Daniel Gorjão

Em 'Tudo sobre a Minha Mãe' é "um enorme orgulho dirigir este elenco de grandes atrizes"

Daniel Gorjão

A partir do aclamado filme homónimo de Pedro Almodóvar, o australiano Samuel Adamson adaptou ao teatro Tudo sobre minha mãe, peça que se tornou num sonho antigo do encenador, cofundador do Teatro do Vão e programador da RTP2 Daniel Gorjão. O espetáculo estreia no próximo dia 11 no Teatro São Luiz, e junta em palco um fabuloso elenco de atrizes onde pontuam, entre outras, Sílvia Filipe, Catarina Wallenstein, Maria João Vicente e Maria João Luís.

Depois de um trágico e traumático acidente, Manuela parte para a cidade da sua juventude à procura do pai do filho. Ao longo dessa demanda, reencontra Agrado, uma velha amiga transsexual; conhece Rosa, uma freira grávida e seropositiva; e começa a trabalhar para Huma Rojo, a célebre atriz de teatro que involuntariamente está ligada ao acidente que lhe vitimou o filho…

Como é que esta peça se cruza no teu caminho?

Aconteceu há muitos anos, trabalhava eu ainda como ator com o Filipe La Féria. Ele teve a intensão de encenar o Tudo sobre a minha mãe, e eu sonhava interpretar o papel de Esteban, o filho da protagonista. A peça não se fez, eu deixei de ser ator e acabei por guardar a vontade de, um dia, ser eu a encená-la.

O filme é de 1999, a peça foi escrita uns anos mais tarde.

Terá sido por volta de 2008 que ouvi falar de uma adaptação do guião do filme ao teatro. Estava sempre muito atento ao que se passava na cena teatral londrina, e julgo ter dado conta da estreia no Old Vic [estreada em agosto de 2007, com encenação de Tom Cairns]. Foi assim que soube da existência da peça.

Eras fã do filme?

Sou grande admirador da filmografia do Pedro Almodóvar e Tudo sobre a minha mãe, de todos os filmes dele, é o meu preferido. Talvez isso justifique que ande há uns dez anos com o espetáculo na cabeça à espera de o concretizar.

Há diferenças significativas entre o filme de Almodóvar e a peça de teatro de Samuel Adamson?

A peça é muito bem escrita e o autor faz uma transposição muito competente do guião do filme para o palco. Existem diferenças, decorrentes sobretudo das linguagens do cinema e do teatro, mas no essencial, à exceção do final, tudo é muito fiel ao filme. Embora, na minha visão, sinta que a peça oferece uma maior redenção às personagens, e isso agrada-me bastante.

De algum modo, o filme acaba por permeabilizar o espetáculo?

O filme está muito presente, mas procurei distanciar-me. Não o fui rever propositadamente para a encenação, antes quis trabalhar o modo como o recordo, como o vejo dentro de mim. Aliás, esse distanciamento, por tudo aquilo que é o cinema e o que é o teatro, era fundamental.

Maria João Luís e Catarina Wallenstein em ensaio ©Estelle Valente

Mas, aqueles ambientes muito coloridos e quentes que são parte do ADN do cinema de Almodóvar têm, necessariamente, uma forte ligação ao enredo e às personagens. Pode-se fugir disso?

Ao colocar a peça num espaço abstrato, ao optar por uma cenografia muito limpa, não fugi, mas saí desses ambientes. Os figurinos, ao recusarem o realismo, ao lembrarem a alta-costura, ao sublinharem a cor e até sendo algo excessivos, acabam por remeter para a lembrança que guardo do filme. E, claro, a cor é essencial para transmitir a essência das personagens.

Portanto, a abordagem ao texto acaba por se tornar muito pessoal.

Digamos que, respeitando as regras que são exigidas pelos detentores dos direitos da peça, procurei algo meu, mais consentâneo com aquilo que tem sido o meu trabalho ao longo dos últimos anos, formalmente mais abstrato, mais dedicado ao corpo e ao movimento. Foi um longo processo, mas acho que o texto encaixou muito bem nas ideias que tinha para a encenação e que, muito provavelmente, não seriam as mais esperadas. Aliás, vi algumas encenações da peça em Inglaterra e até na Austrália, e em todas se procurava um ambiente mais naturalista e, de certo modo, mais convencional. Contudo, o Almodóvar está lá, e eu não quis fugir dele. Aquilo que procurei foi que tudo se cozinhasse de uma forma orgânica, bela e confortável para quem está a fazer o espetáculo.

Falavas das exigências dos detentores dos direitos da peça…

Foi uma luta de anos conseguir os direitos da peça, e depois de os conseguir deparar-me com o rigor exigido e as limitações que são colocadas. Nesse aspeto, este foi o projeto mais complexo em que me envolvi até hoje…

Podes elencar que tipo de limitações?

