Dessacralizar a família através de um clássico

"Pais & Filhos" estreia no Teatro São Luiz

Dessacralizar a família através de um clássico

Um caso de Covid-19 diagnosticado na equipa do Teatro Praga adiou a estreia de Pais & Filhos para 24 de setembro. O contratempo vai levar o elenco a récitas diárias, até 3 de outubro, daquele que é o novo espetáculo de Pedro Penim. A partir de um facto autobiográfico, o também ator parte ao encontro do clássico homónimo de Ivan Turguéniev, combinando-o com uma perspetiva sobre o conflito intergeracional nos dias de hoje e as teorias queer que se propõem reinventar conceitos como filiação, parentalidade e família.

Na primeira pessoa, Pedro Penim dirige-se à plateia para contar as múltiplas incidências por que tem passado com o marido desde que, há cerca de três anos, decidiram ser pais através de um processo de gestação por substituição, a decorrer no Canadá.

Como esclarece, em conversa com a Agenda Cultural de Lisboa, o monólogo inicial de Pais & Filhos não pretende ser uma “démarche para reivindicar algum direito negado” a casais homossexuais. Antes, é esse prólogo autobiográfico que abre caminho à ficção, neste caso, à adaptação livre de um dos mais famosos romances do século XIX, Pais e Filhos, do escritor russo Ivan Turguéniev.

“Quando há uns dois anos a Aida Tavares [diretora artística do Teatro Municipal São Luiz] me desafiou a adaptar um clássico, assustei-me porque não é algo que esteja habituado a fazer, nem sequer me interessa particularmente”, explica. “Geralmente, nos meus projetos, faço o aproveitamento de um facto biográfico ou de um acontecimento político ou social, qualquer coisa do mundo real, por assim dizer, que me dê vontade de falar sobre.”

Nessa altura, Penim estava “tão emocionalmente envolvido no processo de surrogacy”, ou seja, de gestação por substituição (vulgarmente denominado por barriga de aluguer), que procurava ler tudo o que encontrasse sobre o assunto. E, na teoria queer vem a descobrir pontos de vista dispares sobre a matéria, “uns a favor, outros ferozmente contra”. Dai, assumir a inevitabilidade de “qualquer projeto artístico” em que se envolvesse, acabar “contaminado pelo que estava a acontecer na vida real.”

Um dia, no escaparate de uma livraria, salta à vista do encenador um exemplar de Pais e Filhos, romance que lera no final da adolescência e que poderia ser, “pelo tema, pela abordagem ao conflito de gerações no seio da família, pelo retrato das mudanças sociais, culturais e políticas”, o clássico.

Na peça, Rita Blanco encarna uma atriz de teatro, mãe de uma “niilista queer” interpretada pela atriz João Abreu.

Juntando ao “velho” Turguéniev (que reescreveu ao longo de dois meses, resultando “300 páginas de teatro irrepresentável”) a teoria queer acerca de filiação, parentalidade e família – destacando-se todo um conjunto de interrogações que são levantadas sobre eliminação dos laços de sangue e a abolição da família por autoras como a comunista Sophie Lewis ou a anarquista Alyson Escalante –, Penim construiu um espetáculo que do clássico resgata muito mais do que o título. “Mantive a forma do romance e as personagens principais, dando-lhes o vocabulário e os temas contemporâneos.”

À procura da “nova” família

O monólogo introdutório de Pedro Penim dá testemunho da complexidade, para lá da ciência médica, que acarreta um processo de gestação por substituição (aliás, suficientemente pormenorizado durante o testemunho em nome próprio). Trata-se apenas do ponto de partida para interrogações em catadupa que vão sendo colocadas pelas personagens ao logo da peça. E toda e qualquer certeza pré-concebida que tenhamos acerca do assunto, arrisca-se a ser abalada cena a cena.

