Tiago Bettencourt

“Hoje, a música pop está demasiado óbvia e muito pouco exigente”

Tiago Bettencourt

Tiago na Toca foi um projeto que Tiago Bettencourt criou no início da pandemia, em pleno confinamento. O músico atuava a partir da sua sala de estar, dando um concerto diferente todas as segundas-feiras através da plataforma Instagram. Um verdadeiro fenómeno de sucesso, que agora salta do mundo virtual para o palco do Coliseu dos Recreios, a 20 de dezembro.

O teu último disco, 2019: Rumo ao Eclipse saiu em outubro de 2020, em plena pandemia. Que histórias conta este disco?

As minhas músicas não contam histórias. São fotografias. Não sou nada bom a contar histórias, não há nenhum enredo nas minhas canções. É quase como se fossem fotografias a momentos pausados. Fora as canções de amor, que são típicas de qualquer era da Humanidade, elas são fotografias a determinadas tensões que já se sentiam em 2019 e que ficaram ainda mais óbvias em 2020 e em 2021.

As tuas letras são quase encriptadas, difíceis de decifrar. É propositado?

Hoje em dia a música pop está demasiado óbvia e muito pouco exigente. Aprendi a escrever com os artistas que sempre ouvi, quer internacionais, quer a ouvir muito fado ou a ler escritores portugueses, e aprendi a poesia nesse sentido, ou seja, que não é suposto as coisas serem literais. Não é suposto estares a contar o que se passa na tua vida e as pessoas irem ouvir porque querem saber o que aconteceu entre ti e a tua namorada e de que forma estás a lidar com isso. A minha escrita tem sempre um gatilho real e depois há outras coisas que acrescento, algumas até premonitórias e que acontecem mesmo, e outras coisas que escondo, que acho que são muito mais bonitas ditas dessa maneira. Acho que é feio ser-se muito literal. É possível ser-se literal de uma maneira bonita, mas tem de ser feito de uma forma muito inocente. Os brasileiros conseguem fazer isso na bossa nova, encontrar essa simplicidade e essa inocência. O Carlos Tê também faz isso, quando diz que “um sargo assa no braseiro”. São uns pormenores muito literais, mas não se sabe muito bem o que acontece no resto da história. A maneira como escrevo é produto dos professores que tive.

O que também permite que cada um interprete à sua maneira…

Faz com que a música resista ao tempo. Se a ouvires hoje ela diz-te uma coisa, e se a ouvires daqui a uns anos ela diz outra coisa…

O disco conta com várias participações especiais, entre elas Mariza, Cláudia Pascoal ou Ivo Canelas. Como surgiram estes nomes?

Em relação à Mariza, eu precisava de uma voz que soubesse dizer “está tudo bem” de uma maneira potente, ou seja, uma voz que sabemos que pode dar muito mais do que está ali a dar. Acho isso muito engraçado. Hoje em dia, por causa da quantidade de concursos de talentos, está muito na moda a ideia de que se deve dar tudo. Acho muito bonito ver uma interpretação de um artista e perceber que ele consegue dar muito mais, mas que a canção não pede isso. Eu queria uma voz como a da Mariza, que é girante e que pode dar muito mais, mas que ficasse ali num registo grave a dizer que vai ficar tudo bem. A ideia era essa, passar a serenidade de quem tem um talento muito grande dentro de si. Em relação ao Ivo Canelas, precisava de um melhor amigo para uma personagem que surgiu durante a gravação deste álbum, e achei que ele tinha veneno suficiente para ser o melhor amigo venenoso deste alter-ego [risos]. A Cláudia Pascoal usei-a como coro, como usei também a Mariana Norton. Elas tinham cantado comigo no último Coliseu que fiz e encaixaram tão bem que, quando precisei de duas vozes femininas, chamei-as e ficou muito bonito. O Fred Ferreira [baterista] também participou, entra em todos os meus álbuns. Quando preciso de uma bateria mais rock, ele é imbatível.

