Jorge Lima Alves e José Vieira Mendes

Álbum "I ♥︎ Campolide" retrata o bairro lisboeta

Jorge Lima Alves e José Vieira Mendes

Cem anos de história e de discreto charme: Campolide retratado pelas lentes de Jorge Lima Alves e José Vieira Mendes no livro I ♥︎ Campolide. A obra, recém lançada, encontra-se à venda na Livraria Linha de Sombra, na SNOB/ Centro Cultural da Broteria, na Livraria da Travessa e na Livraria Ler (em Campo de Ourique). A Agenda Cultural de Lisboa esteve à conversa com os autores que partilharam a sua paixão pelo bairro e as razões que os levaram a publicar este belo livro.

Juntos publicaram um livro de fotografias que retrata o bairro de Campolide. Em vossa opinião quais as características essenciais do bairro que o distinguem dos demais da capital?

José Vieira Mendes (JVM): A malha urbana, o facto de estar num dos pontos, ou melhor, numa das colinas mais altas (senão a mais alta colina da cidade, o Alto de Campolide), o facto de ser uma zona de transição e passagem (fica ali à saída da autoestrada para Cascais, fica relativamente perto do centro da cidade), estação dos comboios da Linha de Sintra e onde começa o túnel do Rossio. Poucos lisboetas sabem que existe este túnel. E o facto ainda de se misturarem edifícios e vestígios pombalinos (Alto do Carvalhão, Rua do Arco do Carvalhão), com a modernidade das Torres das Amoreiras, que são vistas quase como nave espacial no centro da malha urbana. Onde está uma grande ícone e monumento da cidade: o Aqueduto das Águas Livres, que sobreviveu ao terramoto de 1755.

Sociologicamente é também um bairro muito interessante, onde persiste ainda um certo status ou estratificação social bem diferenciada: os mais pobres vivem nas habitações sociais do vale (Quinta da Bela Flor, por exemplo), os mais abonados no Alto de Campolide (na Av. Conselheiro Fernando de Sousa e, recentemente, na Nova Campolide). Eu, que pertencia à classe media, vivi e cresci ao meio, no bloco de prédios da Calçada dos Mestres. Apesar da evolução, Campolide permanece um bairro um pouco esquecido, sem grande status (comparado, por exemplo, com Campo de Ourique), envelhecido, sem uma livraria, sem atividades culturais (recordo que foi lá que nasceu o Grupo de Campolide do Joaquim Benite, que deu origem à Companhia de Teatro de Almada), sem uma biblioteca, e também com as velhas coletividades de recreio a definharem, aliás, como o comercial tradicional.

Costumo dizer, meio na brincadeira, que Campolide parece dominada e conhecida por ter um Centro Cultural do Frango Assado, (a Valenciana, que já ocupou um quarteirão e aquele prédio lindíssimo do Alto de Campolide, a velha Pastorinha e, diga-se com mérito, porque tem o melhor ‘frango assado do mundo’!). Nada contra, mas parece que falta, apesar das mudanças, qualquer coisa para ganhar status e cultura de bairro, que creio se foi perdendo. E não é preciso ser popular ou popularucho: simplesmente cultura de proximidade e bairro! Mas creio que há esperança, pois começaram a chegar jovens residentes e franceses, atraídos por preços de habitação e consumo mais baixos (do que Campo de Ourique, que está um bairro completamente afrancesado) e, claro, pelo Liceu Francês, que já existia quando eu era criança e que é uma escola muito boa.

Jorge Lima Alves (JLA): Na minha opinião, Campolide é um bairro desvalorizado, mal conhecido, um pouco à margem da pulsação da cidade. Todos os dias, muitos milhares de pessoas passam por aqui, de carro ou no autocarro, a caminho do centro ou de outros bairros com mais escritórios, mais oficinas e lojas mais modernas. Muitos procuram as Amoreiras ou Campo de Ourique, por exemplo, onde a oferta de bens e serviços é ampla e concentrada. A verdade é que Campolide tem pouco para oferecer ao forasteiro, tirando a sua vida pacata e a sua arquitetura muito particular. Se não há uma livraria ou uma biblioteca, também não há uma piscina, e os parques infantis que existem são inóspitos, pouco adaptados às necessidades lúdicas das crianças, muito expostos ao sol e à poluição causada pelo trânsito. Por isso, aos meus olhos, as vantagens de Campolide são essencialmente a sua centralidade e a paz de que gozam os locais pouco procurados.

