João Mota

"O criador tem de ter liberdade para dar aos outros a mesma oportunidade de serem livres"

João Mota

Em 1972, um grupo de atores, entre eles João Mota e Carlos Paulo, fundam a Comuna-Teatro de Pesquisa. Ao longo das décadas, esta companhia de teatro independente que, estimulada por Mota foi percursora do conceito de teatro-laboratório em Portugal, encenou perto de 200 espetáculos, revelou autores, formou largas dezenas de atores e percorreu o mundo, sendo uma das estruturas mais internacionais do teatro português. A 1 de maio, Dia do Trabalhador, a Comuna cumpre 50 anos de existência, assinalados com a estreia de Fausto, de Goethe/Nerval. Para assinalar o aniversário, a Agenda Cultural de Lisboa percorreu com o encenador e diretor artístico parte da história da companhia.

Não é possível falar da Comuna sem recordar o percurso anterior do João Mota. Em 1972, já tinha voltado a Portugal há algum tempo…

Sim. Eu voltei do Peter Brook e fundámos logo a seguir Os Bonecreiros, onde encenei uma peça infantojuvenil que foi um grande sucesso. Mas, devido a questões políticas, dá-se uma rutura e eu venho, com o Carlos Paulo, a Manuela de Freitas, o Melim Teixeira e o Francisco Pestana, fundar a Comuna.

Porque é que, como a sua irmã [a atriz Teresa Demarcy-Motta], não ficou por França, onde poderia continuar a trabalhar com uma figura do teatro como a dimensão do Peter Brook?

Tínhamos acabado de voltar da Pérsia quando o Peter Brook me pergunta se eu não queria ficar a trabalhar em França. Só que nessa altura já tinha tomado a decisão de voltar, porque sentia, perdoe-se-me a arrogância, que havia muito a fazer em Portugal e que eu poderia ser útil aqui.

Qual era o panorama geral do teatro português nesse início da década de 1970?

Existia um teatro universitário muito bom e estavam a surgir grupos de teatro amador extremamente interessantes, como o Grupo de Campolide e um outro, sediado em Carnide, liderado pelo Bento Martins, com quem havia trabalhado alguns anos e de quem fui sempre muito amigo. No teatro profissional havia, claro, a companhia da Amélia Rey Colaço, onde me estreei e onde estive antes de ir para a guerra [João Mota cumpriu cinco anos de tropa, dois deles em Angola] ou o Ribeirinho, que foi um dos meus mestres… O problema é que, não sendo mau, o teatro profissional em Portugal não via o ator como um criador, mas sim como alguém que é bom a debitar textos. Ora, o Peter Brook ensina-nos que o ator é o criador onde habita o texto, ou como dizia Pessoa, “o ator é um fingidor que finge que é dor a dor que deveras sente”. Quando regresso e começo a falar de improvisação, de técnica de corpo e de voz, perguntava-se “o que é isso?” É preciso não esquecer que Brecht era proibido, que ninguém tinha ouvido falar de [Jerzy] Grotowski e de teatro-laboratório…

A Comuna é reconhecida por ter começado a alterar esse estado de coisas…

Os Bonecreiros foram o ensaio para isso, já que por lá experimentámos muito daquilo que viríamos a fazer na Comuna. É muito interessante que, logo no início, havia um grupo de pessoas, onde se incluíam, entre outros, o João Bénard da Costa, o Nuno Bragança, a Maria Velho da Costa ou o pintor Noronha da Costa, que não só iam aos espetáculos como vinham ver-nos ensaiar.

É verdade ou é mito que a Comuna foi batizada através de uma votação num programa de rádio?

Eu tinha sido convidado pela Radio Renascença para dar uma entrevista e, a dado momento, desafio o público ouvinte a escolher entre três nomes possíveis para a nova companhia: “Os Cómicos”, “Os Comediantes” ou “Comuna”, sempre com “teatro de pesquisa”. Como se sabe foi escolhido o nome de “Comuna”, que tinha sido pensado em homenagem à Comuna de Paris e às comunas de hippies. Mas nem imagina os problemas que o nome deu, curiosamente, logo depois do 25 de Abril…

A sério?

Havia taxistas que se recusavam a trazer-nos aqui, acusando-nos de ser comunistas. Mas o pior foi, quando viemos para este espaço, em 1975, o jornal O Dia acusar-me diretamente de estarmos a tornar mais feia a Praça de Espanha por causa do nome do grupo. Aquele período a seguir ao 25 de Abril foi complicado, ora levávamos com o rótulo de monárquicos, ora de comunistas. Logo eu que nunca tive partido, logo a Comuna que teve artistas de todos os partidos, do PSD ao PCP ou ao MRPP…

E durante a ditadura? Como é que o regime lidou, por exemplo, com essa nova forma de fazer teatro?