Uma delas é não ser permitido cortar texto. Para mim, isso foi complicado porque sempre encarei o texto como um elemento do espetáculo que tem de se encontrar com aquilo que pretendo transmitir. Outra, por exemplo, foi a obrigatoriedade de usar a música do filme, composta por Alberto Iglésias, que sempre me pareceu servir muito bem o filme e, admito, as abordagens mais convencionais em teatro. Porém, adaptei-me às circunstâncias e as circunstâncias adaptaram-se àquilo que pretendia para o espetáculo.

E a tradução? Calculo que também aí haja exigências…

Também. Ao ponto de ter de ser enviada uma retrotradução, ou seja, uma tradução em inglês da versão em português….

Tradução para português assinada por Hugo van der Ding…

Foi uma encomenda nossa. Comecei a trabalhar com uma tradução feita pela Maria Eduarda Colares, que o Filipe La Féria me emprestou, mas achei, passados mais de dez anos, que teria de ser muito mexida para a poder usar. Foi então que me ocorreu que o Hugo, de quem gosto muito, chegou a ser tradutor há muitos anos e desafiei-o. No fundo, a peça tem imenso humor e ele pareceu a pessoas indicada para a traduzir. E, ele fê-lo, e fez muito bem.

Se pensarmos que, do West End à Broadway, vários filmes de Almodóvar foram adaptados aos palcos, impõe-se perguntar a um homem de teatro: porquê?

Percebe-se o fascínio do teatro por Almodóvar pelas personagens que ele cria. Acho que todas elas são absolutamente teatrais. Isso foi, aliás, muito interessante perceber na versão do musical da Broadway Mulheres à beira de um ataque de nervos, que o Filipe La Féria encenou recentemente. Aquelas personagens são incríveis e, no seu exagero, no serem maiores do que a vida, percebe-se o porquê do teatro as querer resgatar do cinema e levar para o palco.

Tudo sobre a minha mãe reúne um elenco magnífico, juntando algumas das grandes atrizes do atual teatro português. Como foi conciliar as agendas?

Não foi nada fácil [risos], mas conseguimos e é, para mim, um enorme orgulho dirigir este elenco de grandes atrizes, de mulheres muito generosas que fazem o trabalho fluir com grande naturalidade. Como sempre procuro que aconteça nos meus trabalhos, quando penso numa personagem já a vejo numa atriz em concreto. Ou seja, procuro atrizes em que aquilo que é a personagem possa ressoar naturalmente dentro delas. Por exemplo, no Tudo sobre a minha mãe, a Maria João Luís interpreta a atriz Huma Rojo e passo a vida a dizer-lhe: “mas, tu és esta mulher!” E, como a própria Maria João assume, é mesmo.

Ensaio com as atrizes Sílvia Filipe e Gaya de Medeiros ©Estelle Valente

Assumes que este espetáculo procura também dar “visibilidade a intérpretes e corpos queer” e promover uma reflexão sobre temas como a identidade de género e a orientação sexual…

Da minha situação de privilégio tenho procurado, não só como encenador, mas também como programador de artes performativas na RTP2, proporcionar o acesso ao trabalho a minorias e diversificar a representatividade de criadores e artistas. Neste caso, fico muito feliz por ter uma atriz trans, a Gaya de Medeiros, a fazer o papel de Agrado. Só por isso, valeu a pena ter demorado mais de uma década a trazer esta peça para o palco. Recordo que, em 1999, quando Almodóvar realizou o filme, o papel foi interpretado por uma atriz cisgénero [Antonia San Juan], muito provavelmente porque seria impossível encontrar uma atriz trans.

No final, Pedro Almodóvar fazia uma extensa dedicatória a todas as mulheres, e refere três grandes atrizes – Gena Rowlands, Bette Davis e Romy Schneider – que são, aliás, bastante citadas ao longo do filme. Eras capaz de mencionar alguma, ou algumas atrizes, a quem dedicas este espetáculo?

Este espetáculo é dedicado à primeira atriz em quem pensei para o papel da “mãe”, a Maria João Abreu. Era uma atriz incrível, generosa, capaz de todo o tipo de registos interpretativos e que faz muita falta ao teatro português. Mas, estou feliz porque encontrei uma “Manuela” perfeita: a maravilhosa, a notável e de uma total entrega Sílvia Filipe. E, este espetáculo, merece-me ainda uma outra dedicatória dirigida à grande atriz Maria João Luís, que tenho o privilégio de dirigir, e é alguém que faz parte do meu percurso, da minha vida.