Essa estranha forma de ser migrante

"Brasa" é o mais recente espetáculo de Tiago Cadete

Essa estranha forma de ser migrante

Afinal, o que é isso de ser português no Brasil ou brasileiro em Portugal? Pode-se estar em "casa" mesmo que longe dela, sem parecer estar sempre dividido em dois? E o que é isso de "estar em casa"?  Ou de falar a mesma língua, mesmo que ela teime em nos rasteirar? Em Brasa, Tiago Cadete prossegue uma reflexão sobre estas questões, desta vez acompanhado por outros artistas que experienciam a condição de migrante, num espetáculo que chega a Lisboa, a 14 de outubro, no âmbito da bienal BoCA .

Ao longo dos últimos anos, Tiago Cadete tem desenvolvido, normalmente a solo, um conjunto de criações que procuram refletir sobre aquilo que é ser migrante, sobretudo atendendo à sua própria situação de viver entre o país de origem, Portugal, e o Brasil. Mas o olhar do autor e intérprete não se resume à experiência quotidiana daquele que deixa o seu país natal e procura “fazer vida” num outro. As peças de Cadete, como por exemplo Entrevistas (2018) ou Atlântico (2020), cruzam o tema da migração com a identidade, a relação histórica entre Portugal e o Brasil ou os mitos e memórias guardadas nesse imenso mar que é o oceano Atlântico.

Em Brasa, palavra da qual deriva Brasil (nome este associado às árvores de pau-brasil e à sua seiva de cor avermelhada e incandescente, parecendo, precisamente, a madeira em brasa), Cadete abandona o formato do solo, atendendo “à falta que sentia de os corpos que soavam no [seu] em anteriores trabalhos, tivessem agora presença”. E fá-lo com um grupo de artistas, uns brasileiros residentes em Portugal e outros portugueses que viveram no Brasil, os quais, em cena ou através do som e do vídeo, são convidados a “olhar como é que cada um escolhe o país do outro para migrar ou como é que estabelecem relações enquanto pessoas na condição de migrantes.”

©Teatro das Figuras/DR

Paralelamente à autoficção, Cadete constrói uma fantasmagoria, sublinhada num palco dividido em duas partes onde o público, sentado de um lado, não vê o outro, embora escute o que se passa para lá dos seus olhos. Para além deste dispositivo cénico pretender dar ao espectador “a experiência de abandonar a sua zona de conforto”, como se se tornasse, durante uma hora e meia, também ele um migrante, o autor procura estabelecer “uma ligação entre a condição do migrante e o desaparecimento da sua própria imagem”.

Cadete explicita essa “ligação” no espetáculo, como se a partida para um lugar distante encontrasse paralelismo na morte. “Quando fui para o Brasil, os meus pais sabiam que eu estava vivo, claro, mas a minha presença aqui, a minha imagem neste local, tinha morrido, tinha deixado de existir”, exemplifica. E a morte, mesmo que não entendida no sentido mais estrito e definitivo, parece estar presente no processo migratório, independentemente de ser desenvolvido numa condição mais ou menos precária. Afinal, a migração, pela sua complexidade ou pelos seus traumas, “é sempre um processo profundo de transformação” para alguém que o vive.

Para além do próprio Tiago Cadete, Brasa conta com as participações, em cena ou em vídeo, de Gaya de Medeiros, Julia Salem, Keli Freitas, Magnum Alexandre Soares, Ana Lobato, Dori Nigro, Gustavo Ciríaco, Isabél Zuaa e Raquel André. O espetáculo pode ser visto em Lisboa, até 17 de outubro, nas Carpintarias de São Lázaro.