Anabela Mota Ribeiro

Em 'O Quarto do Bebé' "amadureci cuidadosamente aquilo que queria mostrar e as zonas de sombra, ou de equivocidade em que queria deixar o leitor."

Anabela Mota Ribeiro

Anabela Mota Ribeiro veio ter connosco nos dias seguintes a uma promoção exaustiva, na Feira do Livro de Lisboa, do seu romance de estreia O Quarto do Bebé. A conversa foi, aliás, antecipada para permitir à escritora um período de repouso no sul do país. Como falar de um livro tão pessoal, tão catártico, que atravessa zonas da alma onde quase não há sol, sem nos deixarmos aprisionar nesse negrume? Podermos percorrer a trave sem pisar a dor do entrevistado. E, chegarmos juntos ao fim da conversa.

A capa do livro reproduz uma imagem criada por Noé Sendas, nome que é referido no diário da protagonista. De quem foi a escolha da capa: sua ou da editora? Que significado tem para si esta imagem no contexto do livro: o de uma mulher à beira do abismo?

Talvez à beira do abismo. Seguramente desamparada, e num movimento solipsista. Sugeri que a capa fosse do Noé Sendas, e de entre algumas opções do seu trabalho, achámos que esta transmitia aquilo que queria que o livro tivesse. Há também um certo mistério e uma hibridez que ela tem, que penso que falam com o livro. Esta cabeça de Diana ou de Atena, de deusa da antiguidade clássica, e este corpo que parece pouco de carne, têm qualquer coisa de muito sugestivo para mim. E gosto de pensar que ela pode mergulhar no abismo, mergulhar em si própria, ou pode até mergulhar num delírio, num sonho. Dizendo isto já estou a trazer muitas coisas que são importantes para o livro, e que têm que ver com uma zona de fronteira muito flexível, resvaladiça. Não por acaso o livro termina com essa interrogação: e se tudo não tiver sido um delírio?

O romance é descrito como sendo autoficcional. Que distinção faz entre autobiografia e autoficção, e porque se decidiu por um destes registos relativamente ao outro?

Este autodenominado género autoficcional tem em escritoras como Annie Ernaux, Natalia Ginzburg, Joan Didion, Elizabeth Strout, algumas das vozes mais eloquentes. E depois há uma outra escritora de que falo também, e que não faz autoficção, mas que faz auto e hétero-biografia, que é a Svetlana Alexijevich. O que há percorrendo todas estas autoras é uma deriva entre aquilo que é autobiográfico e o que é ficcional. O que é a experiência do sujeito e o que pode ser uma experiência do coletivo. Eu optei por fazer um registo autoficcional porque quis trabalhar sobre uma base biográfica. E tendo eu um percurso público enquanto jornalista, sobretudo a partir do meu trabalho em televisão, amadureci muito cuidadosamente aquilo que queria mostrar e as zonas de sombra, ou mesmo de equivocidade em que queria deixar o leitor. Optei por adensar a ambiguidade ao invés de esconder o que podem ser elementos reconhecíveis. Escrevi grandemente o romance durante a pandemia e a doença, mas foi tão ou mais importante o trabalho que fiz o ano passado depois de uma longa gestação, e este trabalho também me ajudou a compreender que aquilo que eu queria fazer era mesmo trabalhar neste registo da autoficção.

É público o seu entusiasmo em relação à obra de Annie Ernaux, autora que chegou a conhecer pessoalmente. Em que momento se situa a leitura que fez da obra de Ernaux relativamente à escrita de O Quarto do Bebé?

Aquilo a que chamo de primeira pedra, e que é um trabalho de escrita, é anterior à Annie Ernaux. Depois partilhei o que tinha escrito, e que era ainda informe, com a Susana Moreira Marques, uma escritora que admiro muito, que dá cursos de escrita de não-ficção, ela mesma escreve nesse registo, e a Susana deu-me o La Place [Um Lugar ao Sol], Anne Carson, e outros livros, achando que iam ser úteis para mim. Foi o meu encontro com a Annie Ernaux. Depois quando construí o romance, com a enxertia de microficções, cartas, sonhos, isso foi tudo feito já depois de ler os livros da Annie Ernaux.

O livro abre com uma advertência, que conta a descoberta e a obsessão de uma mulher com o diário de uma paciente do pai, psicanalista morto recentemente. Essa mulher nunca mais será referida. Que presença ou identificação é suposto guardarmos ou estabelecermos com ela?

Gosto muito dessa ideia de o leitor pensar onde estará essa “filha do meu pai”. É assim que ela assina. A história dessa advertência e desse dispositivo é tratar-se de um recurso machadiano. Eu dialogo com vários autores ao longo do livro, mas aquele com quem dialogo mais é Machado de Assis, o autor que estudo. Nos seus últimos romances, Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908), os livros abrem justamente com uma advertência. E até a primeira frase [“Quando o meu pai morreu, achei-lhe na secretária uma série de cadernos manuscritos.”], e o verbo escolhido para essa frase, é um modo de me entranhar no Machado, porque o Esaú e Jacó diz qualquer coisa como “Quando o conselheiro Aires morreu, acharam-lhe na secretária sete cadernos ricamente encapados” tal e tal. Gosto muito dessa ideia de alguém no post mortem encontrar um legado, uma questão fundamental quando pensamos em filhos, é algo que me obceca a noção de legado que nós deixamos e alguém encontra. Há uma outra questão aqui que é a da autoria. Quem é verdadeiramente o autor daquilo que estamos a ler. Claro que, em última instância, os autores são o Machado de Assis e sou eu. Mas existem muitas camadas entre o que é um material encontrado, a ilusão de reconhecimento e identificação daquela pessoa, e depois o trabalho de edição de alguém que encontrou aquilo e se permite até mudar o título.

