Aline Frazão

"A música tem um poder político muito subtil"

Aline Frazão

Aline Frazão prepara-se para apresentar o seu mais recente trabalho, Uma Música Angolana. Naquele que é o seu quinto disco, a cantora, compositora e instrumentista angolana reafirma a sua paixão pelos ritmos de origem africana. Dia 20 de abril, podemos vê-la no palco do Teatro Maria Matos.

Viveste em Luanda até aos 18 anos, depois mudaste-te para Lisboa, mas também passas muito tempo em Berlim. Dirias que és uma cidadã do mundo?

Vejo-me como uma cidadã angolana. Angola está muito presente na minha forma de ver o mundo, principalmente nas músicas que faço e nas letras que escrevo. A minha relação com Luanda é muito forte e exploro muito isso nas canções. Desde muito cedo que comecei a viajar, sou muito aberta a conhecer novas culturas, novas línguas. O meu trabalho na música é um bocado o resultado disso tudo. Por um lado, tenho uma raiz bem assente em Angola, mas também uma sede muito grande de misturar e nenhum pudor em transformar os ritmos tradicionais cruzados com jazz – que é uma linguagem de que gosto muito – ou com música do Brasil ou de Cabo Verde (que são as minhas principais influências). Gosto de navegar em territórios novos, isso dá-me uma sensação de liberdade muito grande.

Enquanto ativista, consideras que a música é um bom veículo para fazeres passar as tuas mensagens?

Penso que sim. Sempre foi, desde o início. Este é o meu quinto disco e desde o primeiro que usei a música como forma de manifestar algumas opiniões, principalmente em relação a Angola. Mais recentemente, em relação a uma visão feminista do mundo e aos direitos das mulheres. A música tem um poder político muito subtil – que muitas vezes é subvalorizado – de criar conexão e juntar pessoas que não se conhecem no mesmo espaço para ouvirem a mesma canção. Num mundo cada vez mais fragmentado e polarizado isso tem muita força. Traz bem-estar e felicidade e acho que isso é revolucionário. Tenho-o sentido nos concertos de apresentação deste disco. As pessoas saírem felizes do concerto é o maior elogio que me podem fazer. Num momento tão sombrio e difícil, as pessoas darem-se esse presente de serem felizes num espetáculo é algo que tem um poder transformador que é subestimado.

Uma Música Angolana é o teu mais recente disco. Há aqui um duplo sentido nesta frase…

Por um lado, é uma reivindicação do termo ‘música’ para mim mesma: eu enquanto música angolana, uma mulher que trabalha na música. Este é um termo que não é muito utilizado na língua portuguesa. Quando tenho que dizer a alguém aquilo que faço, ou mesmo preencher um formulário em que tenha de colocar a minha profissão, tenho de dizer que sou cantora. Isso é redutor, estou a castrar o meu próprio trabalho. Eu sou cantora, compositora, instrumentista, sou música… por um lado existe essa provocação para que a própria língua portuguesa seja mais inclusiva. Por outro lado, é um bocado provocador no sentido da própria música angolana, música feita em Angola. Este disco não é de música tradicional. É uma proposta de música angolana, de misturas. De ritmos tradicionais angolanos cruzados com ritmos que vêm de outras latitudes: ritmos afro-brasileiros, de Cabo Verde, do Congo. O que talvez faça a ligação entre tudo é o jazz, que acaba por ser o guarda-chuva onde se juntam todas estas linguagens com muita liberdade. Este título acaba por apontar para estes dois lados, mas de forma um bocado provocadora.

Este disco contrasta com o anterior Dentro da Chuva, que era mais introspetivo. Isso significa que te encontras numa fase mais festiva?

É, definitivamente, um disco muito diferente do anterior, que foi um disco a solo. O meu objetivo, com este disco, era trazer uma proposta mais solar, mais quente. É ser mensageira e portadora dos ritmos africanos que a mim me transmitem muita energia. O ritmo e a cadência são contagiantes, dão vontade de dançar, de mexer o corpo. A alegria e a celebração através da dança estão presentes em todas as etapas da vida, inclusivamente na morte. Quando enterramos um ente querido, há gente a dançar, a chorar e a cantar. Faz parte da manifestação de emoções. A dança não é uma alegria oca, vazia; é uma forma de exorcizar. A alegria surge aqui como uma proposta revolucionária num tempo tão sombrio. Apesar de todas as coisas sombrias que estão a acontecer no mundo, temos muito a aprender com os ensinamentos africanos. Protestar dançando, fazer o luto cantando, não é desrespeito nenhum. Pelo contrário, é uma forma de nos curarmos coletivamente.

Uma das canções que se destaca é Luísa, uma homenagem às mulheres.

A canção surgiu de uma forma muito espontânea. Foi um exercício de escrita, de rimas… sou fascinada pelo nome Luísa, talvez por causa da canção de Tom Jobim. Comecei, na brincadeira, a apontar palavras que rimassem com Luísa. A partir daí, comecei a construir uma história, uma personagem inventada, fictícia, inspirada em muitas mulheres – incluindo em mim própria e nas minhas vivências. É um micro-conto em formato canção que pretende transmitir energia para a maneira como olhamos para nós próprias, que às vezes é um pouco impiedosa e exigente demais. Cada vez que uma mulher fala, canta, escreve, ou se expressa de alguma forma, há, algures, uma outra mulher que se identifica com isso e não se sente tão sozinha.

