A arte de criar lugares

Em torno do percurso de seis cenógrafos portugueses

A arte de criar lugares

Seis dos mais talentosos e reconhecidos artífices da arte da cenografia, todos pertencentes a uma geração já afirmada em palcos nacionais e internacionais, partilham o seu percurso e o olhar sobre um ofício essencial ao teatro, à dança, ao cinema ou até à televisão, tanto no campo da estética como das emoções.

Inventam outros mundos ou, como diria o cenógrafo, arquiteto e pintor José Manuel Castanheira, criam as “micro geografias ficcionadas” que transformam o espaço onde acontece o espetáculo, seja ou não um palco. No mês em que se assinala o Dia Mundial do Teatro, a Agenda Cultural de Lisboa convidou Ana Paula Rocha, Marta Carreiras, F. Ribeiro, José Capela, Hugo F. Matos e Stéphane Alberto para nos falarem sobre os seus percursos na arte de criar lugares.

F. Ribeiro

Gosto de colocar as mãos no trabalho e fazer as coisas.

Não basta projetar e ir à estreia.”

Nunca saberemos se se perdeu um grande ator, mas aquilo de que podemos estar certos é que se Fernando Ribeiro não tem, na candidatura ao Conservatório, preterido a representação em prol do ramo de Design de Cena (que inclui cenários e figurinos), não teríamos no ativo um dos mais talentosos e versáteis cenógrafos portugueses.

O teatro surgiu-lhe na vida aos 15 anos, quando o “aluno de Letras” tinha como bons amigos Tónan Quito e Rita Durão, frequentadores da turma de Teatro do secundário, onde o ator António Fonseca dava aulas. “A dada altura, eu estava a fazer um curso de Pintura e eles lá me convenceram a juntar-me à turma para fazer os cenários. Tornei-me ator e cenógrafo, até o Conservatório me obrigar a fazer a escolha”, lembra. Lisboeta, nascido em 1976, o percurso de F. Ribeiro, como “por coerência” prefere ser apresentado nas fichas técnicas e artísticas dos espetáculos, confunde-se com o de encenadores como Nuno Cardoso (hoje diretor do Teatro Nacional de São João) ou Tónan Quito, com quem volta a trabalhar no espetáculo Ensaio de Orquestra, baseado no filme homónimo de Federico Fellini, que estreia este mês no Centro Cultural de Belém. Mas F. Ribeiro é também o cenógrafo dos últimos espetáculos de Diogo Infante (como Chicago e O Amor é tão simples, em cena no Teatro da Trindade) ou de Tiago Rodrigues (Catarina e a beleza de matar fascistas e O Cerejal), o que revela o ecletismo do cenógrafo para quem “o teatro é sempre visto como um trabalho de equipa que não se compagina com tabus de género ou estéticos”.

Como faz questão de salientar, “aquilo que invariavelmente procuro é que o meu trabalho se integre e ajude o melhor possível o espetáculo”. Por isso, assume não ter definida “uma linha” e um método de produção rígido, embora tenha “o gosto de estar presente e de pôr as mãos no trabalho, pintando e montando”. Essa presença, que considera indissociável da atividade de cenógrafo, leva-o a eleger a colaboração com Tiago Rodrigues em O Cerejal, peça concebida para o Cour d’Honneur du Palais des Papes em Avignon, como “uma experiência inesquecível. Foi um mês a viver ali, a trabalhar ali, na sala maior do Festival, ao ar livre, com atores franceses, entre eles, uma figura como a Isabelle Huppert. E, com isto, não quero dizer que tenha sido o meu melhor projeto, com mais qualidade. Não meço as coisas assim. Sei que foi, seguramente, tal como o meu primeiro trabalho ou como o primeiro que cenografei no estrangeiro, um daqueles que jamais esquecerei.”

Marta Carreiras

O meu ateliê é a sala de ensaios

Chegou à cenografia quando percebeu ser a arte que junta “desenho, construção, matérias e maquetas”, tudo coisas que adora. Contudo, mantém a convicção de que “a cenografia tem muito mais a ver com artes plásticas e visuais do que com design, mesmo design de cena e criação de espaços”.

