anos? Foi a partir daí que comecei a imaginar a história. Não quis apenas revisitar a cidade, mas também os temas de que gosto, entrando no livro através de uma voz feminina, que é algo que faço de vez em quando e que me dá alento.
É difícil para ti escrever a história do ponto de vista feminino?
Agora já não tanto porque fui aprendendo essa linguagem e já compreendo. Pode correr mal, mas eu compreendo o que estou a fazer. Quando me coloco na voz da Natasha, sei quais são as fronteiras e sei qual é a harmonia com que estou a jogar, que é completamente diferente da harmonia que agora estou a usar no policial que estou a escrever. Não tem nada a ver uma coisa com a outra, são registos completamente diferentes. Quando começo a compreender os registos torna-se tudo muito mais simples. É tudo uma questão de experiência e de ir estudando. Muito da escrita é estudo. Estudo de outros autores, de como é que eles cosem a narrativa, de como é que abordam aquela voz particular. Eu passo a vida toda a fazer a mesma coisa. Posso continuar a ter um público fiel que gosta do que eu faço, que gosta sempre do mesmo, mas eu não gosto. Preciso de novos desafios, senão sinto que estagnei e não quero estagnar.
Foi por isso que a dada altura tiveste interesse no romance policial?
Sempre tive. Desde miúdo que a minha grande paixão é o romance policial. Depois fui entrando noutro tipo de literatura e de geografias e comecei a gostar do romance mais literário. Quando comecei a publicar, o que me era pedido é que fizesse algo diferente e o policial certamente não era uma dessas coisas, embora em todos os meus livros esteja presente um bocadinho dessa instrução. Na adolescência, o policial era fascinante: o Sherlock Holmes, o Poirot, a Coleção Vampiro. Conforme fui crescendo, fui encontrando outras maneiras de me relacionar com a literatura, comecei a encontrar outros autores igualmente fascinantes, mas noutro sentido. Quando cheguei aos 40 anos, finalmente, aventurei-me. Tendo tido esta educação e tendo lido tantos policiais ao longo da vida, achei que o conseguiria fazer, mas só me atrevi depois de ter um percurso mais ou menos estabelecido como escritor. Se começas pelo policial – infelizmente vivemos numa sociedade e num meio literário pequeno – depois é difícil sair dessa categorização e passas a ser o escritor de romances policiais, e eu acho que sou muito mais do que isso.
Por ter uma estrutura mais ou menos fixa, não te sentes limitado?
Há alturas em que é bom ter essa estrutura porque um livro como este que publiquei agora, ou como O Naufrágio, o Ensina-me a voar sobre os telhados ou O Luto de Elias Gro, são livros densos do ponto de vista psicológico e difíceis do ponto de vista da construção. São romances voltados para o interior. De vez em quando, faz-me bem escrever qualquer coisa que tenha maior segurança estrutural porque torna-me mais leve. Um romance como este último, que é difícil nos temas e na abordagem das personagens, é um romance pesado de escrever e isso tem o seu preço. Num policial, por mais descabidas que sejam as situações, há um lado de divertimento de que também preciso. Nos romances mais literários, às vezes tenho pouco espaço para isso. Nos policiais tenho mais espaço para o divertimento, embora sejam mais difíceis de escrever.
Quem são as tuas maiores referências neste género?
Conan Doyle, Agatha Christie… Em Portugal, o Francisco José Viegas e o José Cardoso Pires. Fui buscando um bocadinho de tudo a todo o lado. Já gostei do Joel Dicker, agora não gosto tanto…
Tens os teus livros editados em países como Espanha, Alemanha, México, Argentina, França… em que outros países gostarias de os ver publicados?
Acho que os meus livros poderiam resultar bem em Inglaterra e nos Estados Unidos, mas são mercados difíceis. Normalmente são mercados de desilusão para os escritores portugueses. Fora o Saramago e o Fernando Pessoa, não são mercados onde os escritores portugueses tenham muito sucesso, passam um bocadinho despercebidos. O José Saramago ajudou a abrir essas portas com o Prémio Nobel, mas com o passar do tempo foram-se fechando. Podes até pôr no teu CV que tens livros publicados em 20 países, mas quando analisamos qual foi a repercussão, normalmente é muito pequena, o que acaba por ser um bocadinho frustrante. Nisso sou bastante realista: 85% a 90% dos meus livros vendem-se em Portugal. Em França e Itália os meus livros até venderam bem, mas a maioria do meu público está aqui. Não vou iludir-me e pensar que não é assim, por isso é em Portugal que aposto mais.
Que balanço fazes destes 20 anos?
O João de há 20 anos ficaria surpreendido com a quantidade de coisas que conseguiu fazer, com a quantidade de livros que conseguiu escrever e com os prémios que recebeu e para os quais foi nomeado. Isto de ser eterno finalista dos prémios também é bom sinal, é sinal que estou sempre a escrever e que estou sempre nas listas [risos]. Às vezes tenho dificuldade em olhar para o lado positivo das coisas, o que me leva a pensar “já devia estar muito mais à frente, já devia ter recebido o Prémio Nobel” [risos]. Isto é a minha cabeça doente que às vezes me diz estas coisas disparatadas. O João de antigamente veria o João de hoje com espanto e admiração, e o João de hoje às vezes olha para si próprio e acha que devia ter feito mais.