A autora do diário chama-se Ester do Rio Arco. Um nome incomum, talvez mesmo um nome literário. A escolha do nome Ester liga-se para si à condição de esterilidade daquela mulher, incapaz de gerar filhos?

Isso é maravilhoso. Não pensei nisso; gostaria de ter pensado. Todos os nomes dos personagens são importantes. Têm um significado para mim que prefiro não partilhar. É mais uma coisa que aprendi com o Machado de Assis. No livro Esaú e Jacó a mãe dos gémeos chama-se Natividade. Gosto que os nomes já tenham uma carga simbólica. Todas as pessoas no livro têm nomes que não são os seus, e o mais comum é que os personagens condensem várias referências, pessoas, experiências. Ester é um nome que começa por ter uma ressonância bíblica, e é um nome de que gosto bastante.

Usando o paralelismo presente no livro entre a escrita e a gravidez (“Escrever é ser capaz de gerar.”), até pelo modo como o ato de escrever pode redimir a infertilidade daquela mulher, diria que este livro lhe aconteceu a si ou que foi algo planeado?

Se calhar as duas coisas, mas acho que foi mais planeado. Já tinha a intenção de escrever há algum tempo, e acabou por acontecer no confinamento ser incentivada a escrever, como forma de me ligar aos dias e de encontrar palavras para aquilo que estávamos a viver e que era inédito para todos nós. Mas que pudesse também a partir dali ligar-me com uma experiência traumática recente, sobre a qual não tinha conseguido ainda elaborar. Há aqui duas doenças, dois momentos de uma enorme perturbação física e psicológica, e a doença coletiva que vivemos todos com a pandemia. Tudo isto me pôs a pensar naquilo que é mais próprio e profundo do ser humano. O nascimento e a morte, e esse horizonte de mortalidade.

“A morte das pessoas que amamos é aquilo que nos começa a ensinar que somos mortais.”

O tempo do diário de Ester ocupa sensivelmente um ano: período em que lhe morreram pessoas que amava, em que se descobriu com uma doença grave, em que foi obrigada ao isolamento pela pandemia da COVID. Onde vê maior superação: em chegar-se vivo depois de atravessar estas provações ou na capacidade de organizar tudo que ali se passou sob a forma de livro?

Acho que a superação é, estranhamente, querer o dia seguinte. Isso é muito misterioso no ser humano porque nós atravessamos estas provações, maiores ou menores, e qualquer coisa nos faz querer o dia seguinte. Mesmo com momentos de enorme desânimo, desesperança, sofrimento, mas depois surge uma energia vital, que acaba por brotar (a minha atenção às plantas também foi uma forma, não só de ter presenças vivas perto de mim, mas de compreender como é isto que ainda não estamos a ver, mas que se está a operar debaixo desta terra e já é vida). Connosco também acontece isso, algo que nos impele a viver, e a grande superação é essa, continuarmos a querer o dia seguinte.

O Quarto do Bebé é um relato cheio de morte. A partir de que altura a sua vida se começou a encher de morte, e até que ponto considera eficaz o efeito catártico que a arte representa face a essa inevitabilidade?

Concordo com essa leitura. Acho que o que predomina neste relato é a morte, a certeza da morte, a dor da morte, a dor da perda, mas como disse atrás, ainda que esse seja o elemento predominante, há depois estranhamente uma temperatura solar. Um desejo ainda de “voltar à gemada” [“A gemada da minha infância era só gema e açúcar, não se punha leite.”] e começar tudo de novo. A morte das pessoas que amamos é aquilo que nos começa a ensinar que somos mortais. Vivemos a maior parte da vida como se fossemos imortais, e está certo. Compreendi que sou mortal com a morte da minha avó. Mas também compreendi de uma forma muito decisiva quando morreu a pessoa que inspira a personagem Aurora.

Que sentimentos vieram à tona quando pôs um ponto final a este livro? Orgulho, alívio, vazio, limpeza, tristeza, outros?

Limpeza é uma palavra boa porque preciso de limpar e arrumar. Ajuda-me muito a pensar, a refletir sobre as coisas, estar a fazer um trabalho manual. Quando acabei de ler o romance tive sensações contraditórias. Essa impressão de limpeza como se fosse uma purga; também uma impressão de distância (aquela já não era eu, de facto); paradoxalmente também tive uma impressão de ter sofrido muito. Como se me visse agora de fora e dissesse, caramba foi duro. Mas já não sou eu e já passou.

O que é que a Anabela Mota Ribeiro poria numa dedicatória a O Quarto do Bebé, antes de entregar o livro nas mãos de Ester do Rio Arco?

[risos] Tenho que pensar. Acho que poria uma trave da Nadia Comăneci, como a das vinhetas do livro, e diria qualquer coisa como “Para a Ester, que sabe que a vida é levantar e cair.” Inverteria a ordem. Claro que a vida também é cair e levantar, é sobretudo isso que nos ensinam, mas é muito importante sentir o chão.