“Uma grande virtude do texto”, salienta Hugo van der Ding, ator que representa na peça o marido de Penim, “é entregar a cada personagem as dúvidas e incertezas com que o Pedro se deparou na vida real”. Um exemplo, logo no início: a jovem gestante, Katya (Ana Tang), procura o casal para anunciar que desistiu de fazer parte do processo de surrogacy, independentemente do dinheiro que iria ganhar, o qual, por ser “uma rapariga pobre”, lhe faz falta.

Katya crê numa reação compreensiva por parte do casal, estando certa de que se adotassem “também [iriam] adorar a criança”. Porém a resposta que ouve incide sobre o argumento da “ligação biológica”, depressa considerada pela jovem como resultado de uma noção burguesa e conservadora de família, mesmo que renovada sob a perspetiva daquilo que caracteriza como “o mundo de merda dos veadinhos neoliberais.”

No ato seguinte, o estudante Arkasha (personagem interpretada por David Costa, e que a traço grosso é o ingénuo e idealista Arkádi do romance de Turguéniev) está de regresso a casa do pai (Diogo Bento), trazendo consigo Eugénia, “a camarada” (João Abreu), uma assumida niilista queer que vem anunciar a destruição de toda a infraestrutura do mundo capitalista (para usar a terminologia marxista de onde, aliás, todas as teses expostas descendem).

No topo da lista de Eugénia – personagem que é a versão queer de Bazarov (precisamente, o niilista no romance de Turguéniev) – estão conceitos como género e família, este último referido como o mais influente na perpetuação da ordem social capitalista, não só por simbolizar a reprodução biológica, como a reprodução dos valores sociais. Profundamente influenciado pela amiga “genial” (como o próprio a considera), Arkasha entra em profundo conflito ideológico com a família, sobretudo com o pai, devoto do mais sincero amor filial pelo filho, e com os tios gay, incapazes de compreender como é que a abolição da família pode ser operacionalizada no futuro.

Nestes dois exemplos, condensam-se os polos temáticos da peça, desde os conflitos geracionais (muito bem representados nas diferentes faixas etárias que compõem o elenco) à urgência revolucionária proposta pela teoria queer ao colocar o conceito de família no seu epicentro.

Com engenho, mas sem nunca perder algum sarcasmo, Penim baralha o jogo, trabalhando a harmonia familiar, sublinhada na relação cúmplice e fraterna entre os irmãos, e assim esvaziando de sentido a tese de abolição da família. É verdade que a família pode ser o inferno (a violência doméstica, o carater patriarcal e outros abusos no seio familiar vão sendo referidos ), mas é grande o desconforto que se sente quando se ataca uma instituição geralmente considerada intocável. Afinal, ao pô-la em causa é como se “estivéssemos a atacar quem amamos”, sublinha o encenador.

A atriz Rita Blanco, que na peça interpreta a mãe de Eugénia, e surge como um contraponto à ideia dos laços de sangue significarem necessariamente amor, relembra a experiência, de certo modo desconcertante, por que passou ao chegar aos ensaios de Pais & Filhos. “Ao tomar contacto com toda esta problemática, e refletir sobre estes assuntos, percebi que tinha todo um conjunto de preconceitos que jamais me ocorreu considerar. Alguma vez tinha imaginado questionar a família enquanto instituição?”

Pais & Filhos abre certamente um manancial de questões que servem para indicar caminhos apontados a respostas concretas. E à boa maneira marxista, , confronta a “tese” à “antítese” para projetar uma “síntese”, que mais não é do que uma nova conceção de família, distante da fórmula hierárquica, patriarcal e exclusiva em que a cultura judaico-cristã a concebeu.

Talvez seja “ficção científica”, como se diz no final da peça, mas ao dessacralizar e reinventar o conceito, a “nova” família imerge mais igualitária, mais plural e mais justa. E, inevitavelmente, abre o caminha à esperança naquilo que podemos vir a conceber como um mundo melhor.