Histórias trágicas de medo e repressão

André Murraças leva "Sombras Andantes" ao Museu do Aljube-Resistência e Liberdade

Histórias trágicas de medo e repressão

Por ocasião da exposição Adeus, Pátria e Família, que assinala os 40 anos da descriminalização da homossexualidade e os quatro anos desde a consagração legal da autodeterminação de género em Portugal, André Murraças estreia, no Museu do Aljube, Sombras Andantes. Neste espetáculo, o autor conta histórias de homens e mulheres homossexuais desde o final da monarquia ao 25 de Abril, dando particular ênfase à violenta repressão de que foram alvo durante a ditadura.

Há um encadeado de tragédias pessoais que perpassa o mais recente espetáculo de André Murraças. Talvez por isso não seja mera estratégia cénica, após o prólogo, o autor, e único ator em cena, anunciar que, a partir daí, se manterá em silêncio, deixando para a voz off de Miguel Ponte a narração das histórias. Isto porque a comoção de as contar lhe embargaria a voz, e o espetáculo ficaria seriamente comprometido.

Em causa estão décadas de perseguição, de repressão e de estigmatização a homossexuais em Portugal. Murraças começa por olhar as décadas finais da monarquia e os primeiros anos da república, onde aquilo que as autoridades viam como “ultraje contra pudor” era motivo de riso n’ “os pêssegos” de Bordalo ou nos palcos da Revista. E, em 1912, é publicada a lei da mendicidade, onde se estabelece a criminalização do que se considerou “prática de vícios contra a natureza”. Esta lei só seria revogada em 1982, oito anos após o 25 de Abril.

Voltando atrás, o início dos anos 20 do século passado ficaria marcado pelo chamado “escândalo da Literatura de Sodoma”, que envolveu, sobretudo, os poetas António Botto e Judite Teixeira, censurados devido ao conteúdo homossexual das suas obras, Canções e Decadência, respetivamente. Aos pormenores sobre este episódio e as consequências que teve na vida dos seus protagonistas, Murraças junta ainda uma abordagem a dois casos de figuras públicas: o do bailarino Valentim de Barros (cujo comportamento efeminado e a homossexualidade o “nobelizado” Egas Moniz propôs curar) e o do dirigente do Partido Comunista Português Júlio Fogaça, que ainda hoje se encontra envolto em mistério.

Contudo, o maior protagonismo em Sombras Andantes vai para as histórias dos incontáveis anónimos que sofreram a tragédia de terem tido vidas incompletas, permanentemente condicionadas pelo medo e pela repressão.

“Cheguei a estas histórias recorrendo, sobretudo, aos arquivos da Polícia Judiciária”, explica o autor, lembrando que terão chegado aos nossos dias apenas cerca de uma centena de processos, de entre aquilo que se julga poderem ter sido milhares.

Embora esses arquivos “não elenquem os nomes das pessoas, mas apenas os crimes, muitos deles bastante pormenorizados”, Murraças conseguiu, complementando com outras fontes, como livros, dissertações e a própria informação que tem acumulado ao longo dos anos sobre o passado LGBT em Portugal, “perceber como era a vivência homossexual durante o Estado Novo”. Depois, “há ainda a representação da homossexualidade que é feita na literatura, na poesia, no teatro, na revista à portuguesa ou na imprensa da época.”

A partir daqui, é construído um solo teatral onde o documental se entrelaça com a ficção, recurso possível para trazer de volta estas vidas. “Ainda consegui ter alguns depoimentos pessoais que remontam aos anos 60 e 70”. Porém, lamenta o autor, “para trás, essas vidas tornaram-se praticamente invisíveis.”

Através do vídeo (onde pontuam prestações dos atores Flávio Gil, Francisco Goulão, Joana Manuel, João Sá Coelho e Miguel Ponte), do recurso ao teatro de sombras e a pequenos cenários criados pelo próprio, André Murraças traça ao longo do espetáculo uma cronologia da ditadura que é, simultaneamente, uma espécie de cartografia homossexual da cidade de Lisboa.

Do Cais do Sodré onde os marinheiros procuravam todo o tipo de aventuras; aos urinóis públicos do Rossio ou Praça do Comércio, onde tantos homens viviam clandestinamente a outra face das suas vidas; passando pelos engates no Príncipe Real ou pelas pensões em redor do Parque Mayer, onde a revista à portuguesa recorria até, certas vezes, a abordagens queer, a peça é um olhar urgente sobre uma outra dimensão da história de repressão e terror imposta pelo fascismo em Portugal ao longo de quase meio século.

Integrado na programação paralela à exposição Adeus, Pátria e Família, Sombras Andantes tem estreia agendada para 23 de setembro no auditório do Museu do Aljube, estando em cena apenas à sexta e ao sábado, até 1 de outubro.