Realização no feminino

As cineastas a olhar o mundo

Realização no feminino

A propósito do Olhares do Mediterrâneo – Women’s Film Festival, o festival lisboeta que privilegia o cinema feito por mulheres, conversámos com as realizadoras portuguesas Ânia Bento, Cátia Alpedrinha, Catarina Eduardo, Cláudia Clemente, Eliana Caleia e Leonor Rocha Oliveira, todas elas com obras presentes na programação da 10.ª edição do festival.

O Olhares do Mediterrâneo – Women’s Film Festival decorre entre 9 e 16 de novembro no Cinema S. Jorge, com um programa que inclui 57 filmes de 22 países. O objetivo mantém-se: divulgar o cinema feito por mulheres oriundas de países do Mediterrâneo. Questões de género, racismo, colonialismo, terrorismo e radicalização, acesso à habitação, mas também histórias pessoais e familiares são os temas presentes nas várias obras exibidas. Este ano, a Turquia é o país homenageado com uma retrospetiva de filmes de cineastas turcas na Cinemateca Portuguesa.

A Agenda Cultural de Lisboa convidou seis realizadoras portuguesas a refletirem sobre os desafios e perspetivas das mulheres no cinema e, claro, que nos falassem sobre os filmes que apresentam nesta edição do festival.

Cláudia Clemente

Quatro Mulheres ao Pé da Água, exibe a 10 novembro, às 21h30

Nasceu no Porto onde estudou arquitetura, porque o cinema não era levado a sério pela família para prosseguir uma formação superior. Foi arquiteta durante 13 anos, mas, paralelamente, estudou cinema. Realizou o primeiro filme em 2007.

Sobre o papel das mulheres na realização considera que este é um mundo de homens e por isso é sempre um desafio. Quando afirmam que as mulheres “são dadas” ao documentário, porque permite uma visão mais intimista, discorda: “Fazemos mais documentário porque implica menos meios, equipas mais reduzidas e menos custos. É preferível trabalhar este formato do que não realizar, mesmo quando se prefere fazer ficção.” Há um lobby masculino que dificulta a entrada das mulheres mas, por outro lado, concorda que as coisas estão diferentes e que hoje mais realizadoras vingam na profissão.

Procura no seu trabalho dar protagonismo às mulheres. Preocupa-a o facto de a partir de uma determinada idade, ou por serem de origem africana, não conseguirem papéis como protagonistas. Foi com isso em mente que escreveu Quatro Mulheres ao Pé da Água onde as protagonistas – Maria do Céu Guerra, Lara Li, Ana Padrão e Mina Andala – têm todas mais de 50 anos. A história acompanha os relatos que as quatro fazem de um homem que morreu e a quem estavam ligadas de forma diferente.

Leonor Rocha Oliveira

Borderline exibe a 9 novembro, às 19h30

Quando terminou o 12.º ano entrou na Faculdade de Belas Arte, em Arte Multimédia, e foi no final do curso que percebeu que queria seguir cinema. Inscreveu-se na Licenciatura de Cinema, na Universidade Lusófona, ainda sem saber bem qual dos ramos pretendia. Borderline, a curta-metragem que realizou sozinha durante a pandemia e que serviu, também, como trabalho final de uma das cadeiras do curso, foi determinante na decisão de ser realizadora.

Começou recentemente a trabalhar num segundo filme e, por isso, a sua experiência no meio profissional do cinema é praticamente nula, no entanto, afirma que no meio académico sentiu que, tanto professores, como alunos, preferiam ter um rapaz no cargo de realização. Ser rapaz conferia credibilidade. “Achei curioso que houvesse uma maior confiança quando era um rapaz a liderar. Eu queria esse papel e nunca o consegui.”

Foi também por isso que decidiu escrever, realizar e filmar a curta Boderline, completamente sozinha. O filme, que reflete sobre o que mais afeta a vida da realizadora, o distúrbio de personalidade borderline, venceu a Melhor Curta-Metragem Documentário, nos Prémios Sophia Estudante 2022 e foi exibido em festivais no Brasil e Nova Iorque. Considera que a questão da saúde mental é um tema muito desconfortável para a sociedade portuguesa e isso é uma enorme motivação para falar do assunto. Aliás, são os temas mais desconfortáveis que a desafiam e dos quais pretende falar nos seus filmes futuros.

