Pedro Penim

"O teatro é uma arte do seu tempo, do aqui e do agora"

Pedro Penim

Em setembro de 2021, o encenador, ator, dramaturgo e cofundador do Teatro Praga estreava, no Teatro São Luiz, Pais & Filhos, incursão muito particular no romance homónimo de Ivan Turguéniev, onde se propunha uma reflexão sobre o conceito de família à luz das teorias queer. Agora, Pedro Penim está de regresso ao tema da “família” enquanto autor e encenador, com Casa Portuguesa, o espetáculo que é a sua primeira criação no Teatro Nacional D. Maria II após ter sido nomeado, há pouco mais de um ano, diretor artístico da instituição que o próprio assume como “a Casa do teatro português.”

Em Casa Portuguesa, embora sejam convocadas outras temáticas de que já falaremos, parece haver uma continuidade na reflexão sobre o conceito de família. Com o anterior espetáculo, Casa Portuguesa forma um díptico sobre o tema?

Não se trata de um díptico, mas de uma ideia de trilogia, que não estava de todo prevista quando escrevi Pais & Filhos, e que ficará completa, no próximo ano, com uma versão também escrita por mim da Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente.

Como é que percebeste que o tema não se encerrava no anterior espetáculo?

Talvez tenha sido quando acabei o Pais & Filhos e comecei a pensar neste espetáculo. Percebi haver uma lógica inerente às peças, onde faço uma reflexão mais alargada, e com pontos de vista específicos dependendo de cada uma delas, sobre o que é a estrutura familiar. Essa reflexão levou-me a pensar em como a célula familiar impacta na sociedade, como se altera e, como estrutura social, se liga à nossa vivência, à tradição ou à história.

E, como também é marca em muitos dos teus espetáculos, o ponto de partida é autobiográfico…

Acontece muitas vezes, no meu trabalho, os temas que estou a abordar relacionarem-se com factos autobiográficos ou com as preocupações que estou a viver. Mas, isso é algo que não vejo como uma escolha, até porque não acho que o teatro seja o meio e o lugar para fazer terapia ou para expurgar fantasmas. Entendo, isso sim, que se há um facto biográfico, seja do passado ou do presente, onde se investe muito do nosso tempo, do nosso pensamento e da nossa energia, naturalmente, e se é um artista, isso vai contaminar o que se está a criar, neste caso, mais concretamente, a escrever.

Se Pais & Filhos partia da experiência de tentares ser pai através de um processo de gestação por substituição, em Casa Portuguesa assumes partir do diário de guerra que o teu pai [Joaquim Penim] escreveu para ti e para o teu irmão, e que daria origem ao livro No Planalto dos Macondes.

O espetáculo nasceu, de facto, de um diário escrito em Moçambique, onde o meu pai esteve a fazer a guerra, forçado como quase todas as pessoas que por ela passaram. Para ser preciso, o diário a que me refiro é a adaptação de um outro diário que ele escreveu in loco, à época, e que anos mais tarde, já com alguma distância, também daria origem ao livro. Esse documento, com as histórias e a memória da guerra, acompanharam-me ao longo da vida e, conforme o tempo passava, a perceção que tinha de tudo aquilo ia-se alterando. Se no início me parecia um conjunto de histórias mais ou menos fantasiosas, nas quais não pensava muito, com o correr dos anos foi-me captando a atenção. Quando o meu pai publicou o livro, houve uma espécie de consciencialização e percebi claramente “isto aconteceu, e aconteceu ao meu pai”. Não era, portanto, lenda ou mitologia; era a história do meu pai, de uma geração antes da minha que, diretamente, esteve envolvida numa guerra.

Essa perceção daquela ser também a história de uma geração foi importante para a trazeres para o teatro?

A experiência daquelas pessoas tem uma implicação muito direta na história do meu país e no modo como esse mesmo país se relaciona com esta ferida na sua própria história. Contudo, para a peça, quis tratar o assunto de uma forma narrativa e não documental, até porque há artistas a fazê-lo muito bem. Logo, a abordagem é feita de uma forma ficcional, pelo que Casa Portuguesa não é a história do meu pai, mas uma narrativa inventada que se baseia em algumas das coisas pelas quais ele passou.

É isso que justifica que, desta vez, não estejas em palco?

Não senti necessidade de estar em cena. Em Pais & Filhos interessava-me refletir sobre a paternidade, por isso quis assumir com a minha presença e a minha história o ponto de partida para a peça, já que depois tudo se vai transformando em ficção. Neste caso, sempre foi claro para mim que não estava a escrever nem a minha história, nem a história do meu pai, mas sim uma história que parte dessa realidade. E aquilo que me interessa mesmo é refletir sobre uma ideia de masculinidade, sobretudo nesse tempo de guerra e fascismo, e de como essa ideia do que é “ser homem” se foi alterando e impactando na sociedade, logo e consequentemente, na família.

