Uma família normal… com as suas coisas

"A omissão da família Coleman" no Teatro da Politécnica

Uma família normal… com as suas coisas

Depois de O Vento num Violino e Emília, os Artistas Unidos apresentam A omissão da família Coleman, a peça que consagrou internacionalmente o dramaturgo argentino Claudio Tolcachir. Pedro Carraca dirige esta ritmada comédia negra e, fazendo justiça às pretensões do autor, o espectador parece muitas vezes esquecer que o que está a ver é, 'tão só', um espetáculo de teatro. No Teatro da Politécnica, até 27 de maio.

“Uma família normal como todas, com as suas coisas”, diz Memé (Ana Castro), respondendo à sucessão de questões que o médico (Américo Silva) coloca sobre quem é quem na família Coleman, ou Zenelli, ou Fortuna. É que, como repara o clínico, nem todos partilham o mesmo apelido e a confusão tende a instalar-se.

Esta hilariante cena sucede já na segunda parte da peça de Claudio Tolcachir, quando todos sabemos que Memé é a mãe de Marito (Vicente Wallenstein), Verónica (Raquel Montenegro) e dos gémeos Damián (Nuno Gonçalo Rodrigues) e Gabi (Nídia Roque). À exceção de Verónica que, há muitos, muitos anos, terá deixado de viver com a mãe, e que agora, casada e com dois filhos, parece estar confortavelmente instalada na vida – ao ponto de até ter um motorista (Hélder Braz) e tratar o médico pelo nome próprio –, todos os outros vivem na mesma casa, num bairro popular de Buenos Aires, sob a proteção tutelar da Avó (Antónia Terrinha).

E é a casa que abre ao olhar do espectador a mais completa disfuncionalidade destas personagens “vivendo sobre a pressão da necessidade”, como enfatiza Pedro Carraca, que encena pela primeira vez em português A omissão da família Coleman (os Artistas Unidos haviam feito, em 2017, uma leitura  para a Antena 2), a peça mais famosa de Tolcachir, autor argentino muito apreciado pela companhia fundada por Jorge Silva Melo, que chegou a encenar Emília, capítulo posterior da informalmente chamada Trilogia da Família (de que faz parte O Vento num Violino, peça também já levada a cena pelos Artistas Unidos).

Mas, é pertinente voltar à origem deste texto habitado por uma família estraçalhada, a que Tolcachir e a sua trupe começaram a dar vida há cerca de 20 anos, durante a enésima crise política, financeira e social que assolou a Argentina – no caso, aquela que ficou conhecida por El Cacerolazo.

No final de 2001, ao mesmo tempo que as ruas se agitavam e a Argentina vivia um dos seus períodos mais tumultuosos, Tolcachir debutava como dramaturgo, absorvendo meticulosamente a improvisação dos atores, ou melhor, do grupo de amigos que reunia no seu apartamento, em Buenos Aires. Ao longo de cerca de um ano, viriam a criar, como uma espécie de modo de sobrevivência, a peça que, anos depois, se tornaria um dos maiores fenómenos do teatro argentino. Antes da digressão internacional, que passou por Lisboa, A omissão da família Coleman terá feito mais de duas mil representações, entre o apartamento do dramaturgo e encenador onde tudo começou e os palcos mais convencionais.

Comigo, nunca faremos este texto”,

vaticinou Jorge Silva Melo

Tolcachir e a sua companhia Timbre 4 passaram pelo Centro Cultural de Belém, em 2009, com A omissão da família Coleman. Na sala, estava um espectador especialmente atento que haveria de clamar “obra-prima!” Era Jorge Silva Melo que, siderado com o que vira, logo considerou ser impossível fazer a peça tão bem quanto os artistas argentinos que tanto o entusiasmaram. Pedro Carraca, que haveria de estar na leitura que os Artistas Unidos fizeram da peça anos depois, contrariava o mestre, tentando fazer ver que só uma ínfima parte do público poderia estabelecer comparação. Afinal, fora apenas uma récita no CCB “e eu, como tanta gente, não a viu.”

Contudo, “o Jorge era irredutível, considerava o texto impossível de encenar àquele nível”, lembra Carraca. Mas, nos Artistas Unidos, “muitos de nós ambicionávamos poder fazê-lo” e, “agora, chegou a altura certa para arriscarmos este texto que é brutal, exigente para os atores porque é construído a um ritmo infernal” como se estivesse permanentemente colado ao quotidiano.

Era o próprio Tolcachir, há uns anos, ao jornal Folha de São Paulo, que garantia pretender, com esta peça, afetar o espectador de maneira a que ele se esqueça que o que está a ver é, tão só, um espetáculo de teatro.

Como na vida real,

aqui “há muito poucas certezas”

O segredo do sucesso de A omissão da família Coleman não estará tanto na sua pertinência política, nem sequer na eventualidade de encerrar um estudo sociológico sobre a desagregação da família. O verdadeiro motor da peça são as ambiguidades e incertezas em torno das suas personagens, tão vividas e tão próximas que parecem ser reconhecíveis a qualquer espectador em qualquer parte do mundo, mesmo tendo nascido no fervor das convulsões sociopolíticas argentinas.

“Quando iniciámos os ensaios, os atores pareciam estar bastante certos sobre quem são elas, mas com o desenrolar dos trabalhos fomos percebendo que Tolcachir apenas parece contar muito sobre as personagens. No fundo, ele diz-nos quase nada sobre elas”, lembra Carraca.

A inteligência do texto está no modo como parece oferecer tantas certezas e, subitamente, tudo ser baralhado pelas próprias personagens que mentem, manipulam e enganam. Porém, segundo Carraca, “não é por maldade que o fazem, mas por necessidade de sobrevivência. E, aqui, toda e qualquer ação de cada uma delas parece passar por se libertarem daquela casa.”

Embora longe de ter o tempo que Tolcachir teve com os seus atores para fazer crescer as personagens da peça, Carraca reúne neste espetáculo um elenco à altura da vertigem e da fluência do texto original, construindo um espetáculo permanentemente vivo e desafiante. Fica a certeza, cremos nós, de que perante o olhar dos Artistas Unidos sobre A omissão da família Coleman, o autor não sentiria defraudada a sua pretensão de, a espaços, até podermos estar a testemunhar a vida real. Mas, tudo isto é teatro. E do bom.