Cinco livros de Abril

O Portugal de Abril visto pelo romance, a poesia e o conto

Cinco livros de Abril

Quase meio século depois, escolhemos cinco obras literárias que, de diferentes formas, espelham o espírito da Revolução de 25 de abril de 1974. Livros que a prenunciam, a celebram, a problematizam ou, à distância, lhe servem de balanço. Uma coletânea de poemas, um conto e três romances para procurar entender melhor Portugal: o muito que mudou com a Revolução dos Cravos e o que falta cumprir.

 

Todos os livros sugeridos, nas suas várias edições, podem ser requisitados gratuitamente nas 16 Bibliotecas Municipais de Lisboa.

José Cardoso Pires

Dinossauro Excelentíssimo

“O Dinossauro, atrás da secretária dourada, sua varanda, suas patas leoninas, parecia um sonâmbulo pousado num sonho desértico. (…) Nunca alguém lhe diria que há muito tinha perdido o traço humano e que já projetava para longe uma sombra de monstro de solidão, dorso ondulante, a errar por paisagens crepusculares de cinza e metal”. Dinossauro Excelentíssimo foi editado pela primeira vez em 1972, com ilustrações e capa de João Abel Manta, provocando acesa discussão na Assembleia Nacional. “Devo-lhe a eles uma parte do êxito deste livro”, escreveria mais tarde Cardoso Pires. Trata-se de uma sátira à figura de Oliveira Salazar, ao seu regime e instituições. Uma fábula, como lhe chamou o autor, “porque se passa no tempo em que os animais falavam e os homens sufocavam”. Dinossauro Excelentíssimo, não deve, obviamente, ser pensado como um texto sobre o 25 de Abril, mas como uma expressiva alegoria que tem a revolução como horizonte.

Manuel Alegre

País de Abril

A antologia País de Abril reúne 29 poemas de Manuel de Alegre, alguns escritos antes da revolução de 1974 que falavam já de abril e de cravos vermelhos. Poemas de Praça da Canção, editada em 1964, e d’ O Canto e as Armas, de 1967. Em O Canto e as Armas, por exemplo, quatro versos de Poemarma parecem anunciar, com a precocidade de sete anos, o primeiro comunicado da Revolução:Que o poema seja microfone e fale / uma noite destas de repente às três e tal / para que a lua estoire e o sono estale / e a gente acorde finalmente em Portugal”. Alguns destes poemas foram cantados por grandes intérpretes, incluindo a própria Amália Rodrigues que gravou Trova do Vento que Passa, com música de Alain Oulman, antes da Revolução de 1974. País de Abril inclui também poemas escritos  durante o período revolucionário, e publicados, anos depois, em 1981, na obra Atlântico.

José Saramago

Levantado do Chão

Publicado em 1980, Levantado do Chão é o primeiro grande romance de José Saramago. “Um livro que quis aproximar-se da vida, e essa seria a sua mais merecida explicação”, escreveu o autor. De facto, a obra acompanha o quotidiano de uma família rural alentejana, os Mau-Tempo, durante os primeiros 75 anos do século XX, num ambiente real de exploração, desemprego e fome, retratando a sua luta face às forças opressoras: os latifundiários, as forças da ordem e a Igreja. O livro termina nos dias subsequentes à Revolução de 25 de Abril de 1974. Após a constatação de que pouco mudou no Alentejo – “andam aí a rádio e a televisão a pregar democracias e outras igualdades, e eu quero trabalhar e não tenho onde, quem me explica que revolução é esta” -, num dia sob um “sol de justiça”, os trabalhadores unem-se e ocupam as terras: “Vão todos, os vivos e os mortos. E à frente, dando os saltos e as corridas da sua condição, vai o cão Constante, podia lá faltar, neste dia levantado e principal.”

João Tordo

Anatomia dos Mártires

“Julgo que a literatura é sobretudo lenda, novas interpretações do real. Para entender a história, por vezes, a melhor maneira é ficcioná-la”, diz-nos o escritor João Tordo. Este livro é a história de uma obsessão – a do autor e a do protagonista, um jornalista, ambos nascidos após o 25 de Abril de 1974 – pelo mito de Catarina Eufémia, a camponesa assassinada que se tornou um ícone revolucionário. O jovem jornalista investiga a vida de Catarina descobrindo, nesse processo, que a “existência é indissolúvel da memória dos mortos” e que “um mártir é alguém que tem a razão do seu lado e ainda assim fracassa”. A partir daí, escreve uma narrativa singular que não “seria mais um artigo, sequer um relato ou uma ficção ou um ensaio (…) mas a súmula de todas essas coisas (…) uma investigação do assassinato de uma camponesa em 1954 e como esse momento continuava a reverberar no presente (…) a desconstrução de uma mártir a partir da qual se entenderia todos os outros mártires (…) e eu compreenderia o passado, portanto, o presente e o futuro.”

Lídia Jorge

Os Memoráveis

Os Memoráveis, é uma lucida e corajosa revisitação dos mitos da Revolução de Abril. Ana Maria Machado, uma repórter portuguesa em Washington é convidada, em 2004, a fazer um documentário sobre a Revolução. A repórter forma uma equipa e toma como ponto de partida uma fotografia de um jantar em agosto de 1975, que reúne vários intervenientes no golpe de estado, entrevistando-os trinta anos depois. A utopia “de encontro à banalidade dos dias” levou ao desencanto pela construção da “república da pena”, e por um “povo que foi à sua vida, [que] não tinha fome nem sede de justiça”. Um dos protagonistas apresenta a sua síntese irónica da revolução: “Progressão, denegação, concurso de televisão”. Porém, este romance pretende ser uma homenagem ao 25 de Abril e projetar o seu exemplo como motivo de esperança no futuro. Por isso, à serie de entrevistas que constituem a reportagem – “a realidade” – segue-se o argumento do documentário – “a celebração do mito”.