Como surgiu a ideia de publicar este livro?

JVM: Foi durante a quarentena, ou melhor, durante os confinamentos. Vivo na fronteira entre Campolide e Campo de Ourique e decidi fazer os meus passeios pelas seis e meia, sete da manhã, já que sempre tive o hábito de acordar cedo. Fascinou-me (cumprindo as regras de não sair muito da minha área de residência) ver as ruas vazias e, por outro lado, reviver as memórias, os locais da minha infância, da Campolide onde vivi até aos 25 anos e onde a minha família chegou há cem e viveu até há pouco mais de três, quando faleceu o meu pai. Não vivendo lá, fui muitas vezes ao bairro para visitar e proporcionar o melhor aos meus pais. Fotografo obsessivamente e tenho mais de mil fotos de Campolide e muitas, mesmo muitas de Lisboa, que faço durante as minhas caminhadas, por uma questão de bem-estar e saúde. Reparei nas redes sociais que o meu amigo Jorge Lima Alves, que vive em Campolide há uns 15 anos, estava a fazer o mesmo: a fotografar o bairro. Quando isto aliviou das limitações sanitárias, desafiei o Jorge (ele já tem uns livros de fotografia publicados, em edições de autor) a fazermos um livro um bocadinho mais ambicioso, onde as nossas perspetivas e fotografias de autor se pudessem destacar. As fotografias acabam por dialogar e complementam-se, com visões e uma vivência diferente do bairro. É bastante divertido e interessante verificar isso, já que as fotografias de um e outro, no livro, só estão identificadas num índice final.

JLA: De facto, foi o José Viera Mendes quem teve a brilhante  ideia de me desafiar para este projeto, que abracei imediatamente por várias razões, como explico no texto de introdução que incluí no livro. Para mim, este projeto é um tributo à nossa amizade e uma forma de eu agradecer ao bairro que me acolheu com simpatia há 15 anos. Algo que não disse nesse prefácio, mas que tenho de dizer agora, alto e bom som: é precisamente o facto de Campolide ser um bairro tão desconhecido dos outros lisboetas que torna esta nossa iniciativa tão importante.

O José Vieira Mendes nasceu em Campolide. De que forma a vivência no bairro moldou o seu crescimento e influenciou o ser humano que é?

JVM: Viver num bairro onde vivem pessoas de estratos sociais e níveis de formação e cultura muito diferenciados, moldou muito a minha maneira de ser. Como estava no meio sempre soube olhar para os que estavam abaixo e para os que estavam acima e aprendi a respeitar todos de igual maneira. Os meus amigos eram de todos os estratos e é curioso que, indiferentemente do seu status, houve vários que ficaram pelo caminho e outros, como eu e o meu irmão (infelizmente já falecido), seguimos as nossas vidas de uma forma estável e, posso dizer, até bem-sucedida.

Há 50 anos, Campolide ficava um pouco afastado do roteiro dos principais cinemas da capital. Como surgiu a paixão de José Vieira Mendes pela sétima arte, e que salas frequentava na infância e adolescência?