1997 foi um ano determinante para si: certo dia, a jovem aluna do segundo ano de Conservatório, fez um gesto que lhe mudaria a vida para sempre. Pela sala de aula irrompe a atriz e codiretora artística do Teatro Meridional Natália Luiza que, dirigindo-se ao grupo, pergunta: “quem é que quer trabalhar?” Amedrontada, Marta levanta o braço e, 25 anos depois, passa em retrospetiva o percurso enquanto cenógrafa e figurinista daquela que foi a sua “escola plástica e relacional com o teatro”. No Teatro Meridional “aprendi a fazer”, e isso implica “relacionarmo-nos com os outros e acompanhar todo o processo de um espetáculo desde o início”. O método passa por “chegar aos ensaios com o caderno em branco” e “procurar criar um vazio e ganhar espaço para receber aquilo que vem”. Como reconhece, há quem “apanhe a ideia no texto ou numa conversa com o encenador” mas, seja no Meridional ou num projeto com outros criadores, Marta tem de “perceber como dar forma ao invisível”.

Lembra por exemplo António e Maria, espetáculo encenado por Miguel Seabra a partir de textos de António Lobo Antunes, interpretado por “uma pessoa muito especial”, a atriz Maria Rueff, e do qual guarda uma grata memória: “tínhamos chegado a uma proposta específica para o cenário mas, certo dia, tenho um sonho e decido mudar tudo. Aproveito a ideia de circularidade da proposta inicial, mas preencho aquele que virá a ser o espaço em redor da atriz com roupa cinzenta. Aquele território frágil, de peças de roupas sem corpos, parecia evocar a morte, Auschwitz talvez…” No dia seguinte, perante algum nervosismo de Marta e de Miguel Seabra, Maria Rueff entra na sala e “começa a andar à volta e à volta de toda aquela roupa. Subitamente, para e chora”. Marta pensa “já fui!”, mas Maria aproxima-se, abraça-a e diz-lhe: “percebeste; chegaste lá!” O cenário de António e Maria não era daqueles que garantem sucesso nem prémios a destacar o virtuosismo do cenógrafo, mas foi dos que deu a Marta Carreiras aquilo que sempre procura, acima de tudo, em cada projeto onde se envolve: exaltar emoções.

“Não sou uma cenógrafa do concreto, da coisa fechada e coesa, mas daquilo que mexe por dentro”, especifica. Talvez por isso, e como confessa, sempre que lhe dizem que um cenário está “brutal”, sente que qualquer coisa terá falhado.

Hugo F. Matos

Na dança, sinto que o trabalho de cenógrafo passa por ajudar

na construção da personagem e do espaço que ela ocupa

O teatro entrou-lhe na vida durante o secundário, em São João da Talha, nos arredores de Lisboa, onde alimentou (e concretizou) o desejo de ser ator. Quando chegou a altura de tomar decisões sobre a continuação dos estudos, decidiu enveredar pela arquitetura mas nunca abandonou o espetáculo, tendo mantido um grupo de teatro amador onde, para além de ator e encenador, foi cenógrafo e figurinista.

Dessa experiência de mais de uma década, percebeu que aquilo que verdadeiramente o interessava não era propriamente a representação, mas sim “estar do outro lado”. Antes disso, Hugo F. Matos trabalhou em ateliês de arquitetura, mas sentia crescer a insatisfação. “Percebi, a dado momento, que a forma mais coerente de conciliar o espetáculo com a arquitetura era a cenografia, porque significava imaginar e criar o espaço para a cena. Foi quando peguei nas minhas coisas e decidi ir especializar-me na Faculdade de Belas-Artes da Universidad Complutense de Madrid, e como que por acaso acabei a fazer uma especialização em cenografia para ópera, o que abriu caminho para perceber a complexidade da obra de arte total”, recorda.

Embora tenha feito incursões fora de Portugal, acabou por se fixar em Lisboa e iniciar, em 2009, uma intensa colaboração com o Quorum Ballet, estrutura sediada na Amadora, liderada pelo coreógrafo Daniel Cardoso. Ao mesmo tempo, está envolvido com o Teatro do Azeite, companhia fundada por Miguel Raposo, Carlos Malvarez e Pedro Oliveira. Da sua experiência, não vê diferenças significativas em cenografar para teatro ou para dança, até “porque cada desafio é um desafio, independentemente de a linguagem ser mais exclusivamente do corpo ou provir do texto e da palavra”. O cenógrafo exemplifica com um dos seus mais recentes trabalhos, Ilhas, uma criação do Teatro Meridional, que é “uma peça de teatro praticamente sem palavra”. Porém, nota que “na dança, o trabalho de cenógrafo passa também por ajudar na construção da personagem e do espaço que ela ocupa, acabando a coreografia por se apropriar da cenografia e a ela se adaptar”.

