Ricardo Toscano

"Não preciso tocar música do Coltrane ou do Charlie Parker para se notar que gosto deles"

Ricardo Toscano

O saxofonista Ricardo Toscano é uma das maiores figuras do jazz português da atualidade. A comemorar 30 anos de idade, o músico faz a festa na Culturgest, com dois dias de concerto que celebram, simultaneamente, as três décadas desta importante instituição cultural da cidade. O programa inclui um concerto inédito de homenagem a Charlie Parker com o seu quarteto e a Orquestra de Câmara Portuguesa (11 de outubro), e um espetáculo de apresentação do mais recente disco do seu trio, Chasing Contradictions (12 de outubro).

Como surgiu a sua ligação ao jazz?

A música faz parte da minha vida desde que nasci. O meu pai é músico profissional – embora não de jazz – mas sempre fez questão que eu ouvisse jazz desde bebé. Adormecia a ouvir discos de jazz. Acho que sou uma experiência científica de laboratório bem-sucedida [risos]. Mais tarde, quando o gosto pela música se tornou mais evidente, comecei a tocar clarinete numa banda filarmónica. Depois estudei clarinete clássico no Conservatório e na Orquestra Metropolitana de Lisboa. Em casa, tocava saxofone por cima dos discos, a tentar imitar o que ouvia. Nunca senti qualquer pressão do meu pai. Alguns professores de música erudita são pedagogicamente questionáveis (alguns são pessoas traumatizadas por professores que tiveram, o chamado trauma hereditário), apertam muito com os alunos. Mesmo quando eu estava nessa fase, o meu pai nunca me incentivou a estudar contrariado. A música tem de ser algo que faz o instrumentista feliz, temos de nos divertir a fazer isto. A única pessoa que apertou comigo para estudar a sério fui eu próprio. Para termos uma relação saudável com a música, só nós é que podemos ‘apertar’ connosco.

O saxofone foi amor à primeira vista?

Sim. Queria ter aprendido saxofone quando comecei a tocar clarinete, mas era muito grande. Tem esta particularidade de ser o instrumento que o meu pai toca, e os pais são sempre os nossos primeiros heróis. A minha mãe também tem um passado musical e chegou a fazer parte de uma filarmónica, onde também tocava saxofone. Eu podia ter escolhido qualquer outra coisa, mas tem piada esta coincidência.

Esta celebração na Culturgest é uma coincidência feliz: fazem ambos 30 anos este ano. De que forma surgiu a ideia de juntar os dois aniversários?

Já tenho uma relação longa com a Culturgest, já lá dei vários concertos. Desta vez pediram-me para pensar em alguma coisa específica para o aniversário, uma celebração em data dupla que não perdesse as propriedades desafiantes e intelectuais da agenda da Culturgest. Como o meu trio tem disco novo que ainda não foi apresentado em Lisboa, pensámos nisso para um dos concertos [o de 12 de outubro]. Para o outro [um dia antes, a 11], lembrei-me deste concerto de homenagem ao Charlie Parker com a Orquestra de Câmara Portuguesa, que é algo inédito. With Strings é um disco lindo de que toda a gente gosta, mas que não é muito tocado ao vivo. Sempre foi um sonho de infância poder tocar esse disco ao vivo.

Charlie Parker foi um músico à frente do seu tempo?

Todas as pessoas que são vistas como ‘alguém à frente do seu tempo’ eram precisas no sítio e no tempo em que viveram. Acho é que ele percebeu e conectou-se com a música de uma forma que não era muito comum na época.

Ser músico de jazz implica ter esse arrojo que Parker tinha?

Ele não teve outra opção senão ser arrojado. Sempre que criamos alguma coisa devemos dar o máximo sem pensar se é arrojado ou moderno. Isso, têm de ser as outras pessoas a avaliar. Há muita gente que não chega a ter grande reconhecimento pelo que faz, ou que não é assim tão genial ou mediático. O Parker – tal como outros músicos – era claramente genial, estava completamente alinhado com a história da civilização e da humanidade naquele momento para ser tão controverso, brilhante e pertinente.

A seu ver, existem universos musicais que não se podem misturar?

Acho que tudo se pode fazer desde que os músicos tenham bem presente e esclarecido aquilo que têm em comum. Se a mistura dos dois não mexe com nenhum princípio básico – embora possam passar a ser outra coisa juntos – penso que tudo pode ser feito.

Que outros heróis musicais gostaria de homenagear em concerto?

Já fiz alguns concertos destes, um deles ao meu grande ídolo musical – John Coltrane – que é alguém que não me canso de homenagear. Acho que em todos os concertos que damos homenageamos os nossos heróis musicais pelo impacto que tiveram em nós e com o que nos deram. Não preciso de tocar música do Coltrane ou do Charlie Parker para se notar que gosto do trabalho deles.

“Todas as pessoas que são vistas como ‘alguém à frente do seu tempo’ eram precisas no sítio e no tempo em que viveram”

Chasing Contradictions é o primeiro disco gravado em trio (sem o piano). Porquê esta decisão?

