Bob Wilson de volta ao Festival de Almada

39.ª edição marcada ainda pelos regressos de Thomas Ostermeier e Christoph Marthaler

Bob Wilson de volta ao Festival de Almada

No ano em que o Festival de Almada regressa ao formato habitual, com os espetáculos ao ar livre na Escola D. António da Costa, a passagem por Lisboa é parca em quantidade mas, como sempre, faz-se ao mais alto nível. No Teatro Nacional D. Maria II, o norte-americano Robert Wilson revisita uma criação de 1977, assinada em coautoria com Lucinda Childs, I was sitting on my patio this guy appeared I thought I was hallucinating. Entretanto, no Centro Cultural de Belém, os franceses Baro d’Evel estreiam-se no Festival com o surpreendente e sensorial Falaise.

São raros no mundo os festivais que a pandemia não parou. O Festival de Almada foi um dos casos extraordinários de resistência, vontade e persistência, tendo passado os últimos dois anos a reinventar-se para não deixar de dar ao seu público aquilo de que ele jamais pretendeu abdicar: o melhor teatro nacional e internacional que fosse possível trazer a salas de Almada e Lisboa.

Este ano, quando se crê que o pior já passou, o Festival anual organizado pela Companhia de Teatro de Almada com a autarquia local, volta ao formato habitual, com a Escola D. António da Costa, paredes meias com o Teatro Municipal Joaquim Benite, mesmo no coração de Almada,  a recuperar o estatuto de epicentro do certame. Por lá, há concertos diários de acesso gratuito durante todos os dias do Festival e, claro, no Palco Grande, dia sim, dia não, exibem-se alguns dos mais interessantes espetáculos do momento, assinados por criadores consagrados e bem conhecidos do público de Almada, como o sempre surpreendente mestre suiço Christoph Marthaler (Aucune Idée é o espetáculo de abertura desta edição), os marionetistas berlinenses da Familie Flöz (com o recém-estreado Hokuspokus) ou os jovens madrilenos La Tristura (com Renacimiento), que o Festival revelou em 2020, em plena pandemia, naquele que foi uma das raras presenças internacionais em Almada.

Sete mulheres negras partilham percursos de vida em “Mailles” (“Malhas”), de Dorothèe Munyaneza, considerada uma das criadoras fundamentais da atualidade. ©DR

Mas, o Palco Grande do Festival de Almada é também o espaço privilegiado para dar a conhecer a um público mais vasto nomes que estão a dar que falar nas artes performativas mundiais. Nesta edição, e no âmbito da Temporada Cruzada Portugal/França 2022, duas criadoras, e consequentemente dois espetáculos, destacam-se. A primeira é a cantora, autora e coreógrafa de origem ruandesa Dorothèe Munyaneza, que regressa a Portugal com Mailles, um espetáculo poderoso protagonizado por sete mulheres negras, afrodescendentes provenientes de Holanda, França, Haiti, Inglaterra e Espanha, que partilham experiências de vida onde a resistência e a sobrevivência se impõem.

A segunda é a franco-portuguesa Nadège Prugnard, que apresenta “um espetáculo-catarse” intitulado Fado dans les veines (Fado nas Veias). Segundo a autora, trata-se de “um poema escrito em forma de confissão”, dedicado aos portugueses que emigraram para França no século passado, fugidos ao salazarismo.

Outros ilustres regressados

Depois de em 2019 ter apresentado o inesquecível Mary Said What She Said com Isabelle Huppert, o teatro de Robert Wilson está de volta ao Festival com a remontagem, 45 anos depois, de I was sitting on my patio this guy appeared I thought I was hallucinating. Cocriado e interpretado à época por Wilson e Lucinda Childs, os papéis são agora entregues ao ator alemão Christopher Nell e à bailarina australiana Julie Shanahan. Como lembra Rodrigo Francisco, diretor do Festival de Almada, citando Wilson: “Em I was sitting on my patio… o que importa não é o que o texto significa, mas as emoções que cria nos intérpretes”. O espetáculo é um díptico em dois atos que funciona como “uma corrente onde os elos nunca chegam a tocar-se.”

Robert Wilson e Lucinda Childs, os autores e intérpretes originais do solo desdobrado “I Was Sitting On My Patio…” ©DR

De regresso a Almada, no caso à sala principal do Teatro Municipal Joaquim Benite, está Thomas Ostermeier e a Schaubühne. Seis anos depois de A Gaivota, o reconhecidíssimo encenador alemão apresenta “uma peça de câmara” escrita pela dramaturga Maja Zade a partir de Édipo. ödipus é um olhar contemporâneo sobre a tragédia de Sófocles, tendo como protagonistas uma família de capitalistas alemães na sua casa de férias na Grécia.

Outra personalidade muito acarinhada pelo fiel público do Festival é o romano Ascanio Celestini, “um contador de histórias” por excelência, que volta a Almada com Museo Pasolini, para entabular um diálogo imaginário com várias personalidade em torno da figura de Pier Paolo Pasolini. “Uma mistura de técnica narrativa com investigação antropológica”, marca de Celestini, para assinalar os 100 anos do nascimento do intelectual, cineasta, dramaturgo e escritor italiano.

No âmbito dos regressos, destaque ainda para o de Wim Vandekeybus, com Hands do not touch your precious Me, onde pela primeira vez o cenógrafo belga trabalha com o performer e artista visual Olivier de Sagazan, especialista em trabalhos de transfiguração do corpo e do rosto, e com a música eletroacústica da compositora Charo Calvo.

Nota para o novo-circo que, este ano, tem presença dupla: primeiro, com os ingleses Gandini Juggling (Smashed2); segundo, no Centro Cultural de Belém, com os Baro d’Evel e essa “corrente de ar soprada por um fenda a pulsar de vida” que é Falaise.

No teatro português, dando um panorama de grande vitalidade, a oferta é rica e muito diversificada, com espetáculos da Companhia de Teatro de Almada (em estreia absoluta Noite de Reis, de Shakespeare, encenado pelo alemão Peter Kleinert), de Rita Calçada Bastos (Se eu fosse Nina), do Teatro Experimental de Cascais (Eu sou a minha própria mulher), do Teatro dos Aloés (Em Casa, no Zoo), de Marco Martins (Selvagem), dos Artistas Unidos (Taco a Taco) e do Teatro do Bairro/Ar de Filmes (Sonho).

Como habitualmente, o Festival homenageia uma figura de particular relevância no teatro português, cabendo ao cenógrafo, pintor e arquiteto José Manuel Castanheira o mais do que merecido aplauso. Em Almada, durante a mostra, apresenta-se uma exposição evocativa de um percurso de quase 50 anos dedicado à cenografia. Como o próprio assume, “tudo aquilo que fiz, fosse na pintura, na arquitetura teatral ou efémera, ou no design, andou quase sempre à volta do teatro e da cenografia”. Paralelamente, Castanheira concebeu uma pequena instalação intitulada A nudez do cenógrafo e a perplexidade do espectador, e assume, entre 11 e 15 de julho, o papel de formador no curso Um lugar para transformar o tempo, no âmbito de O Sentido dos Mestres, uma iniciativa do Festival com o apoio da Share Foundation.

Os ingressos para esta 39.ª edição do Festival de Almada, que decorre de 4 a 18 de julho, variam entre os 35 e os 12 euros, estando também já disponível a modalidade Assinatura, que dá acesso a todos os espetáculos numa das sessões programadas, pelo valor de 80 euros. A programação integral do Festival pode ser encontrada aqui.