JVM: O que está a dizer não é exatamente verdade! O bairro tinha o maravilhoso Campolide Cinema, na Rua Leandro Braga. Aos fins-de-semana realizavam-se matinés duplas a dois escudos e cinquenta centavos. Foi a minha cinemateca de bairro, onde vi grandes clássicos do cinema, de todos os géneros. Era um cinema muito elegante quando foi inaugurado na década de 20, já estava um bocadinho degradado quando eu era miúdo, mas funcionava e estava sempre cheio de miúdos, sobretudo nas matinés. Não havia muito aquela questão das classificações: o irmão mais velho levava o mais novo, mesmo que não fosse irmão de verdade. Encerrou em 1977 (eu tinha 17 anos), o edifício original creio que foi demolido e substituído por uma barracão ocupado por uma tipografia. Tenho fotografias do edifício agora, mas é tão feio, e nada tem nada a ver com o edifício original, que não merece sequer figurar no nosso livro. De qualquer modo, também vivia a 15 minutos a pé (menos de bicicleta ou de motorizada) da Avenida da Liberdade, onde estavam o São Jorge, o Tivoli, o Condes, o Odéon, entre outros (e, mais tarde, a Cinemateca Portuguesa); e também muito perto do Europa e do Paris em Campo de Ourique. Mais uma razão para dizer que Campolide fica perto de tudo, e por isso não se compreende porque sempre foi apenas um bairro popular sem o status de outros bairros de Lisboa. Um bairro um pouco esquecido, lembro-me que quando dizia que morava em Campolide, era quase como viver num ‘bairro de índios’.

O livro está apenas disponível em algumas livrarias de Lisboa.

 

O Jorge Lima Alves nasceu no ex-Congo Belga e viveu em França. Reside em Campolide desde 2005. Que vivências lhe proporciona o bairro que não tenha experienciado nos outros locais onde viveu?

JLA: Tive várias casas em Portugal, nomeadamente em Algés e em Benfica, mas tanto num local como no outro não podia verdadeiramente andar a pé, uma das minhas atividades preferidas. Estava sempre muito dependente dos transportes públicos, pois quase tudo o que me interessava ficava longe da minha residência. Em Campolide posso ir a pé à Gulbenkian, ao Corte Inglês, ao Parque Eduardo VII, às Amoreiras ou a Campo de Ourique, tudo locais onde não me canso de ir. Quase nem sinto a falta do Metro, que é uma das lacunas mais graves desta zona da cidade.

O Jorge é autor, entre outros, de livros de viagens. Em seu entender o que tem Campolide para oferecer ao visitante (nacional ou estrangeiro) que não viva no bairro?

JLA: Uma das razões que nos leva a viajar é a curiosidade, a necessidade de conhecer outras realidades. O que eu sugiro a quem queira conhecer Campolide é que deambule pelo bairro como se estivesse numa cidade estrangeira. Todas as coisas ganham interesse quando nos interessamos por elas. Quem por aqui passeie com os olhos bem abertos, encontrará muito mais do que imagina: as surpresas são constantes e as recompensas mais que muitas.

Como surgiu a vossa paixão comum pela fotografia?

JVM: Falo por mim: sou neto de um dos primeiros ardinas de Campolide e daí nasceu a minha paixão pela leitura e pelas imagens e pelo jornalismo. Trabalhei com o Jorge Lima Alves no Expresso, com quem aprendi muito sobre jornalismo e imagens. Ou seja, como trabalhar com as imagens no contexto de um jornal ou revista, como destacar um artigo ou fazer uma boa capa, por exemplo! Quando tinha 23 anos fiz o Curso de Fotografia do IPF e o resultado é um conjunto de fotografias que só agora vou ter oportunidade de mostrar na exposição Aqui Lisboa: Anos 80, que inaugura no dia 30, no Arquivo Municipal de Lisboa – Fotográfico. Ao longo da minha vida profissional, sobretudo de crítico e jornalista de cinema, tenho uma quantidade enorme de fotografias e reportagens de viagens, espetáculos, festivais de cinema, rodagens de filmes, atores, fotografias de rua que parecem cinema, enfim, um gigantesco portfólio que estou aos poucos a tentar organizar em paralelo com a minha atividade profissional. Digamos que, além das câmaras fotográficas, analógicas e digitais, de que sou colecionador, a câmara de um bom smartphone veio facilitar-me também essa obsessiva relação como o olhar, a fotografia e o cinema.

JLA: Comecei a tirar fotos quando me ofereceram uma máquina fotográfica. Depois, pouco a pouco, comecei a perceber que olhar para o mundo através de uma lente me permitia vê-lo melhor. Para se ser bom fotógrafo é prestar ao mundo a atenção que ele merece. Por exemplo: todas as casas de Campolide têm uma história que aflora na sua fachada. Uma casa é como um rosto, cada uma tem a sua personalidade. Todas, sem exceção, têm pormenores únicos. E depois há as pessoas que, em Campolide, como em qualquer outro lado são fascinantes se repararmos verdadeiramente nelas. No modo como se vestem, como falam, como se deslocam, como comunicam.

