Uma casa de mulheres no Portugal rural

"Fonte da Raiva" em estreia no Teatro São Luiz

Uma casa de mulheres no Portugal rural

A partir da peça Danças a um Deus Pagão, de Brian Friel, Cucha Carvalheiro recria um retrato do Portugal rural "pequenino e cinzento" do início da década de 1960, traçado a partir de memórias pessoais. Fonte da Raiva é uma comédia doce e amarga sobre tempos difíceis, que conta a história de cinco irmãs numa pequena e isolada aldeia da Beira Alta, com a guerra colonial em pano de fundo. Estreia a 1 de fevereiro, no São Luiz Teatro Municipal.

Para muitos, o país rural mostrado no mais recente trabalho de Cucha Carvalheiro é distante, porém, ainda muito presente nas memórias de quem viveu os tempos sombrios da ditadura. Para os mais jovens, o que se conta no espetáculo poderá parecer saído de um país demasiado longínquo para parecer real. Contudo, passaram pouco mais de seis décadas sobre aquele ano de 1962 em que a atriz e encenadora situou a ação de Fonte da Raiva, peça onde “enxerta” Danças a um Deus Pagão, texto do dramaturgo irlandês Brian Friel, às suas próprias memórias pessoais e familiares.

Como em tantas aldeias isoladas nas serras do interior, vivia-se num profundo obscurantismo, alimentado por crendices de toda a ordem e um reverencial temor a Deus, às autoridades e ao olhar e apreciação dos outros. Esse Portugal, tutelado pela figura do ditador Salazar, surge aqui enquadrado pela “memória infantil” de Amélia, que vinda deste nosso presente como que regressa à velha casa na aldeia de Fonte da Raiva, onde pelos seus oito anos vivia com a mãe, Ana, e as suas quatro irmãs.

O espetáculo começa com a euforia que surte a chegada de um rádio a pilhas à casa das irmãs Paiva. Como que por magia, o aparelho parece quebrar o isolamento a que aquelas mulheres estão votadas, agravado pelo modo como são encaradas pelos outros aldeões.

Em causa estão episódios que pairam sobre a família, os quais, como enfatiza a mais velha das irmãs, professora e principal sustento da casa, mereceram a reprovação da aldeia. Entre eles, há a suspeita de que uma das irmãs é “fissureira” (ou seja, lésbica); está o regresso abrupto do irmão Afonso, missionário em África, que terá sido expulso pelas autoridades por defender a independência das colónias e se ter convertido ao paganismo; e a condição de mãe solteira de Ana, mais ainda por ter ficado grávida de Zé “Café”, um estudante negro de Coimbra, pai de Amélia.

À primeira vista, Fonte da Raiva pode ser entendido com um espetáculo autobiográfico. Cucha Carvalheiro esclarece: “esta não é de todo a minha história, mas sim a de Amélia, uma personagem ficcional na qual plantei memórias da minha infância.”

A autora e encenadora explica: “sendo o meu pai natural de uma aldeia da Beira Alta, passei várias vezes férias na casa da minha avó, tendo testemunhado muitas das situações que se passam na peça, nomeadamente aquela do Entrudo, em que a aldeia lavava publicamente a roupa suja, e que inspirou a revelação da homossexualidade de uma das tias de Amélia.”

Por outro lado, “há as minhas memórias africanas, já que vivi parte da infância em África, no Huambo, recordando num período mais tardio, a tomada de consciência das injustiças e do racismo.”

Sendo filha de um colono “muito especial” pró-independência, e de uma mãe africana, filha de uma negra, Cucha Carvalheiro colocou na personagem do padre dissidente muitas frases que ouviu da boca de seu pai. Outra inspiração foi um dos seus primos direitos, que tal como Zé “Café” era um negro nascido e criado na “metrópole”, com o seu quê de hedonista e de bom dançarino.

Quantos às tias de Amélia, provindas diretamente das cinco irmãs da peça de Friel, a autora deu a cada uma delas traços que reconhecia nas suas primas beirãs e em muitas outras mulheres de aldeia daquele tempo. “O Friel situa a ação na sua Irlanda do Norte, em 1936, e eu no interior de Portugal, em 1962, segundo ano da guerra colonial. Isso porque aquilo que verdadeiramente me interessava em Danças a um Deus Pagão era a estrutura da peça. Pretendi mesmo foi falar dos meus dois lados, o africano e o beirão, e da guerra colonial que marcou profundamente a minha adolescência, sublinha a autora.

“No fundo, procuro através do teatro mostrar aos meus sobrinhos um pouco da história da nossa família e a todas as outras pessoas, sobretudo às mais jovens, que não foi assim há tanto tempo que vivemos estes tempos sombrios aos quais não podemos de modo nenhum voltar”, conclui. E é com ironia, humor, lágrimas, mas também muita alegria que, “sem dogmatismos”, a autora coloca em Fonte da Raiva uma ampla reflexão sobre a condição da mulher, sobre o preconceito e a discriminação, sobre o racismo e a guerra.

Para além da própria Cucha Carvalheiro, que interpreta Amélia, a narradora desta história, o espetáculo conta com interpretações de Sandra Faleiro, Inês Rosado, Júlia Valente, Joana Campelo e Leonor Buescu, nos papéis das irmãs Paiva, Luís Gaspar, como padre Afonso, e Bruno Huca, no papel de Zé “Café”. O espetáculo está em cena na sala principal do Teatro São Luiz, até 12 de fevereiro.