‘O humor faz parte da maneira como me expresso no teatro e, de uma vez por todas, tenho que assumir isso como intrínseco.’

Entretanto, há uma canção que até dá título à peça …

O fado Uma casa portuguesa que a Amália celebrizou pelos anos 50 e que terá sido escrito, precisamente em Moçambique, na década anterior. Ora, essa é uma canção que sempre me fez alguma confusão, com aquela letra muito identificada com o que era a vida portuguesa, a casa e a família no Estado Novo. Há muitas conversas à volta de se saber se a canção foi escrita com o propósito de servir a propaganda do regime, ou se foi o próprio regime a apropriar-se daquela lógica poética e idílica, muito mentirosa do que era a realidade do país. Embora esse debate não entre aqui, pergunto-me como é que com quase 50 anos de democracia, ainda seja capaz de arriscar dizer que não há português nenhum que não seja capaz de completar um verso da canção. Isto demonstra como ela ainda vive no imaginário popular e como o Estado Novo foi hábil a criar tradição onde ela não existia, fazendo dessa tradição a regra.

Temos então a guerra, a masculinidade, a casa, a família, um fado… O que é, afinal, a peça Casa Portuguesa?

A peça é a história de um antigo soldado que se vê confrontado com os fantasmas do seu passado. Esses fantasmas são pessoas, mas também são ideias, e tudo isso vai entrar em confronto, levando-nos a fazer um percurso, que é de alguma maneira destrutivo, para constatar que essa “casa portuguesa” não só já não nos serve, como é necessário transformá-la.

Há aqui também a vontade de fazer deste espetáculo uma espécie de statment da tua direção artística?

Não diria tanto, mas o espetáculo não passa ao lado de eu ter chegado a esta “casa portuguesa” que é o Teatro Nacional D. Maria II (TNDM II) e que, por sinal, é a Casa do teatro português. Há aqui ecos do que isso significou para mim quando aqui cheguei e até de algumas reações suscitadas pela minha nomeação.

Que reações?

Quando me apresentei como novo diretor artístico, assumi que faço parte da comunidade LGBT e que isso é relevante na medida em que define aquilo que sou e o modo como me expresso e vejo o mundo e a arte. Isso causou reações particularmente negativas junto de algumas pessoas que me encheram a caixa de email com insultos e impropérios. Não deixa de ser estranho como o facto de ter feito uma declaração tão pessoal, mas que achei publicamente relevante, provocasse tantas reações, todas elas vindas de homens brancos.

Isso afeta-te?

Afeta, mas não destrói. Contudo, imagino o que algo assim pode fazer a pessoas que não estão propriamente na minha posição e que não têm nem a minha idade nem a minha estrutura para lidar com este tipo de coisas.

Inevitavelmente, como dizes, isso ecoa no espetáculo…

Os meus espetáculos são muito reativos ao meio, à história, aos factos e acontecimentos do presente…

Porque o teatro é uma arte efémera?

Para mim, o teatro é uma arte do seu tempo, do aqui e do agora, uma arte que se faz a cada dia, com cada contingente de público que vem ao espetáculo, e é assim que esse mesmo espetáculo se constrói. É muito importante que o teatro mantenha essa atualidade constantemente viva e não seja tão só recriação de literatura. Até porque quando me interessa escrever, faço-o para que seja representado.

É-te fácil escrever?

Não, de todo. A escrita é um processo muito doloroso, nada a ver com um prazer absoluto. Costumo dizer que escrever é o contrário de viver, já que forço-me a suspender a vida para o fazer. Tenho de me isolar, e isso é complicado.

Mais de duas décadas depois, um espetáculo sem a chancela do Teatro Praga…

Foram 26 anos….

E com um elenco que, creio, nunca trabalhou contigo, à exceção das Fado Bicha…

Sim, as Fado Bicha fizerem uma participação no Xtròrdinário [espetáculo do Teatro Praga, estreado em 2019, por ocasião dos 125 anos do Teatro São Luiz]. Foram logo uma das minhas primeiras ideias para este espetáculo já que aqui se fala de tradição e, necessariamente, de fado, de tourada, de marialvismo. Todos esses temas são postos em contraste com a vida contemporânea portuguesa e o universo das Fado Bicha vai diretamente ao encontro disso, ou seja, elas fazem a reconstrução de uma tradição portuguesa muito forte, que é o fado, ao mesmo tempo que lançam, tal como vem no disco [Ocupação, 2022] uma crítica fortíssima à ideia do “macho”.

Temas novos?

Digamos que elas abocanham a Casa Portuguesa. E então da canção fazem um picadinho… [risos]

Quanto aos atores, há a Carla Maciel…

Trabalhei com ela num espetáculo que encenei no Teatro Maria Matos, o Perfeitos Desconhecidos, e fiquei muito impressionado com o modo quase obsessivo como trabalha. É uma coisa rara nos atores ver este nível de obsessão e técnica, de entrega ao projeto, e essa atitude impressiona-me, comoveu-me mesmo. A Carla é uma atriz muito completa, com muitas ferramentas e, seguramente, uma das melhores atrizes portuguesas. Fiquei felicíssimo quando soube que ela podia fazer este espetáculo.