Como foi lançar um disco neste contexto?

Foi um bocadinho duro. O álbum era para ter saído em março ou abril de 2020. Achei piada à ideia do disco se chamar 2019: Rumo ao Eclipse, mas tive de esperar uns meses para o lançar. Mal nós sabíamos que ainda ia haver outro confinamento. Acabámos por lançá-lo em novembro, a tournée de lançamento foi adiada duas ou três vezes até que desistimos, e só conseguimos fazê-la depois do fim do segundo confinamento. É muito estranho ter na mão um álbum que é novo, mas que já tem um ano e que ainda tocámos muito pouco ao vivo. Temos de ser criativos e arranjar novas maneiras de o promover. E tentar perceber que outras músicas conseguimos ir lançando para dizer que o álbum ainda é relativamente novo. O concerto ao vivo está a ser ultra emotivo de tocar. Está muito forte, acho que as pessoas estão a gostar muito, mesmo em termos cenográficos.

Voltar a pisar o palco foi como sair de uma longa ressaca?

Com o Tiago na Toca acabei por trabalhar mais durante o confinamento do que antes. Todas as semanas tinha de dar concertos, e tinha de ensaiar imenso. Como sou um bocadinho perfecionista queria sempre fazer versões complicadas, por isso trabalhei muito durante o confinamento, e acabei por não sentir tanto essa falta. Ficava muito mais nervoso antes dos lives do que antes de qualquer concerto, até porque era eu que tratava de tudo, incluindo da parte técnica. Nos concertos estou mais descansado porque estou a tocar com a minha banda, tenho uma equipa por trás, as coisas estão ensaiadas, está tudo oleado. Foi um alívio voltar à estrada, voltar a ver pessoas. Lembro-me que, no primeiro concerto que demos, ainda a 50%, as pessoas estavam mesmo muito felizes. Isso foi muito importante para nós, músicos, e ajudou a que fossemos dando concertos cada vez melhores. As pessoas estavam a precisar muito de ouvir música alto, de sentir a música no corpo. Via-se que estavam mais sensíveis, foi muito bom.

“A Humanidade está a passar uma fase um bocadinho estranha e agressiva. Há muita consciência do que se está a passar, a reação a isso é que tarda” ©Martim Torres

Sentes que essa forma de interagir através dos lives do Instagram foi mais terapêutico para ti ou para o público?

Acho que foi muito terapêutico para mim. Nem sei o que estaria a fazer, embora saiba que não ia conseguir estar parado. Se calhar ia gravar outro disco ou concentrar-me num projeto meio instrumental. Mas, sem dúvida que foi muito terapêutico. Foi um desafio muito interessante, cansativo, por vezes. Houve alturas em que me apetecia parar um bocadinho, mas fui recebendo mensagens muito bonitas. Comecei a perceber que realmente fazia companhia a muitas pessoas e acho que foram poucos os lives que mantiveram aquela média de mil/duas mil pessoas (sem contar com o do Bruno Nogueira), mas a certa altura sentia uma certa responsabilidade por ter de fazer aquilo todas as semanas e para poder gerar dinheiro para a minha equipa que estava sem trabalho, e senti esse amor de volta, não só do público, mas também da minha equipa. Foi uma ideia pequenina que acabou por resultar muito bem.

Em termos criativos, que efeito teve a pandemia no teu trabalho?

Em termos criativos, penso que não teve grande impacto. Também tinha acabado de gravar um disco, e quando isso acontece entro sempre numa fase em que não componho nem quero escrever absolutamente nada. Respeito muito essa fase de absorção. Ouço discos, vejo peças de teatro, viajo… se houve coisa que me fez falta foi fazer uma viagem a seguir a ter gravado o disco. É sempre uma parte de libertação para mim a seguir a lançar um disco. Faz-me bem viajar sozinho durante um mês, fez-me falta essa terapia. Quando pudemos sair, fui para os Açores. Se calhar se não fosse o Tiago na Toca, ia acabar por fazer alguma coisa inevitavelmente, mas essa criatividade foi toda canalizada para os lives. Todas as semanas tinha de arranjar três ou quatro versões originais de artistas que, muitas vezes, não eram fáceis de trabalhar.

