sugestão
Os livros de março
Sete propostas de leitura
A 21 de março celebra-se o Dia Mundial da Poesia. A Agenda Cultural de Lisboa sugere a leitura de As Canções de Bilitis, obra de perfumada sensualidade que Pierre Louÿs compôs procurando um equivalente moderno da poesia clássica grega. Mas, como nem só de poesia vive o leitor, propõe igualmente três contos de Franz Kafka, uma narrativa fantástica de Robert Louis Stevenson, um romance psicadélico de Kurt Vonnegut, uma novela singular do Marquês de Sade, um estudo sobre Espinosa e Leibniz de António Borges Coelho e uma biografia de Nelson Mandela para os mais novos. No advento da primavera, dedique-se aos bons livros.
Pierre Louÿs
As Canções de Bilitis
Pierre Louÿs (1870/1925) foi o autor da novela A Mulher e o Fantoche (que inspirou três adaptações ao cinema, duas delas verdadeiras obras-primas: The Devil Is a Woman de Josef Von Sternberg, 1935, e Este Obscuro Objeto do Desejo de Luis Buñuel, 1977) do romance Afrodite, uma das obras com que pretendia “pôr a viver de novo a Antiguidade”, e do Manual de Civilidade para Meninas, clássico da literatura pornográfica. Os seus escritos evidenciam um finíssimo prosador e poeta, expoente do esteticismo decadente e do simbolismo tardio. As Canções de Bilitis foram publicadas em 1894 como traduções de Bilitis, poetisa grega do século VI a.C. Narram, por ordem cronológica, a sua adolescência, um amor infeliz e um filho que abandona, a sua iniciação no amor sáfico e a sua afeição por Mnasídica, uma jovem da sua idade, e a sua vida de cortesã. As Canções são, no entanto, uma pura criação de Pierre Louÿs; a poetisa Bilitis nunca existiu fora da sua imaginação. Este embuste literário permitiu-lhe, para além de mostrar a sua real erudição, criar um equivalente moderno da poesia grega, dissimular-se para escrever textos ousados e mistificar especialistas e catedráticos, saciando-se do desprezo que sentia pela Universidade. Versão portuguesa de Júlio Henriques.
Kurt Vonnegut
Matadouro 5
Kurt Vonnegut (1922-2007), herói da contracultura americana, senhor de um estilo muito pessoal e imaginativo, apelidado de “wide screen baroque”, misto de pessimismo, sátira e humor negro, integra frequentemente nos seus livros elementos de ficção científica numa vasta reflexão sobre a guerra, a condição humana e a impossibilidade de falar verdade. O escritor demorou 20 anos a transformar a sua experiência de prisioneiro na II Guerra Mundial neste romance que constitui a sua obra-prima. Billy Pilgrim, o protagonista, encarcerado pelo exército alemão na cave de um matadouro em Desden, tal como o autor, assiste ao bombardeamento americano da cidade, “o maior massacre da história da Europa”. Nesta obra singular, revive esse acontecimento trágico, despega-se do tempo e convive com os habitantes de um planeta longínquo, Tralfamadore, em busca de sentido para um mundo à beira da insanidade ou, nas palavras de Vonnegut, “a tentar reinventar-se e reinventar o seu universo”. Romance psicadélico, no qual passado, presente e futuro formam um só momento, cruza horror, alucinação e riso. “A prosa de Vonnegut, mesmo quando lida com o horrendo, assobia uma melodia alegre”, escreve Salman Rushdie no prefácio da presente edição. Alfaguara
Franz Kafka
Punições
Quando damos por nós a ter um dia esquisito, podemos pensar que as narrativas de Kafka fazem da vida de qualquer ser humano uma experiência de total normalidade. Este livro reúne três dos mais célebres textos do autor checo: A Sentença (1913), A Metamorfose (1915), e Na Colónia Penal (1919). Da escrita de Franz Kafka, cheia de observações oblíquas que imobilizam a narrativa como num pesadelo, também se pode dizer que castiga os leitores mais apressados, que somos praticamente todos nós hoje, formatados pela atenção ziguezagueante a que nos obrigam os conteúdos online, onde gastamos a maior parte do tempo. Olhamos para fora e as histórias de Kafka pedem-nos que olhemos para dentro. As três novelas aqui apresentadas são pequenos tratados sobre o fracasso, sobre a pressão exercida no indivíduo pelas famílias e pelas instituições, cujos elementos repressivos Kafka antecipou relativamente ao curso mais negro da História do século XX. Uma nota final para a mais importante de todas: A Metamorfose influenciou toda a criação posterior sobre a humanidade que existe no monstro, e o lado absurdo da existência humana. [Ricardo Gross] Cavalo de Ferro
Robert Louis Stevenson
O Estranho Caso do Dr. Jekyll e de Mr. Hyde