Ânia Bento

A Temporary Situation exibe a 10 novembro, às 17h

Teatro, dança e fotografia já faziam parte da vida de Ânia Bento, faltava explorar a imagem em movimento. Resolveu por isso deixar o Algarve, onde nasceu e vive, e vir para Lisboa estudar cinema na Cascais School of Arts & Design. Quando terminou o curso, em 2022, teve a certeza que queria escrever e filmar, mas percebeu que é muito difícil entrar no meio: “Não há respostas, nem apoio. É como se existisse um muro entre quem chega e quem já lá está.”

No entanto, a vontade de fazer um filme era grande e mesmo sem meios, apenas com o telemóvel, começou a filmar a sua realidade enquanto vivia em Lisboa, longe da terra natal. “Fiquei chocada com o que via: pessoas a comer do lixo, a dormir na rua, a viver em tendas… Trabalhamos 12 ou 14 horas e não chega, vivemos com uma dívida constante. É sufocante!”. A Temporary Situation, documentário que nomeou com alguma ironia, nasceu da vontade de dar a conhecer as suas dificuldades, que são também as de tantas outras pessoas. “A arte em geral e o cinema são essenciais para dar voz a este tipo de problemas.”

Independentemente do género ou da idade, acha que todos têm coisas interessantes para dizer. No entanto, considera que vivemos ainda numa sociedade machista e essa é uma questão que lhe interessa. Futuramente gostaria de abordar o tema, através de um filme que refletisse sobre o corpo da mulher e o porquê de tantos homens continuarem a oprimir ou assediar as mulheres.

Cátia Alpedrinha e Catarina Eduardo

Natan exibe a 9 novembro, às 17h

Conheceram-se no curso de realização da ETIC e a ligação foi imediata quando descobriram que tinham tirado um curso de fotografia, na mesma instituição, com 20 anos de diferença. A Catarina estava a nascer quando a Cátia iniciava o curso.

Para a realização do documentário académico Natan, que aborda o tema da exclusão social, através da história do jovem Natan, a partilha de uma estética e dos temas a abordar foram determinantes. Também a realização surgiu na vida de ambas, um pouco, pelas mesmas razões: a fotografia já não chegava e era necessário dar movimento às imagens, faltava um lado sinfónico e uma essência própria das personagens.

Relativamente à presença das mulheres na realização, Cátia Alpedrinha considera que ainda há um longo caminho a percorrer. “Já sentia que a fotografia era uma profissão de homens e nessa área as coisas estão hoje muito diferentes, houve progressos, mas no cinema e na publicidade os circuitos continuam muito fechados às mulheres.”

Foi com o objetivo de lutar pela paridade e defender as mulheres que trabalham no cinema e audiovisual que foi criada a MUTIM, associação da qual Cátia é associada. Na opinião de Catarina o departamento onde se quer chegar faz toda a diferença: “Vêem-se muitas mulheres na produção, mas na parte técnica é difícil. Num estágio que fiz, referi que tinha como objetivo a direção de fotografia, disseram-me que devia rever os meus objetivos. Era a única mulher no estágio e nunca consegui chegar perto de uma câmara.”

Eliana Caleia

Dentu Zona exibe a 11 novembro, às 16h

Quando terminou o ensino secundário, na área das artes, não tinha ainda uma perspetiva definida sobre qual o percurso académico a seguir. A licenciatura em cinema cativou-a e resolveu concorrer, acabou por entrar no curso de Cinema da Universidade Lusófona. Foi no último ano que a realização assumiu um papel mais preponderante e que sentiu que era o que queria fazer.

Dentu Zona, filme que realizou no âmbito da cadeira de documentário, é o seu primeiro trabalho. O documentário, que retrata um dia na vida de Vítor Sanches, proprietário de uma livraria, no bairro da Cova da Moura, foi buscar o título à expressão do crioulo cabo-verdiano “dentu zona” que significa “no bairro”.

Enquanto mulher, sente que por vezes não a levam a sério e sendo uma mulher negra a situação torna-se ainda mais difícil. A sua experiência reflete a vivência académica, uma vez que ainda não teve contacto com o meio profissional. No futuro, enquanto realizadora, afirma que pretende abordar questões sobre identidade e memória. “O Dentu Zona foi um ponto de partida para mim pois trata-se de um espaço que contraria a ocultação das pessoas que vivem na periferia, nomeadamente os africanos da diáspora, de forma a mostrar que aqueles corpos existem desocultando-os e às suas histórias. E, é esse o mesmo efeito que quero que futuros projetos meus tenham.”