Por muito paradoxal que pareça, achas que a pandemia veio provar que as novas tecnologias podem aproximar as pessoas?

Foi uma surpresa para mim perceber esta ponte que existia entre mim e o público através do Instagram. Não tenho grande jeito para as redes sociais e, de repente, consegui arranjar uma forma natural de, estando longe, estar perto das pessoas. De criar um espaço de interação, quase como se fosse um cenário. No entanto, é muito diferente de estar com alguém presencialmente, nunca será a mesma coisa. O mundo abriu-se muito mais para este tipo de comunicação virtual, acho que nos tornou um bocadinho mais preguiçosos [risos]. É um bocado o reflexo do que as redes sociais fazem. Esta maneira de ouvir música em shuffle, de repente os discos desapareceram, ouvimos música em streaming, não se paga absolutamente nada pela música que é feita… acho que isso fez com que a música ficasse bastante mais vazia. As pessoas não têm paciência para ouvir, para tirar mais de uma música, para dar mais tempo a uma música. Passados 15/20 segundos já tem de haver um refrão ultra catchy. Estas pontes tornaram-nos mais preguiçosos.

Participaste no disco Tozé Brito (de) Novo. Que tipo de emoção te provoca fazer versões de músicas de outros?

Só emprestei a voz, a versão foi feita pelo Benjamim, que é o produtor juntamente com o João Correia. Confio muito no gosto do Benjamim, gosto muito do trabalho dele. Acho que o importante, quando se fazem versões, é ter um respeito grande pela música que se está a cantar. É preciso perceber em que é que se pode mexer e em que é que nunca se pode mexer. Tenho ouvido algumas versões que parecem outras músicas, são mais fruto da vaidade do artista, de mostrar que se é muito original. Mudam-se as notas, muda-se a linha vocal e a certa altura é uma música completamente diferente, só a letra é que se mantém. Isso faz-me uma confusão gigante. Tem sempre que haver um respeito gigante pela versão original. Dou valor à melodia, à letra, às notas essenciais. É tentar jogar um bocadinho com isso sem estragar.

Acaba por dar mais trabalho do que compor uma música de raiz?

Isso acho que não porque a fórmula da música já está resolvida, só tens de a mostrar de outra maneira.

Passa-te pela cabeça gravar um disco inspirado na pandemia?

Acho que este  2019: Rumo ao Eclipse foi um bocadinho premonitório, já fala bastante disso. As coisas que escrevo são reflexo do mundo à minha volta, daquilo que me toca e que me inquieta. Nunca escolho um tema para um álbum. As coisas vão surgindo naturalmente. Aliás, quando estava a gravar este disco não sabia que título lhe ia dar. De repente percebi que ele falava daquele ano em específico, de uma crise de valores que se estava a tornar cada vez mais aguda e que tem vindo a aumentar nos últimos tempos. Acho que a Humanidade está a passar uma fase um bocadinho estranha e agressiva. Há muita consciência do que se está a passar, a reação a isso é que tarda, parece estar difícil de acontecer.

O concerto no Coliseu será em formato 360º, o que dá ainda um ar mais intimista. Isso é possível com tantas pessoas presentes?

Vai ser a primeira vez que vou atuar completamente sozinho no Coliseu, por isso vou tentar tornar o concerto o mais interessante possível. Ainda estou a tentar perceber de que maneira é que se consegue passar essa intimidade do Tiago na Toca para aquele espaço em termos cenográficos. Estando no meio da sala, vou ter de me virar para todos os lados, pelo que ainda estou a tentar entender como faço esse jogo. Mas, vai ter certamente um ambiente muito giro, muito intimista e muito especial.