O comboio já não para aqui

Artistas Unidos levam "Europa", de David Greig, ao Teatro São Luiz

O comboio já não para aqui

Algures no "velho continente", uma pequena cidade fronteiriça, uma estação de comboios ao abandono, uma fábrica de lâmpadas que fechou e uma comunidade esquecida e à mercê do medo. Os Artistas Unidos apresentam Europa, um texto inquietante do escocês David Greig, numa encenação de Pedro Carraca.

No final desta viagem a uma cidade sem nome, assalta-nos uma profunda perturbação: como é que um texto escrito em 1994, tendo como eco a guerra nos Balcãs, pode ter-se tornado, em menos de duas décadas, tão atual? Passado o efeito do choque, talvez consigamos concluir que, afinal, todas as questões levantadas pela peça de David Greig nunca deixaram de estar presentes na realidade europeia.

“O problema”, como sublinha o encenador Pedro Carraca, “é que muito provavelmente nos deixámos adormecer na paz”, e naquilo que na viragem do século fazia da Europa “um projeto cheio de futuro”. Agora, como diz um personagem da peça a dado momento, “arriscamos deixar este sítio para os lobos“. Europa é, por isso mesmo, um espetáculo para despertar e, consequentemente, contribuir para que isso não aconteça.

A ação situa-se num pequena cidade fronteiriça, importante em tempos porque, como revela ainda com orgulho o chefe da estação, Fret (Américo Silva), até chegou a haver alfândega. Um dia, o principal empregador da cidade, uma fábrica de lâmpadas, anuncia o fecho e muitos dos seus trabalhadores, como Berlin (Gonçalo Carvalho), tornam-se desempregados. Ao clima de tensão que começa instalar-se, junta-se a chegada de “gente de fora”, nomeadamente de Sava (Pedro Pinto) e Katia (Rita Rocha Silva), pai e filha em fuga, que passam a pernoitar na estação de Fret, onde os comboios já não param e só por inoperância burocrática ainda não está definitivamente encerrada.

Entretanto, é com os olhos cada vez mais fixos no horizonte, para lá da orla da floresta, e ansiando por ser levada pelos comboios que já não param na estação, que encontramos Adele (Inês Pereira). Enquanto o companheiro, Berlin, passa o dia a beber com os amigos Billy (Pedro Caeiro) e Horse (Simon Frankel), e a aderir cada vez mais ao discurso da extrema-direita, que se alimenta das frustrações dos desempregados para apontar responsabilidades aos estrangeiros que chegam, Adele aproxima-se da “refugiada” Katia, prometendo ajudá-la a conseguir documentos. Para isso, conta com os “truques de magia” do recém regressado Morocco (Nuno Gonçalo Rodrigues), um muito viajado e pouco escrupuloso “contrabandista”.

Era uma vez “uma peça datada”

Autor de eleição dos Artistas Unidos (AU), quando se menciona o escocês David Greig (n.1969) é quase impossível não lembrar a encenação que Franzisca Aarflot fez para a muito agridoce comédia Cantigas de Uma Noite de Verão – que Pedro Carraca protagonizou, ao lado de Andreia Bento –, um dos grandes sucessos da companhia na década passada (temporada de estreia no Teatro da Trindade em 2010 e, três anos depois, uma reposição com igual sucesso no Teatro da Politécnica).

“Antes disso, ainda n’ A Capital [antiga casa dos AU no Bairro Alto] tínhamos feito leituras de duas peças anteriores do David: A última mensagem do cosmonauta para a mulher que um dia amou na antiga União Soviética e, precisamente, Europa”. Esta última, lembra Carraca, “chegou a estar pensada ser levada a cena” mas, na altura, “havia dificuldades em reunir um elenco tão grande. Quando se tornou viável fazê-la, a paz chegara aos Balcãs e a questão dos refugiados não parecia premente. De repente, um texto que tinha feito tanto sucesso estava datado.”

Estreada em outubro de 1994, no Traverse Theatre, em Edimburgo, Europa foi a primeira peça longa e da consagração internacional do então muito jovem David Greig. A Guerra Fria acabara poucos anos antes, mas, no centro da Europa, na sequência da desagregação da Jugoslávia, a guerra “quente” voltava ao velho continente. Dos Balcãs, chegavam a outros países europeus pessoas em fuga, enquanto a globalização económica acelerava e as grandes empresas se deslocalizavam para oriente em busca de mão de obra barata, deixando para trás um rasto de desemprego.

Ao mesmo tempo, a Europa abolia fronteiras (o chamado Espaço Schengen, criado em 1985, continua a estender-se e, ainda este ano, recebeu o 27.º Estado aderente: a Croácia) e a extrema-direita reorganizava-se, ganhando palco com o apelo nacionalista e o ênfase nas ameaças “externas”, nomeadamente na chegada de migrantes que, como diz uma personagem na peça, “nos vêm roubar os empregos.”

Greig conjuga notavelmente estes temas, revelando através das oito personagens de Europa várias nuances de todo um sonho que desaba. E, de repente, apercebemo-nos que o que nos liga a 1994 continua a estar demasiado presente. “Os migrantes já não são, essencialmente, outros europeus”, e chegam do Sul, cruzando o Mediterrâneo em busca de uma vida condigna. A leste, voltou a guerra, e a extrema-direita “deixou de ser essencialmente skin head e reinventou-se”, vestiu fato e gravata e, hoje, até ocupa instâncias de poder em vários países da Europa.

Não foi, portanto, necessário mudar praticamente nada no texto para que Europa voltasse a fazer sentido. “O [tradutor] Pedro Marques limitou-se a rever a tradução anterior para substituir alguns termos que estão desatualizados”. Porém, “há umas semanas, soube que o David fez algumas adaptações ao texto original para encenações recentes em Inglaterra. Estou muito curioso em saber quais foram, mas desconfio que se prendam com nomes de cidades para que não se sublinhe tantos os Balcãs.”

Para cumprir “o objetivo do teatro, que é suscitar a discussão”, aí está Europa em estreia na Sala Luís Miguel Cintra do Teatro São Luiz a 18 de outubro. O espetáculo permanece em cena, de quarta a domingo, até ao próximo dia 29, prosseguindo carreira em novembro, com passagem pelo Festival de Teatro do Seixal (dia 9) e com récitas marcadas para Palmela (dia 11), Barcelos (dia 18), Covilhã (dia 25) e Évora (dias 29 e 30).