O João Lagarto…

Precisava de um pai, de um protagonista. O João Lagarto fez de meu pai numa telenovela na RTP e foi das primeiras pessoas em quem pensei. É verdade que ele não tem propriamente a idade da personagem – terá, talvez, menos dez anos, tanto que não fez a guerra –, mas achei-o perfeito para o papel. Mais a mais, é um excelente ator.

Por fim, há um nome desconhecido, o Sandro Feliciano…

Como precisava de um ator muito novo, fiz um casting e descobri o Sandro. Ele foi o primeiro a fazer a audição e devo dizer que aquilo que pensei foi: “podia parar já por aqui”. O Sandro é um talento: tem 16 anos, estuda na Escola Profissional de Teatro de Cascais e vai ser, seguramente, uma “bomba” no teatro português, porque é, simplesmente, incrível. Este é o primeiro espetáculo que faz e estreia-se logo na Sala Garrett. Faz lembrar a Eunice [Muñoz], que aqui se estreou com 14 anos…

É um elenco pequeno por opção artística?

Sim. É verdade que este é um espetáculo que vai circular muito no próximo ano, e isso exige uma grande mobilidade e agilidade logística. Mas, a dimensão do elenco não influenciou a criação.

Embora abordem assuntos muito sérios, o humor é uma característica dos teus espetáculos. Como é em Casa Portuguesa?

Eu tenho uma atração fatal pelo humor [risos]. Há sempre humor. Muitas vezes, quando estou a escrever e vou reler, constato que tenho de cortar aqui e ali para não haver tanta piada. Tento escrever uma cena só séria, que não tenha nenhuma piscadela de olho a nada que possa fazer rir, mas não consigo. Acho que faz parte da maneira como me expresso no teatro e, de uma vez por todas, tenho que assumir isso como intrínseco. Apesar de tratar de assuntos muito pesados, esta peça é, também, bem-humorada.

Tem sido fácil o artista lidar simultaneamente com o papel de diretor do TNDM II?

Penso que sim. Como diretor deste Teatro há a expetativa de poder continuar a criar, passando esse trabalho artístico a ser reportório desta casa. Nesse sentido, não há aqui uma mudança radical naquilo que é o meu discurso, há sim uma mudança em função da estrutura do TNDM II, que é radicalmente diferente da que tinha no Teatro Praga.

Portanto, ser diretor artístico desta casa não condiciona o artista, e vice versa…

Enquanto artista vou continuar a criar os meus espetáculos, e isso não se confunde com nenhuma declaração de intensões aliada à minha estética ou ao meu universo artístico. Enquanto programador tenho uma missão pública que está inscrita na lei, embora com espaço de interpretação suficiente para não me condicionar. Contudo, sendo eu diretor artístico de um teatro nacional com uma missão determinada legalmente, o mais importante deixam de ser os meus gostos pessoais ou as minhas preferências…

Qual é, então, o grande desafio neste papel de diretor artístico?

Passa acima de tudo por dar ouvidos àquilo que é a cena portuguesa, aliás muito diversa, com muitas estéticas, muitas gerações no ativo e inúmeras possibilidades. Este espaço tem de ser um espelho disso, não um espelho seccionado para determinado ângulo, que eu até posso ter como artista a criar o seu próprio espetáculo. Portanto, não quero incutir ao TNDM II uma estética, embora queira que esta seja uma instituição que defenda a liberdade e a pluralidade, e que seja uma casa cada vez mais aberta. Isso sim, será a única coisa que terá implicações nas escolhas artísticas.

O ano que vem traz um desafio acrescido com o fecho do TNDM II para obras, logo, com a instituição a abandonar o Rossio e a partir país fora, num projeto que se chama Odisseia Nacional. Como é que encaras uma aventura desta dimensão?

Com a tranquilidade de saber que esta casa tem uma equipa muito competente e empenhada para fazer aquilo que, em quase 180 anos, nunca se fez. Se, por um lado, a atividade do Teatro está muito ligada ao edifício, por outro, a missão do TNDM II nunca se resumiu somente ao Rossio, já que tem e deve ter um alcance muito mais amplo. O projeto, a que chamámos Odisseia Nacional, é a oportunidade perfeita para que seja cabalmente aceite que o TNDM II é de todo o território português, como aliás fomos sentindo quando, junto de instituições e entidades locais, íamos sendo tão bem recebidos. Creio que estas sinergias vão proporcionar uma experiência transformadora em todo o território teatral português e, arrisco-me a dizer que, depois de 2023, também o TNDM II nunca mais será o mesmo.