O teatro político de Caryl Churchill

"Top Girls" e "Distante" em estreia no TNDM II

O teatro político de Caryl Churchill

O teatro experimental, inovador e convictamente implicado com temas políticos e sociais de Caryl Churchill está em grande destaque, ao longo das próximas semanas, no Teatro Nacional D. Maria II. De uma assentada, sobem ao palco Top Girls e Distante, duas peças incontornáveis da aplaudida e premiada autora britânica. As encenações são de Cristina Carvalhal e Teresa Coutinho, respetivamente.

Quase 20 anos separam uma peça da outra. Top Girls, texto de 1982, amplamente premiado e dos que mais contribuíram para consagrar Caryl Churchill (n. 1938) como uma das maiores dramaturgas do teatro inglês. Distante (Far Away no original), escrito em 2000, fazendo ressoar o pessimismo que a autora descortinava já sobre este novo milénio, e que pode ser testemunhado numa peça mais recente, e atualmente em cena no Teatro Aberto, Só eu escapei (2016).

São peças distintas ou, como diz Cristina Carvalhal que agora dirige Top Girls, “uma é mais realista e concreta; a outra, Distante, mais abstrata”. Contudo, ambas partilham a singular capacidade da autora em combinar a experimentação dramatúrgica com o compromisso social e político, algo que torna a sua obra, sobretudo pela heterogeneidade, capaz de uma acutilância rara no olhar que propõe sobre o mundo que nos rodeia. E isto, independentemente de uma peça ter como pano de fundo o triunfo do capitalismo selvagem nos anos de Thatcher (Top Girls), e outra se passar num tempo incerto, perante um cenário de guerra total (Distante).

Nuno Pinheiro, Tânia Alves e Inês Dias em “Distante” ©Francisco Levita/ CML_ACL

 

Como enfatiza o especialista em Teatro britânico Peter Buse, parte da dramaturgia de Churchill encontra o drama na “frustração do desejo”, desejo esse “nem sempre erótico”, mas “quase sempre político”. E as vitimas dessa frustração são “os oprimidos e, numa grande parte das vezes, as mulheres”, ou seja, quem “o ordenamento social e político patriarcal está pouco disposto a acomodar.”

Esse acaba por ser o drama de Marlene, a protagonista de Top Girls. Ela é uma mulher que orientou tudo para ser bem-sucedida na carreira, sacrificando valores maiores e vida pessoal para ser “acomodada”. Ou seja, Marlene apresenta-se como o exemplo da mulher que conquistou o poder mas perdeu a alma, rendendo-se a um sistema implacável, onde não sendo agente de mudança se torna parte do problema. No fundo, e à semelhança da então primeira-ministra britânica Margaret Thatcher (diretamente visada no texto original da peça), esta protagonista é uma “patriarca” no feminino.

Através de um enredo não linear e episódico, Churchill constrói um “clássico” notabilizado pela extraordinária e fantasiosa cena do restaurante em Londres, onde Marlene comemora a sua promoção a um cargo de chefia na agência de empregos onde trabalha (a “Top Girls” do título). Aí, ao jantar, este modelo feminino de sucesso reúne-se com mulheres de várias épocas, as quais a história, enquanto produto da visão patriarcal, tratou praticamente de omitir. Elas são Isabella Bird, uma viajante e escritora inglesa do século XIX; a Papisa Joana, que no século IX chefiou, disfarçada de homem, a Igreja Católica; Gret, a líder de um exército de mulheres que terá, segundo o folclore flamengo, saqueado o Inferno, estando celebrizada numa famosa pintura de Pieter Breughel; Nijo, que no século XIII foi educada para ser concubina do imperador do Japão, tornando-se, após incontáveis tormentas, monja budista; e Griselda, uma pobre camponesa tornada personagem central num dos contos do Decameron de Boccaccio.

Sandra Faleiro e Beatriz Brás em “Top Girls” ©Humberto Mouco/ CML_ACL

 

Metodicamente, os dramas pessoais destas mulheres permitem a Churchill apresentar os temas que se vão cruzando no mundo que rodeia Marlene, do local de trabalho à intimidade familiar. E, ao falar desta “mulher de sucesso” segundo os ditames da sociedade capitalista, Churchill não só evidencia o seu olhar crítico sobre a desigualdade, como o contrasta com as causas, atribuíveis não só ao género, mas também à raça e à origem social.

Por isso, Cristina Carvalhal lembra que Top Girls, embora seja habitualmente apontada como uma peça feminista, é sobretudo, tal como Churchill sempre fez questão de considerar, “uma peça sobre o poder e de como o seu exercício define a condição da mulher”. Algo que, sendo indissociável do teatro de Caryl Churchill, foi também do da encenadora que dirigiu pela primeira vez este texto em teatros portugueses – Fernanda Lapa, em 1993, no Teatro Aberto. Aliás, é a essa feminista convicta, também ela tão implicada na transformação política e social, que Cristina Carvalhal (atriz nesse espetáculo) dedica o “seu” Top Girls, uma peça tão urgente hoje, como tem sido desde há décadas.

A distopia mais negra

Caryll Churchill assumiu sempre que o seu teatro não serve para dar respostas, antes colocar questões, como se essa fosse a melhor forma de interpelar o poder. Em Top Girls, a autora aponta o dedo a uma sociedade em desumanização crescente, competitiva ou, como refere Cristina Carvalhal, “uma sociedade desprovida de humanismo” que nos pode encaminhar para um tempo cada vez mais negro e sombrio.

Essa sociedade futura, despojada de valores, profundamente mecanizada, encontra-se plasmada em Distante, peça curta, com apenas quatro personagens e passada num mundo em que homens, animais e elementos da natureza se encontram numa guerra sem fim.

Dirigida por Teresa Coutinho, a peça é constituída por três quadros mergulhados numa ambiguidade perturbadora. “É um texto brilhante, difícil, onde estamos sempre à procura de saber o que move as personagens e a questionar-nos o que é o bem e o mal, a verdade e a mentira, o certo e o errado”, sublinha a encenadora.

Uma vez mais, o tema é o poder, através da institucionalização do “medo que um governo impõe sobre os seus cidadãos”. Sabemos que existe conflito sem solução, descortina-se uma limpeza étnica e todo o quotidiano é marcado pela brutalidade.

Nuno Pinheiro em “Distante”  ©Francisco Levita/CML-ACL

 

Distante dispõe-se como um puzzle. Num primeiro quadro, uma jovem, Joan, interpela a tia sobre os gritos que escutou lá fora e que a fizeram assistir a uma cena de violência e opressão entre o seu tio e um grupo de homens, presumíveis prisioneiros. O segundo, passa-se numa fábrica de chapéus destinados ao desfile público de execução de prisioneiros, e ali encontramos Joan, agora uma mulher, e aquele que será o seu futuro noivo. No quadro final, o casal regressa à casa da tia de Joan e sabe-se que o mundo está mergulhado numa guerra total, onde se formaram blocos beligerantes de homens e animais, uns contra os outros, e se percebe que o futuro deixou de ser uma possibilidade.

Entre um realismo temperado de fantasia e a mais negra das distopias, a partir de 20 de maio e até princípio de junho, Top Girls e Distante mostram duas faces do teatro daquela que é uma das grandes autoras do nosso tempo.