Em 2014, o João Pedro Coelho (pianista do quarteto) ainda estava a estudar em Amsterdão por isso passámos a tocar muito em trio, porque não havia ninguém que eu quisesse chamar para tocar piano em vez dele. Fomos desenvolvendo essa cumplicidade em trio, que temos vindo a aprofundar, mas temos conseguido manter estas duas bandas. Eu gosto desses dois sons, porque na verdade são duas coisas completamente diferentes. Durante a pandemia, a atividade musical abrandou um bocado e depois fizemos uma reunião do trio que durou três ou quatro dias. Já em 2021, o consulado português em Washington convidou-me para fazer um concerto gravado para o Dia Internacional do Jazz. Sou muito preguiçoso, mas um preguiçoso focado [risos] e pensei que, se esse concerto corresse bem, podia ficar gravado e fazia-se um disco. Gravámos o concerto no Teatro São Luiz e fizemos um disco com ele, tudo ao primeiro take.

De onde veio o nome do disco?

Todas as pessoas, nas suas vidas diárias, têm de aceitar umas coisas e perseguir outras. Às vezes criticamos uma coisa noutra pessoa, mas permitimo-lo em nós. Isso é uma contradição. Este disco representa toda a nossa herança e ligação à música jazz afro-americana que se faz a um nível elevado em Nova Iorque. Acho que conseguimos reunir esses princípios a um nível bastante simpático – não quero soar arrogante – mas com o nosso som, com sotaque daqui. A piada é conseguir manter tudo isso em tempo real a acontecer. Quando estás a tocar e vais à procura de certas coisas, tens de abdicar de outras, tudo isto são pequenas contradições. Isto dá voltas infinitas na nossa vida diária. É muito simples, abrangente e vago ao mesmo tempo.

Como olha para o jazz que se faz atualmente em Portugal?

Está melhor que nunca. Cada vez há mais jovens músicos a tocar muito bem e cada vez há mais informação. As escolas de jazz têm feito uma diferença brutal, vejo miúdos de 20 anos com um nível bastante bom. Por outro lado, também acho que, cada vez mais, as pessoas aprendem em massa e têm pouca conexão com a história da arte. Não é preciso ir ao Louvre ver a arte sacra toda porque isso pode ser uma seca, mas não deixa de ser lindo. É preciso é que as pessoas saibam que os pintores modernos incríveis conhecem arte sacra. Em todas as áreas da arte, o bom conhecimento faz-nos durar mais tempo porque nos dá fundamento. Hoje, para os jovens – e isto acontece em todas as áreas da vida – é tudo efervescente e fulminante. Vejo poucos a manterem-se porque se desinteressam… acho que a pessoa só se desinteressa quando acaba o assunto. Como é que se acaba o assunto de uma arte que tem séculos de existência e de história antes de mim? Vejo jovens músicos que apareceram depois de mim, que tocavam muito bem e que de repente estão meio estagnados. Quando reflito sobre isso, vejo que mais de metade da minha vida tem sido dedicada a isto. Eu gosto de música e quero tocar sempre o melhor possível – e, de preferência, que as outras pessoas também gostem do que faço.

Ao longo da sua carreira, tem tocado com grandes músicos, como Mário Laginha, Carlos Barretto, Bruno Santos, Júlio Resende, entre muitos outros. Há alguém com quem gostasse de trabalhar?

Até agora, o maior momento que tive na música portuguesa foi ter tocado em trio com o Camané e com o Mário Laginha. Era o melhor concerto de música portuguesa que podia fazer. Tem a parte do jazz de improvisação, tem a parte da música portuguesa – e aí acho que o Camané é o maior de sempre e para sempre. Nunca toquei com a Carminho e gostava de o fazer um dia, mas uma colaboração a sério, não é fazer uns solos num concerto dela. Gostei da forma como o Camané me convidou para tocar um fado tradicional do [Alfredo] Marceneiro em duo num disco dele.

Como correu essa experiência?

Achei incrível. Foi desconcertante, difícil, aliciante. Estar no estúdio a ouvi-lo cantar, fiquei a tremer. É completamente diferente tocar para uma voz em que tu és a banda. Tenho de moldar o caminho das notas à volta da voz dele para que se oiça a canção e os meus “comentários” à voz ao mesmo tempo, de forma minimal.

Como se gerem os egos dos vários instrumentos em palco?

Aí estamos todos em primeiro plano. Embora o saxofone seja um instrumento solista, a forma como tocamos em trio é muito triangular. Mesmo que seja o meu solo, é o solo deles a acompanhar-me. Há confiança e vontade de compreender melhor o outro. Não dá para tocar num nível alto havendo lutas de egos. A partir de um certo nível de seriedade e profissionalismo essas coisas não podem existir, o ego tem de ficar fora do palco.

Qual a maior gratificação que retira do papel de professor?

Neste momento não estou a dar aulas, mas acabo por ter uma presença bastante regular na cena musical dos miúdos mais novos que estão a aprender. No final de concertos ou jam sessions vêm falar comigo, sugiro discos, pedem-me orientações. Tenho todo o gosto em dar esse apoio aos que vejo que têm potencial e interesse genuíno. Se tenho aulas com alguém tenho de conhecer o trabalho dessa pessoa, mostrar interesse, e isso acontece muito pouco com os miúdos atualmente. Eles querem uma poção mágica e isso não existe.

Depois dos concertos na Culturgest, o que se segue?

No dia a seguir à Culturgest vou estrear uma banda nova internacional no Seixal a convite do SeixalJazz. Deram-me carta branca para estrear uma banda à minha escolha, e trago um baixista de New Orleans e um pianista polaco que vive em Copenhaga, mais o João Pereira [do trio]. Depois, vou estar em Castelo Branco, Madrid, Bilbao, Madeira… E espero gravar um disco, ainda este ano, com o quarteto.