Noiserv

“Desde que iniciei a minha vida artística, gosto de tudo o que puxe pela imaginação ou que seja um desafio”

Noiserv

Inovador, original e perfecionista são alguns dos adjetivos que se aplicam a Noiserv. Conhecido por tocar vários instrumentos em palco e pela criatividade que coloca em tudo o que faz, o músico gosta de se reinventar e de se lançar em novos desafios, como o prova a edição do seu primeiro livro (lançado o ano passado). Este mês, Noiserv revisita a sua discografia em atuações intimistas e irrepetíveis numa temporada de concertos no Teatro Taborda.

O último disco, Uma Palavra Começada por N, saiu há dois anos. O que significa este título?

Se Noiserv não começasse por ‘N’, eventualmente o título não seria este. O que mais gosto é o facto de poderem ser várias coisas. Cria, em que lê, uma certa criatividade, pode ser qualquer palavra começada por ‘N’. Muita gente se pergunta a que palavra me estou a referir, e todo esse jogo dá alguma dimensão ao disco e transmite a ideia de que tudo é um bocadinho mais de quem ouve. Parece que o título não se fechou naquilo que fiz, fica aberto à criatividade de cada um.

Este disco foi sendo revelado aos poucos, como vários capítulos de uma história. A ideia era que as pessoas o fossem saboreando devagar?

Quando se lança um disco há muito a tendência para escolher dois ou três singles, que serão passados pelas rádios. Há muitos discos dos quais as pessoas apenas conhecem duas ou três músicas, o resto só conhece quem o ouvir a fundo e isso normalmente é um número muito reduzido de pessoas. Achei que era interessante dar a cada música o mesmo tempo para ser ouvida. A isto juntou-se o conceito de criar um vídeo para cada música. Foi uma ideia em cima de outra que acabou por resultar nesses vídeos todos, que saíam um por mês. Vivemos numa altura em que, no dia a seguir a um disco sair, parece que já é antigo. Assim, cada música seria antiga de cada vez, mas com um bocadinho mais de tempo.

Perdemos o ritual de desfrutar de um disco em toda a sua plenitude, das canções ao livrinho com as letras?

Esta era digital tem grandes vantagens: há muitos mais artistas a chegar às pessoas, o que é bom. Antigamente havia uma ditadura das grandes editoras, só chegava ao público quem tinha uma estrutura fortíssima, não só para gravar o disco, mas também para o divulgar. É bom que já não seja assim, mas por outro lado perdeu-se esse hábito. Quando saía um disco de uma banda que eu gostava, ficava duas ou três semanas a ouvi-lo intensamente, nem sabia quais eram os singles. O primeiro disco dos Pearl Jam, por exemplo, conheço as músicas todas da mesma maneira, porque ouvia o disco inteiro centenas de vezes. Isso mudou.

No trabalho anterior, 00:00:00:00, já havia algumas canções com uma ou outra frase em português, mas eram sobretudo músicas instrumentais. Este disco é cantado integralmente em português. Porquê essa mudança?

Gosto de fazer coisas diferentes, assusta-me quando sinto que estou a fazer a mesma coisa. A cada disco que faço, gosto de explorar instrumentos e sonoridades novas. Esta questão da língua foi também por isso. Na altura em que lancei o Almost Visible Orchestra (A.V.O.), em 2013, comecei a trabalhar em ideias novas, mas achei que estava muito no mesmo sítio. Pensei em formas de contrariar isto para não fazer um disco igual e a ideia de fugir às diversas camadas e dedicar-me mais ao piano, que é um instrumento de que gosto muito e que nem sempre tem muito espaço nos meus discos, foi o que me deu alguma leveza. Depois de fazer essa experiência no 00:00:00:00 (2016), no disco seguinte (Uma Palavra Começada por N) quis voltar à complexidade das várias camadas, mas cantando integralmente em português. Quis aceitar o desafio de fazer um disco em português só para experimentar, até porque a métrica das palavras em português é realmente diferente. O desafio foi esse: um disco com várias camadas e cantado em português.

“Cantar sobre o amor – falhado ou bem-sucedido – é algo que já foi tão bem feito por outros que isso sempre me disse muito pouco”

Gostas mais de te ouvir cantar em que língua?

Gosto de cantar nas duas línguas. Talvez em português possa parecer que estou a falar mais diretamente para as pessoas. Sei o que estou a dizer quando canto em inglês, mas em português é como se as palavras tivessem uma carga maior, é tudo mais direto, parece que estou a falar diretamente para as pessoas. Cantando em inglês não sinto exatamente a mesma coisa. Também pode ser porque as letras deste disco são mais densas do que as do disco de 2013. Num disco inteiro em português as pessoas ficam mais atentas às palavras. Tenho mais dúvidas na escolha das palavras quando escrevo em português.