Luanda é uma carta de amor à cidade onde nasceste?

É uma canção para a minha musa, uma musa complicada – como diz a canção – que fala desses dois lados de Luanda. Por um lado, a sua beleza: as cores, o contacto do mar com a terra… acho fascinante, a beleza de Luanda é muito intensa. Por outro lado, toda a dificuldade social, sociopolítica, a miséria de um povo que, em certa medida, foi abandonado. É uma canção que explora esses lugares de contradição da própria compositora.

“As pessoas saírem felizes do concerto é o maior elogio que me podem fazer”

Fala-me de Kwanza Sul. Parece quase uma canção de embalar, destaca-se das outras músicas do álbum…

É uma canção mais minimalista, uma canção-solo, podia estar no disco anterior. Surge de uma nostalgia, de uma saudade, escrevi-a quando estava longe de casa. Tem a ver com a relação que criei com a minha própria casa durante os confinamentos, com a sensação de estar num lugar seguro enquanto vemos o mundo acabar.

O disco conta com várias colaborações com artistas de origens muito diferentes (o angolano Nástio Mosquito, o brasileiro Vítor Santana e a alemã Susanne Paul). Porquê estes nomes?

A partir da sonoridade base do disco, fui pensando nas colaborações. A ideia de convidar o Nástio Mosquito surgiu porque a própria canção, Baúka, me parecia que podia estar nos discos dele. Sou grande fã do Nástio, para além de ser um grande amigo. Ele estava na Bélgica quando lhe fiz o convite e gravou à distância. Em tudo o que ele faz mete muita ironia e sarcasmo, um tom desafiante que achei que combinava com esta canção. O Vítor Santana surge porque, quando comecei a ouvir o refrão de Mate só com a minha voz, comecei, na minha cabeça, a ouvir a voz dele. Acho que as nossas vozes combinam muito bem, complementam-se de certa maneira. Ele estava em Minas Gerais, no Brasil, e assim que enviou a parte dele, percebi que a canção nasceu para ser assim. A Susanne Paul é uma violoncelista extraordinária com quem colaborei num projeto de jazz em Berlim, e foi o mesmo processo. Já estava com ideia de que o violoncelo ia trazer um lado clássico e ao mesmo tempo brincalhão, um lado mais infantil para a canção O Sul. Fiquei fascinada com o que ela gravou em Berlim. Foi tudo à distância, na verdade. A banda-base gravou num estúdio em Almada, e os convidados gravaram em várias partes do mundo. São as coisas boas da tecnologia.

Há ainda uma canção do fadista Ricardo Ribeiro para um poema de Pedro Homem de Melo. Como surgiu esta ideia?

Alguns meses antes de gravar, ouvi o Ricardo Ribeiro cantar Valsa da Libertação ao vivo e fui falar com ele. Fiquei muito curiosa sobre a música e ele disse-me que era um poema de Pedro Homem de Melo que tinha musicado. Perguntei-lhe se podia gravar a música e ele ficou muito contente. Claro que a versão do Ricardo é muito diferente desta. Eu já tinha pensado numa abordagem mais jazzística para esta canção, com um solo de trompete, algo que desse um impulso às próprias palavras deste poema, que é belíssimo. É uma canção que resulta muito bem ao vivo, as pessoas têm adorado. Outra das canções que não fui eu que escrevi é Fumo, do Paulo Flores. Sou grande fã dele, é um dos grandes heróis da música angolana, e sempre gostei muito desta música.

Estás em digressão mundial com a Companhia de teatro Delbono, integrando o elenco da peça Amore. O que fazes concretamente?

É um pouco difícil responder a essa pergunta. Eu não conhecia o trabalho desta companhia. Eles fazem um teatro que não é nada tradicional, é interdisciplinar, mistura música, dança, poesia e tem um lado plástico, cénico, quase de pintura em palco. Neste espetáculo eu canto, digo texto, danço, participo em alguns momentos. Comecei a fazer parte deste projeto o ano passado e acho apaixonante. Vai estar em Lisboa, no São Luiz, em outubro. Entretanto vou dividir a minha agenda entre este projeto e os espetáculos de apresentação de Uma música angolana.

A 20 de abril levas este disco ao Maria Matos. Entusiasmada por poder mostrar este disco ao público lisboeta?

Quando pensei no disco (e depois quando o gravei e lancei) já estava entusiasmada. Agora que fiz os primeiros concertos (passámos por várias cidades alemãs, por Roterdão, por Berna…) estou ainda mais ansiosa para levar este espetáculo ao meu público em Lisboa. É difícil competir com o público de Lisboa, talvez Luanda possa entrar nessa competição [risos]. Tenho lembranças incríveis de vários concertos que dei em Lisboa. Será, provavelmente, um dos momentos mais altos desta tournée.