Porque consideram Campolide um “bairro fotogénico”?

JVM: Em parte isso está explicado numa destas respostas acima, mas, em síntese, Campolide é um bairro de contrastes a todos os níveis, entre o baixo, o alto, o antigo e o moderno, entre o velho e o novo. São estes contrastes que são revelados nas nossas fotografias, curiosamente num formato quadrado que bem poderia ser o velho 6X6.

Campolide mudou muito nos últimos anos. Houve algo que se tenha perdido e de que sintam saudades? O que falta ainda mudar?

JVM: Mudou muito, sim, e para melhor também, em certos aspetos! Obviamente o que vou dizer não está nas fotografias, porque foram tiradas numa altura muito excecional. Mas uma das coisas que noto é uma população envelhecida e, sobretudo, que faltam crianças no bairro, falta um bom jardim arborizado. Lembro-me que no passeio largo em frente à casa dos meus pais, na Calçada dos Mestres, e nas ruas do Bairro da Calçada dos Mestres, havia sempre muitos miúdos a brincar, a jogarem à bola ou a andarem de bicicleta, com eu e o meu irmão. Agora não se vê ninguém! A Calçada dos Mestres, por exemplo, era uma rua muito movimentada e com muito comércio tradicional, como o Vieira Mendes Alfaiate, o meu pai, as mercearias, os cafés, as drogarias, as lavandaria. Agora, a rua está deserta e a maioria das lojas fecharam. Enfim, acho que se perdeu um bocadinho essa cultura de bairro, o bairro envelheceu. Mas está mais bonito, principalmente o Alto de Campolide, com o quiosque e o regresso dos elétricos 24. Confesso que não sei exatamente o que é preciso mudar para melhorar! Pode ser, pelo menos, que o livro e as fotografias deem notoriedade a Campolide e isso atraia pessoas. Aliás, parece-me que estão a fazer-se novos e modernos empreendimentos imobiliários, e que isso arraste também a cultura e a peculiaridade e a sensação de proximidade e vizinhança que traz o comércio de bairro. Sei que é injusto, mas tenho sempre a forte tentação de comparar com Campo de Ourique, onde vivo desde que sai de Campolide.

JLA: Nos 15 anos em que aqui vivo, não se perdeu nada de essencial, a não ser talvez as agências bancárias Por isso, como disse um famoso poeta, do que tenho mais saudades é do futuro. Campolide merecia mais do que tem tido até agora. É um bairro cheio de potencialidades, porque há ainda muita coisa a fazer aqui. Neste momento, estão a construir-se vários condomínios de luxo e sei que os novos habitantes do bairro vão mostrar-se mais exigentes dos que já cá estão. E isso enche-me de otimismo.

Se vos pedissem para recomendar, de forma sucinta, este livro a um potencial leitor, como o fariam?

JVM: Não se trata de um livro de leitura, portanto não tem potenciais leitores! Tem potenciais visualizadores ou observadores, que também são importantes e pontos de partida para outras viagens pelo bairro. I Love Campolide é um álbum de fotos artísticas, é um livro no qual a fotografia contribui significativamente para o objetivo geral, que é dar uma visão do bairro de Campolide para a memória futura. Um álbum de fotos obviamente está relacionado com as memórias, mas também pode ser usado como um livro de mesa ou objeto de estudo dessa malha urbana e populacional. Para mim, e creio que também para o Jorge, é uma declaração de amor a Campolide, a ‘minha terra’ e a ‘terra onde ele vive”.

JLA: Se gostam de Campolide, este livro é indispensável. Se querem ter uma boa ideia de como é o bairro, espreitem o livro, creio que ele apanha bem a sua “essência”. Ou a sua “alma”, se preferirem. Este livro destina-se ainda a todos os que gostam genuinamente de fotografia e de objetos bonitos.