Quem conhece bem os teus livros fica com a sensação de que há muito de ti nas personagens. Isso não te deixa demasiado exposto?
É inevitável. Acho que não há outra maneira de se ser um escritor que tem o mínimo de empatia (não no sentido que é usado agora tão comummente, mas da possibilidade de estar perante coisas que causam repulsa ou aversão). Essas coisas que me causam aversão são coisas que também tenho em mim e que passam para as minhas personagens. Essa exposição dos lados mais sombrios e difíceis do ser humano é de onde parte a literatura. O Crime e Castigo [Fiódor Dostoiévski] parte daí. Parte daí o Moby Dick [Herman Melville] ou As Ondas da Virginia Woolf. Partem daí todos os clássicos da literatura. É daí que parte o Saramago, mesmo que os livros dele sejam escritos na terceira pessoa, o que provoca, naturalmente, algum distanciamento…
Tu escreves na primeira pessoa…
Sim, e isso provoca uma proximidade. Às vezes, as pessoas acham que eu passei pelas situações dos livros, mas essas coisas não me aconteceram, senão não estaria vivo. Mas há muitas das minhas características mais complexas que estão lá. Acho que isso é absolutamente essencial para um escritor. De certa forma, como dizia há dias o Primeiro-Ministro, um escritor também não tem amigos, no sentido em que os meus leitores não são meus amigos, mas eu posso privar com eles de uma outra maneira. Essa entrega é absolutamente necessária porque o contrário disto é ser um moralista, que é aquilo que hoje está um bocado em voga nos bestsellers, em que o escritor é uma espécie de pedagogo ou instrutor, como se os livros servissem para dar aulas ou lições. O mundo – e o nosso país em particular – está cheio de escritores/psicólogos/gurus. Eu não percebo isso, para mim isso não tem nada a ver com literatura. O contrário é eu abrir-me e ver onde me leva a experiência de tocar naquela ferida ou naquela parte do meu carácter que pode estar manifesta num personagem. É essa exposição – ou o desenrolar dessa narrativa (que não tem a ver comigo diretamente, mas eu conheço aquela experiência intimamente) – que leva a que o leitor se identifique. Há pessoas que leem à procura de socorro/ajuda e essas pessoas tendencialmente vão buscar outro tipo de livro que não são os meus. E há as pessoas que gostam de ler o tipo de livros que eu escrevo, que, parece-me a mim, são pessoas que procuram identificação, não procuram respostas. São duas coisas diferentes.
Paralelamente à escrita, desenvolveste o Projeto Maria Gibson, onde crias bandas sonoras para os teus livros. A música é outra grande paixão?
É muito instintivo. Não sou músico, não tenho instrução musical. Estudei contrabaixo no Hot Clube [de Portugal] quando tinha 15 anos e toquei durante muitos anos, embora sempre de uma maneira amadora. Às tantas, as minhas costas e a minha paciência já não davam para o contrabaixo. Entretanto, comprei uma guitarra feita em 1942, mas que foi reconstruída. Comprei-a na Gibson, nos Estados Unidos, e é um exemplar único. Achei o instrumento muito curioso quando soube a história: foi feita na fábrica antiga da Gibson, no Kalamazoo, estado do Michigan, numa altura em que os homens estavam todos na guerra. Foi a primeira e única vez que os instrumentos da Gibson foram feitos por mulheres, que ficaram conhecidas como as Kalamazoo gals, que, nesse período, fizeram as melhores guitarras que a Gibson alguma vez produziu. Comprei a guitarra e depois comecei a tocar e percebi que havia ali alguma coisa que era muito própria daquele instrumento, que tem um som que remete para uma paisagem desértica e para uma sonoridade country/americana/folk, e que havia ali uma possibilidade de dar uma instrumentação àquilo que eu escrevia. Foi uma tentativa de conseguir encontrar uma sonoridade própria para as minhas personagens, para os meus livros, que acabei por encontrar através de uma guitarra. Tenho outras que servem para outras coisas, mas foi naquela que fui encontrando o som que eu gostava que os meus livros tivessem, caso tivessem banda sonora.
Se não fosses escritor, qual seria a tua profissão?
Acho que seria compositor de bandas sonoras de filmes. É uma das coisas que gostava de fazer, embora, como disse, não tenha instrução musical suficiente para isso. Se eu tivesse dedicado à música metade do tempo que dediquei à escrita, acho que poderia perfeitamente fazer bandas sonoras. Às vezes, acho que os nossos talentos subaproveitados acabam por manifestar-se de outro modo.
O que andas a ler?
Estou a ler Estilhaços, de Bret Easton Ellis, e estou a gostar bastante. Acabei recentemente de ler The Lonely City, de Olivia Laing, que fala da solidão nas grandes cidades. E estou a ler o Misericórdia, da Lídia Jorge. Fiquei muito curioso para ler este livro quando ela ganhou o Prémio Médicis.