Quando este título, um dos mais célebres da literatura fantástica, foi escolhido para integrar a Biblioteca António Lobo Antunes, coleção de livros escolhidos e prefaciados pelo escritor português, o autor de Fado Alexandrino escreveu: “O conto pode ser lido de muitas maneiras: como um reflexo da tradição calvinista escocesa em que [Stevenson] foi educado, como um prolongamento das teorias post-darwinianas da animalidade do homem, como a luta entre a nossa natureza e a consciência dela, etc. O que me interessa, no entanto, não é nada disso, mas a prosa deslumbrante difícil de dar em português e uma descida inesquecível às mais fundas sombras do coração, articulada, paradoxalmente, de modo luminoso.” Publicado em 1886, O Estranho Caso do Dr. Jekyll e de Mr. Hyde, é um clássico intemporal sobre os polos opostos que dividem a natureza humana: a eterna luta entre o seu lado bem e o seu lado mau. Vladimir Nabokov considera, no posfácio da presente edição, que este livro “é também uma fábula mais próxima da poesia que da prosa comum, e por essa razão pertence e à mesma categoria artística que, por exemplo, Madame Bovary ou Almas Mortas.” Relógio D’Água
António Borges Coelho
Espinosa e Leibniz
O historiador António Borges Coelho publica, aos 94 anos, um novo livro dedicado ao estudo de dois filósofos: Espinosa (1632-1677) nascido em Amsterdão, descendente de cristãos-novos portugueses, e Leibniz (1646-1716) nascido em Leipzig, proveniente de uma família luterana com origem eslava. A investigação assenta numa das obras fundamentais de cada um dos filósofos que acompanham a presente edição traduzidas pelo autor. O estudo sobre Espinosa procura “um falar por dentro do universo de sentido do Tratado sobre a Emenda do Entendimento; e uma incursão nos problemas ideológicos do século XVII europeu, em especial nos que afetaram as nações ibéricas (Portugal sobretudo) e diretamente a comunidade judaico-portuguesa de Amesterdão”. A partir de Discurso de Metafísica, o estudo sobre Leibniz “pretende analisar os fundamentos científicos em que pousaram as colunas do sistema leibniziano, pretende descobrir os caboucos gnoseológicos em que, segundo ele, assenta a ciência”. No decurso do trabalho, o historiador considerou fundamental “uma referência à época, ao seu clima ideológico e às atitudes que o pensador de Hannover tomou em vida. Os breves traços epocais e biográficos documentarão por fora o seu pensamento.” Caminho
Marquês de Sade
Eugénie de Franval
“Nada existe de verdadeiro no mundo, nada que mereça louvor ou censura, nada que seja digno de ser recompensado ou punido, nada que seja aqui injusto, não seja legítimo a quinhentas léguas de distância, nenhum mal é real, em suma nenhum bem é constante”. Estas palavras proferidas pelo protagonista masculino desta obra podiam facilmente ser associadas ao seu autor, o escritor libertino Marquês de Sade. Porém, não neste livro singular que, segundo Susan Sontag, “apresenta uma história moral sobre a amoralidade que [Sade] sempre defendeu”. De facto, em Eugénie de Franval, o polémico autor denuncia os efeitos nefastos da sua própria filosofia. A novela aborda de forma expressa o tema tabu do incesto através do exemplo de um homem que a cargo da educação da filha faz uma experiência: como se desenvolverá uma jovem criada sem princípios morais e ética? Sem os filtros que a sociedade coloca à manifestação da sexualidade e do desejo? A jovem Eugénie torna-se num ser sem coração concebido unicamente para satisfazer caprichos e para alimentar perversões. Esta obra, que questiona os princípios de desvio e transgressão habitualmente professados pelo escritor, tem tradução portuguesa do poeta Pedro Tamen. E-Primatur
María Isabel Sánchez Vergara e Alison Hawkins
Nelson Mandela
Em 2005, Jack Lang publicou uma biografia de referência sobre Nelson Mandela estruturada num prólogo e cinco atos, reminiscentes da tragédia clássica. No I Ato Mandela é Antigona, privado pelo apartheid dos seus direitos humanos. No II Ato é Espártaco, revoltando-se contra as forças do regime sul-africano. No III Ato é Prometeu, agrilhoado 27 anos na prisão. No IV Ato é Próspero, benfeitor da humanidade e vencedor de Calibã. No V Ato é o rei Nelson, velho sábio e guia venerado. Uma obra notável que nos interpela mais do que qualquer relato rigoroso de factos. Cabe, agora, a vez da escritora María Isabel Sánchez Vergara e da ilustradora Alison Hawkins darem a conhecer aos mais jovens a vida e obra desta figura que se tornou num ícone mundial. A infância sofrendo na pele as divisões raciais na África do Sul e o tratamento injusto do seu povo. O protesto veemente, em adulto, contra o Apartheid, um sistema que separava as pessoas com base na cor da sua pele. A prisão e a sua longa caminhada para a liberdade, e o cargo de primeiro presidente negro do seu país. Dez anos depois da sua morte, este livro constitui um justo tributo a um homem que personificou a grandeza humana. Nuvem de Letras