As letras falam sobre os teus dilemas e pensamentos de forma quase filosófica. Consideras-te uma pessoa introspetiva?

Penso muito sobre determinados assuntos e as letras refletem isso. Cantar sobre o amor – falhado ou bem-sucedido – é algo que já foi tão bem feito por outros que isso sempre me disse muito pouco. Faz-me mais sentido cantar sobre questões como: o que é que andamos cá a fazer; porque é que agimos de determinada maneira; os nossos medos e inquietações – isso é o que me faz sentido cantar. Quando estou a escrever estou a conversar comigo, as minhas letras nunca são sobre coisas hipotéticas que me podem ter acontecido. São sentimentos – bons ou maus – que estou a ter naquela altura.

O ano passado editaste o teu primeiro livro, três-vezes-dez-elevado-a-oito-metros-por-segundo. Era um desejo antigo?

Desde que iniciei a minha vida artística que gosto de tudo o que puxe pela minha imaginação ou que seja um desafio. Fazer um disco, um livro ou um filme são tudo momentos em que a tua criatividade, imaginação e perfecionismo ganham um destaque maior. Dá-me muito gozo fazer uma coisa que nunca fiz, dedicar-me de forma muito intensa a descobrir como é que a posso executar. O livro iria, inevitavelmente, acabar por acontecer. A base para esta ideia começou há uns seis anos, quando uma amiga me pediu para fazer um conto para uma compilação de contos. Quando surgiu este desafio comecei a experimentar e isso deu-me um prazer grande. Na altura, fiz uma versão resumida ou muito pouco explorada deste livro. Comecei a escrever uma história que eu próprio não sabia para onde é que ia, fui descobrindo à medida que ia escrevendo. Fiquei sempre com a ideia de que eu próprio não tinha percebido a história toda, ou que não a tinha terminado. Pensei que dava para desenvolver mais e que, fora da compilação de contos, ia conseguir explorar melhor não só a própria mensagem, mas também o grafismo do livro. Aos poucos, peguei nas pontas soltas e durante dois anos dediquei-me a isso. Quando percebi que a história estava fechada, transferi tudo para o papel e transformei-a isto num livro. O que eu queria fazer era uma edição muito cara, mas tudo isto coincidiu com a pandemia, quando surgiram apoios para os profissionais da cultura. Consegui submeter o apoio para a edição do livro e deu-se uma sucessão de situações que fizeram com que o livro saísse nesta altura. Porque é que a história é esta? Não sei, porque é uma coisa em que penso com frequência: a maneira como olhamos para os outros, o que somos e não somos, e isso está tudo nesta história. Ao contrário de uma letra de uma música, em que as coisas ficam muito no ar, no livro dá para explorar muito mais a história. O livro pode ter uma narrativa muito concreta, mas é possível ir a uma dinâmica mais metafórica onde, se as pessoas se conseguirem desligar do lado concreto da história, percebem que há várias leituras possíveis. Foi um gozo muito grande perceber que podia haver ali três ou quatro histórias diferentes.

Em janeiro atuas no Teatro Taborda em seis datas. Vão ser seis concertos diferentes?

A minha ideia, até porque há pessoas que compraram bilhete para mais do que uma data, é que os concertos não sejam iguais. Gostava de fazer experiências novas, de começar com uma música que não toco há muito tempo e pegar em músicas que têm ficado de fora dos concertos mais recentes. Acredito que não haverá um conceito ligado a cada data. Esta temporada tem dois pontos principais: que a minha música fique ali instalada, a pairar durante todos aqueles dias (para contrariar a rotina normal de chegar, montar, tocar, desmontar e sair) e atuar numa sala acolhedora e bonita.

As tuas atuações são sempre criativas. O que preparaste para esta temporada?

Nos concertos de apresentação do disco novo toco dentro de um cubo, há um jogo de câmaras e isso vai-se manter. Tenho tocado em salas bastantes grandes, mas aqui as pessoas vão ter oportunidade de ver tudo isso mais de perto. A sala leva cerca de 120 pessoas por noite, mas é tão acolhedora e pequenina que a plateia está praticamente encostada a mim. Estou muito próximo das pessoas da 1ª fila, há uma unidade maior em tudo o que está a acontecer.

Para quando o novo disco?

Num canto da minha cabeça está sempre essa preocupação. Felizmente tenho feito muitos projetos na área do teatro, por isso ainda não tive tempo para começar a trabalhar no novo disco. Tendo noção do tempo que demoro a fazer as coisas, para o ano não será seguramente, talvez em 2024. As coisas demoram muito tempo a fazer, mas prefiro que assim seja. Pior do que me sentir intimidado por estar a tocar demasiado perto do público, é lançar um projeto em que não estou 100% confiante. É preciso chegar a esse lugar de satisfação total com as músicas para depois as poder mostrar, e isso demora tempo.