Nesse tempo eramos acusados de ser hippies, de ser drogados… Começámos a Comuna com uma criação coletiva, com textos de Gil Vicente, chamada Para Onde Is? Deu logo problemas com a censura que ainda a tentaram proibir. Tinha muita improvisação. Era todo um território de liberdade…

A liberdade é algo absolutamente fundamental para si…

Foi algo que me foi incutido pela minha mãe, a par do sentido de responsabilidade. Sempre me bati pela liberdade. Lembro de ouvir o Peter Brook dizer “nunca percam a vossa individualidade, a vossa personalidade, porque estar num grupo de teatro significa que cada um mantenha a sua maneira de ser e de estar. É com isso que se vai trabalhar”. Imagine ouvir esta conceção de liberdade quando vou para França, no final de 1968, vindo do fascismo… Isto marca o modo como vejo o trabalho de um criador: ele tem de ter liberdade para dar aos outros, os que trabalham consigo, a mesma oportunidade de serem livres.

“O teatro exige um grande amor, mas um amor apaixonado. E é sempre preciso ter fé e esperança.”

Não queria afastar-me da história da Comuna, mas o seu percurso confunde-se com o da companhia que dirige há 50 anos, por isso, pergunto se, para além de Peter Brook, mas também de Ribeirinho (a quem há pouco chamou “mestre”), teve outras figuras referenciais no teatro?

Sim, claro. Aprendi muito com o [Adolfo] Gutkin, com o Pedro Lemos (tão esquecido!) na Companhia Rey Colaço/Robles Monteiro, com a Laura Alves, com a própria Amélia Rey Colaço, com o Rui de Carvalho e com o Canto e Castro, com os quais fiz uma tournée em África e ficámos amigos para sempre…

Voltando à censura, sei que o espetáculo que estava em cena pouco antes do 25 de abril de 74, A Ceia, deu ainda maiores problemas…

Foi terrível. Cheguei mesmo a ser chamado aos censores. Havia uma cena em que o Francisco Pestana interpretava a Igreja e o Melim Teixeira o Estado. Jogavam uma partida de ping pong com a Manuela de Freitas a fazer de rede e a bola, de cor vermelha, era retirada da zona do ventre dela. Então não é que os censores pretendiam saber, veja-se bem, porque é que a bola não era, como convencional, branca mas sim de cor vermelha. Lá lhes expliquei que não podia ser branca porque a mesa e a roupa da Manuela também o eram, mas proibiram-na. Aquilo revoltava-me muito, como aquela coisa de, quando se ia aos ministérios ou aos censores, nos avisarem para deixarmos a “mala de hippie” e irmos de fato e gravata.

Nessa altura ainda não estavam instalados na Praça de Espanha.

Não, isso só acontece mais tarde, em 75. Estávamos numa sala da fábrica da Cervejaria Portugália, na Almirante Reis. Antes disso, a primeira casa da Comuna foi uma garagem em frente ao Liceu Camões, cedida pelo Vasco Morgado, que andava a desafiar-me para fundar uma companhia para ocupar o Capitólio ou o Avenida.

A Comuna é o seu maior orgulho?

A Comuna é um orgulho meu e de muitas outras pessoas, porque sempre fomos um coletivo. O meu maior orgulho foi dar aulas e ter contribuído para formar grande parte dos atores que ai estão. Até porque, para mim, encenar é uma experimentação. No teatro, o centro de tudo é o trabalho do ator.

Mas o talento também conta…

Os atores têm ou não têm alma. Há uns que são muito bons tecnicamente, mas nunca poderão ser uma Eunice Muñoz, uma Mariana [Rey Monteiro] ou uma Carmen Dolores. Por acaso, ainda tenho aqui, na Comuna, alguns atores com essa alma, como o Carlos Paulo e a Ana Lúcia [Palminha].

Este aniversário, este meio século vai ser assinalado com um novo espetáculo. Mas há mais…

Para além da minha encenação do Fausto, estamos a finalizar um documentário sobre a companhia, realizado pelo António Cunha, que será estreado, ainda em data a anunciar, no Teatro Nacional D. Maria II, casa onde me estreei como ator e que dirigi durante três anos. Depois há de ser exibido aqui na Comuna e na RTP 2. Na noite de 30 de abril para 1 de maio, logo a seguir ao espetáculo, vamos fazer uma festa no café-teatro onde gostaria muito de contar com a presença da Manuela de Freitas, atriz que quero homenagear e pessoa a quem, a par de mim e do Carlos Paulo, a Comuna deve tudo.

Ainda acredita num teatro capaz de mudar o mundo?

Sabe, o teatro exige um grande amor, mas um amor apaixonado. E é sempre preciso ter fé e esperança. Eu acredito nos atores com quem trabalho e acredito no público. É essa fé que move a Comuna há 50 anos.