Em que ponto estarei da Eternidade?

No centenário do nascimento de Natália Correia

Em que ponto estarei da Eternidade?

Exposições, teatro, visitas guiadas e a evocação no Parlamento, onde foi deputada, integram o programa que assinala os 100 anos do nascimento de Natália Correia, a 13 de setembro. Para assinalar a data, a Agenda Cultural de Lisboa selecionou um conjunto de obras literárias que comprovam o génio de uma das personalidades mais fascinantes do século XX português.

Natália Correia marcou o século XX português pela personalidade desassombrada e pela extraordinária qualidade da obra que tocou todos os géneros literários: do barroco fulgurante do seu teatro, revisitação dos principais mitos da cultura portuguesa (O Encoberto, Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente, A Pécora), ao lirismo místico da sua poesia, da profundidade dos seus ensaios sobre a questão da Identidade (Somos Todos Hispanos) à adaptação dos mitos clássicos gregos ao Portugal contemporâneo patente nos seus dois principais romances (A Madona, A ilha de Circe).

Tal como a Feiticeira Cotovia (personagem do poema Comunicação, condenada às chamas “por prática de uma magia maior e estranha a que ela dava o nome de Poesia”), Natália tinha a convicção de que “as roseiras ao / é que dão rosas”. Por isso, nas palavras de Manuel Alegre, “desafiava os homens e os deuses, punha em causa a ordem e a moral estabelecidas, contestava as certezas e os dogmas, combatia todas as instituições e todas as tiranias”.

Dotada de uma personalidade fascinante e complexa, a escritora situava-se algures entre  o distanciamento e a generosidade, o desafio e a fragilidade, o sarcasmo e a ternura, a racionalidade e a magia. “A partir de agora, se alguém me quiser encontrarprocureme entre o riso e a paixão”, escreveu na Ilha de Circe.

Na madrugada de 16 de março de 1993, entrou na morte de olhos abertos. Porém, graças ao fulgor profético da sua obra, Natália continuará pelo tempo adiante. Ela prometeu: “Eu sou romântica. Não falto”. Que as celebrações do centenário do nascimento de Natália Correia contribuam para ajudar a cumprir o seu famoso vaticínio: “Vai ser preciso passarem duas décadas sobre a minha morte, para começarem a compreender o que escrevi”.

Seis livros de Natália

Aconteceu no Bairro

Aconteceu no Bairro, o seu primeiro romance, escrito aos 23 anos, percorre os caminhos do romance naturalista urbano. A obra narra as vivências dos moradores de uma rua imaginária de um bairro popular de Lisboa, ao longo de um dia de inverno, do amanhecer ao anoitecer, criando uma impressiva galeria de figuras do quotidiano da capital de finais dos anos 40 do século passado. Natália nunca amou tanto as suas personagens. Elas retribuem-lhe, assumindo uma pungente humanidade.

As Núpcias

O romance foi um género que a autora cultivou, espaçadamente, ao longo da sua carreira literária: Anoiteceu no Bairro (1946) foi o primeiro, As Núpcias (1992) o último, publicado um ano antes da sua morte. Nesta obra, à semelhança de A Madona (1968) e A Ilha de Circe (1983), adapta os grandes mitos clássicos ao Portugal contemporâneo fazendo reviver Isis, irmã e esposa de Osíris, na relação entre Catarina e André. Uma história de amor e morte, incesto e rebeldia no ambiente da burguesia do pós-25 de Abril, que inspira não só o talento satírico da autora mas também o seu misticismo revelado na confluência do sagrado e do profano, do masculino e do feminino.

Descobri que Era Europeia

“Foi na América que tive a grande revelação. Levava comigo as minhas raízes europeias.” Aos 26 anos, Natália Correia visita os Estados Unidos com o objetivo central de, a pedido de António Sérgio, solicitar a colaboração do líder do Partido Socialista dos Estados Unidos para a luta pró-democracia que se desenvolvia em Portugal. A prodigiosa lucidez e a penetrante capacidade de observação de Natália Correia conferem uma inesperada atualidade a este relato, tornando a sua leitura essencial para entender “os contrastes e agressivos antagonismos” de uma nação que, como escreve Ângela de Almeida na introdução à edição da editora Ponto de Fuga, que “tanto é a casa de Lincoln ou Luther King como a fábrica do Ku Klux Klan e do Watergate; tanto pode acender a luz de Obama como pode deixar deslizar as sombras de Trump.”

Antologia poética

“Em que ponto estarei da Eternidade?” Interrogou-se Natália Correia num dos seus Sonetos Românticos. Com organização, seleção e prefácio de Fernando Pinto do Amaral, a presente antologia poética, realizada tendo como base a edição mais recente da Poesia Completa de Natália Correia (Dom Quixote, 1999), destina-se a facultar aos leitores do século XXI uma visão de conjunto da grande poetisa. O critério posto em jogo para selecionar os poemas pretendeu obedecer a um equilíbrio (naturalmente sempre instável) entre o gosto pessoal do organizador e a representatividade dos diversos períodos da sua escrita.

A Pécora

Escrita nos anos 60, A Pécora seria a segunda peça de Natália Correia, depois de O Homúnculo (1965) e antes de O Encoberto (1969) a promover uma profunda reavaliação dos mitos da portugalidade. Neste caso, os milagres de Fátima. Narra, sucintamente, a história de uma prostituta (Melânia Sabiani) cuja morte é falseada, reaparecendo depois numa aparição que a torna santa. Um dos maiores êxitos do teatro português, em cena mais de meio ano no palco da Comuna, é ainda a única peça da autora interpretada internacionalmente. Luiz Francisco Rebello considerou-a “uma obra-prima da dramaturgia portuguesa contemporânea, não só pela perturbante novidade dos caminhos que ousa explorar como pela carga prodigiosa de imaginação a que dá livre curso.”

Antologia de Poesia Erótica e Satírica

De Martim Soares (1241-?) a Dórdio Guimarães (1938- 1997), esta célebre antologia, com seleção, prefácio e notas de Natália Correia, reúne oito séculos de poesia portuguesa erótica e satírica. Depois de vários livros seus terem sido apreendidos pela Censura do Estado Novo, a autora aceitou o convite do visionário editor da Afrodite, Fernando Ribeiro de Mello, para organizar esta antologia. Publicada em dezembro de 1965, prometia “a poesia maldita dos nossos poetas”, “as cantigas medievais em linguagem actualizada”, “dezenas de inéditos” e “a revelação do erotismo de Fernando Pessoa”. O escândalo foi enorme e a obra apreendida pela PIDE, com vários dos intervenientes julgados e condenados em Tribunal Plenário, num processo que se arrastou durante anos. A mais recente edição é da editora Ponto de Fuga.