Em 2011, Hugo F. Matos inicia-se também na atividade docente, primeiro no ensino profissional, ministrando figurinos – “não só porque a especialização em cenografia me dava essa valência, mas também porque a minha mãe é costureira desde os 13 anos, logo tive no berço a máquina de costura muitas horas” –; depois, na António Arroio, onde é atualmente professor e coordenador da especialização em Realização Plástica do Espetáculo.

Stéphane Alberto

Estamos sempre a reinventar os processos e as técnicas.

Nenhum trabalho se repete.

Como é que um ex-estudante de Relações Internacionais se torna cenógrafo, aderecista e figurinista? É preciso recuar ao início dos anos 90 do século passado e à agitação em torno da PGA (Prova Geral de Acesso) que atrasou a entrada na universidade de milhares de alunos. Nesse tempo de incerteza, o estudante de Humanidades Stéphane Alberto aproveita o hiato para, no Montijo, “fazer um curso de teatro ministrado essencialmente por artistas ligados ao Teatro de Animação de Setúbal”. O módulo de cenografia era dado por Asdrúbal Teles, “ator e cenógrafo um pouco esquecido que me despertou para esta arte” e que, uns meses depois, o convida para trabalhar com a companhia. “O problema é que eles não tinham dinheiro e o que iriam pagar não chegava sequer para a camioneta”, lembra.

Já caloiro do Superior, mas desanimado com o curso, Stéphane é desafiado por um amigo a candidatar-se ao curso de Teatro, no Conservatório, onde opta pela realização plástica do espetáculo. Começou por trabalhar sobretudo para cinema e televisão, mas acaba por se fixar no teatro quando, com “o cúmplice de banda rock” Bruno Bravo, funda a companhia Primeiros Sintomas. “O trabalho com o Bruno é a minha zona de conforto e a comunicação entre nós é sempre muito fácil. São mais de 20 anos de aprendizagem mútua”, refere ao lembrar que “o trabalho do cenógrafo nunca se repete, seja pela relação que se estabelece com os outros, seja pela constante angústia, característica comum a qualquer ato criativo”.

Como artista, gosta de começar por preparar o seu trabalho lendo o texto e falando com o encenador, evitando “ir aos primeiros ensaios, porque há sempre muita gente a opinar e a dispersar informação”. Mas, esclarece, “isto não é uma fórmula, porque tudo depende com quem estamos a trabalhar”. Ultimamente, Stéphane dedicou-se a projetos com “alguma envergadura”, destacando o Fantasma da Ópera, dirigido por Bruno Bravo, que esteve em cena na Culturgest e no São João, no Porto. Nos próximos meses, subirão ao palco dois espetáculos “mais pequenos”, também dos Primeiros Sintomas: Babar, uma peça para a infância no CCB, e um novo olhar sobre Macbeth, “mais centrado na relação conjugal”, com estreia marcada para o CAL, a atual casa da companhia.

Falando em projetos de menor envergadura, o cenógrafo não esquece, ainda hoje, Pinnochio: “uma coprodução com o Maria Matos, feita em condições complicadas, porque a companhia tinha ficado sem subsídios. Mas, com pouco mais do que cascas de cebola, fizemos um espetáculo muito bonito.”

Ana Paula Rocha

Todos se queixam, no bom sentido, que vou muito aos ensaios.

Mas temo que faltar a um que seja, signifique perder muita coisa.

No início dos anos 90, a jovem Ana Paula Rocha sofre uma enorme deceção: “por apenas uma décima não entro em Belas-Artes”. Apesar do desapontamento, e como a moda era uma paixão, inscreve-se num curso de estilismo e acaba por ganhar um estágio em Paris. Quando regressa, abrem-se as portas do mundo do trabalho e emprega-se no gabinete de estilismo de uma fábrica. Mas, “depressa percebi que nunca iria expressar a minha criatividade na indústria, e é quando decido candidatar-me ao Conservatório”. Ali, nasce o amor pela arte e, a juntar à moda, a paixão pelo trabalho de cenografia.

Em 1997, José Peixoto chama-a para fazer cenários e figurinos em Il Campiello, na Malaposta, e pouco depois começa uma relação artística no teatro e no cinema com Solveig Nordlund que ainda hoje se mantém. Mas, “onde aprendi imenso sobre cenografia foi nos Artistas Unidos, com a Rita Lopes Alves”. Ana Paula Rocha não esquece A Queda do Egoísta Johann Fatzer, uma encenação de Jorge Silva Melo onde “fizemos um trabalho incrível com ráfia, tintas e vassouras: criámos um quadro em palco”.

Outro dos colegas de eleição é José Manuel Castanheira, com quem tem trabalhado na Companhia de Teatro de Almada: “temos métodos de trabalho muito diferentes, porque eu procuro o pormenor na dramaturgia de cada personagem, e isso passa pela paleta de cores e uma linha de mutação de guarda-roupa, enquanto o Castanheira parte de uma mancha cromática para o pormenor. Mas conseguimos casar”. Para Ana Paula Rocha o teatro é sempre um trabalho de equipa, e exemplifica com o modo como cria um figurino atendendo ao corpo do ator que o vai vestir, ou mesmo como concebe o espaço tendo em conta quem o vai habitar.

Em 25 anos de percurso profissional, a cenógrafa e figurinista tem inúmeras boas recordações de espetáculos e, talvez por estarmos no Teatro Nacional D. Maria II, nos bastidores do palco da Sala Garrett, lembra uma Menina Júlia, encenada por Rui Mendes, onde colaborou com o pintor Manuel Amado, e uma encenação de Claudio Hochman do Sonho de uma Noite de Verão, onde graças “à fabulosa equipa do D. Maria II foram erguidas três árvores de metal, feitas com tubos entrelaçados, cada uma com cerca de quatro metros de altura”.

Estas memórias levam aquela que é hoje a presidente da APCEN – Associação Portuguesa de Cenografia a lamentar que se faça tamanho investimento em cenografia e figurinos e não existam condições técnicas e logísticas para preservar esse património. “Infelizmente, grande parte é destruído porque os teatros não os podem armazenar.”

José Capela

Evito especular sobre a cenografia através do desenho.

Não faz parte da minha natureza, embora enquanto arquiteto

tenha sido educado para o fazer.

Com o ator Jorge Andrade fundou a Mala Voadora, uma das companhias mais internacionais do teatro português. Arquiteto e docente da Universidade do Minho, José Capela é também um cenógrafo profícuo para quem esta arte passa por criar um contexto específico para um determinado evento, não necessariamente de artes performativas.

“O trabalho de cenografia é sempre diferente porque criar para teatro não é o mesmo que o fazer para o ballet clássico e muito menos para a ópera”, aponta. “Indo um pouco mais longe, é também diferente criar cenografia para exposições”. Por norma, “no palco a cenografia visa ser vista de fora e nas exposições é para ser habitada pelo público”.

Capela recusa ter um método de trabalho, mas acredita num modo pessoal de fazer cenografia: “na Mala Voadora, com o Jorge, acompanho todo o processo desde o início, estou completamente dentro do projeto; noutros casos, depende de com quem estou a trabalhar. Mais do que um texto, até porque a cenografia pode apostar em ser contrastante, importa o plano dramatúrgico ou o conjunto de intenções de quem dirige o projeto”. E como arquiteto que continua a ser privilegia a relação com o espaço, embora “quando sei que um espetáculo vai estar em digressão, isso se torne mais difícil”.

Assume que o seu trabalho é essencialmente racional, “muito mais baseado naquilo que as coisas devem ser, do que numa exploração diretamente visual sobre as formas”. Refere o contraste deste modo de trabalhar com o da cenógrafa Cristina Reis (do extinto Teatro da Cornucópia): “Os processos de investigação da Cristina são tão, tão bonitos que já são arte em si.”

Quando o questionamos sobre se há um cenário do qual guarda um carinho especial, José Capela fala, não propriamente de um “cenário”, mas de “uma peça que integrava o espetáculo Pirandello”, por sinal, um trabalho premiado com o Prémio Autores para melhor trabalho cenográfico em 2016. “Era um telão que estampava em tamanho real uma fotografia do palco vazio, e que servia como pano de boca, subindo e descendo durante o espetáculo para as mudanças de cena. Não sei explicar o porquê, mas talvez haja um certo capricho em mostrar o palco vazio in loco numa fotografia”.

Este mês, a Mala Voadora regressa ao Teatro Nacional D. Maria II com Cornucópia, espetáculo para o qual Capela preparou “uma cenografia à século XVIII, com recortes bidimensionais, embora contemporâneos porque consistem em fotografias”. A arte de José Capela pode ainda e sempre ser apreciada na envolvente cenografia-instalação que projetou para o foyer do Teatro do Bairro Alto.

 

A Agenda Cultural de Lisboa agradece ao Teatro Nacional D. Maria II a cedência do espaço para a realização das sessões fotográficas desta reportagem.