Paulo Flores

"A minha música nunca foi movida pelo sucesso, mas pelas preocupações que tenho com o que me rodeia"

Paulo Flores

Considerado o embaixador do semba e uma das maiores vozes da música popular angolana, Paulo Flores conta com mais de 30 anos de carreira. O músico e compositor acaba de lançar Independência, um disco que celebra a história e a independência de Angola. A 21 de maio, Paulo Flores apresenta-se, pela primeira vez, no Coliseu dos Recreios acompanhado pelos amigos Yuri da Cunha, Prodígio e Manecas Costa.

É considerado o embaixador do semba e um dos maiores nomes da música popular angolana. De que forma lida com isso?

Não é uma coisa que ocupe muito do meu tempo porque, como costumo dizer, sou aquilo que sobra depois de todos os aplausos. A minha música nunca foi movida pelo sucesso, mas sim pelas preocupações intrínsecas que tenho com a Humanidade e com o que me rodeia. De alguma forma, a minha música, a minha arte e as minhas palavras também acabaram por me salvar daquelas depressões existencialistas que os poetas têm [risos]. Sou um daqueles que tenta construir caminhos e possibilidades para que haja muito mais embaixadores. Lembro-me, quando comecei, de ter muito medo de ir para o palco, era algo que me parecia ser contranatura. O meu pai incentivava-me bastante, foi ele que praticamente me pôs em cima do palco. Lembro-me do primeiro concerto, eu não queria ir fazer o soundcheck, estava em pânico… fazia as minhas músicas, mas não tinha noção de que isso podia tocar os outros.

Ainda sente esse nervoso miudinho quando sobe ao palco?

Sinto sempre. Aliás, agora até sinto falta disso, porque não toco há algum tempo… é algo que me faz falta. Lembro-me que, no início, tinha grandes dificuldades, mas com o tempo o palco tornou-se o lugar onde me sinto mais seguro, é um universo em que me fui ambientando e encontrando. Mas sim, sinto sempre aquele nervoso, aquela adrenalina que nos ajuda a transcender as inseguranças e chegar ao público.

No passado dia 11 de novembro, assinalou-se o 45.º aniversário da independência de Angola, uma data muito importante para si e que é uma grande inspiração para as suas músicas…

Este álbum era para se chamar Heróis da Foto, porque no fundo esta música é mais biográfica, fala sobre coisas que nunca tinha dito sobre mim próprio e sobre a história de Angola. Para mim era importante perceber, 45 anos depois, como estão as dependências da nossa independência. Acho que, no fundo, com este álbum, também estou a contar a história da minha vida. De tudo aquilo a que assisti, do que me traumatizou, das lágrimas e dos sorrisos… vim para Portugal aos três anos com a minha mãe, a minha tia e os meus primos. O meu pai ficou em Luanda. Todas as férias de verão eu ia para lá. Vivia no meio desses dois mundos. Daquele lado era o “bloco de Leste” e aqui era o Ocidente. Tudo isto faz parte do meu imaginário, do meu crescimento, até a propaganda soviética, onde nos inspirámos para fazer a capa do disco. Havia uma praia, que era a praia dos soviéticos, mais ninguém podia lá ir. Para mim, com 8, 9 ou 10 anos, isto eram contrastes incríveis que estão diluídos na minha arte. Este álbum acaba por ser um pouco todas estas histórias sobre mim próprio e também sobre a história de Angola, que foi muitas vezes adulterada. Quero deixar o testemunho de todos aqueles que não têm voz ou que já partiram. Para mim, são muitas vezes estas vozes caladas os verdadeiros heróis, não aqueles que aparecem na televisão em horário nobre.

Alguma vez sentiu que não pertencia a lugar nenhum?

Sempre senti isso. Sempre me senti marginal em todos os lados. Em Portugal diziam-me: “preto, vai para a tua terra”, e em Angola diziam-me “branco, vai para a tua terra”. Isto parece incrível, mas é verdade. Imagina as repercussões que isto tem na cabeça de uma criança. A minha música era muito inspirada em poetas de intervenção como o Zeca Afonso ou o Ary dos Santos. Só com a idade, com o tempo, com o testemunho que as pessoas me davam da importância da minha música na vida delas, é que me fui sentindo mais inserido, e hoje sinto-me tanto lisboeta como luandense ou benguelense. Tenho muito orgulho em ser o que sou, a mistura de todas estas histórias. Fiz recentemente um tema sobre o meu amor a Lisboa, que se chama Fado de Lisboa. Gravei-o, mas não está no álbum, porque eu queria dar este contexto da história de Angola dos últimos 45 anos, por isso guardei o tema para um EP futuro de homenagem a Lisboa. Hoje, felizmente, sinto-me parte tanto desta cidade como de Angola, e em todos os sítios onde canto acabo por receber esse carinho da diáspora e de todos os que se identificam com a língua portuguesa e com a nossa música.

Tem o coração dividido ao meio…

Ele agora está cheio. Antes estava mesmo dividido. O meu avô materno é de Macedo de Cavaleiros, o meu pai é de Benguela, tudo isto é quem eu sou.

“Para mim, são muitas vezes estas vozes caladas os verdadeiros heróis, não aqueles que aparecem na televisão em horário nobre”

As suas canções representam o povo angolano. Isso é uma grande responsabilidade?

No início, a música era feita mais com instinto do que com pensamento, a criatividade de um jovem que transmite o que sente. Mais perto dos 40 anos, comecei a perceber que o que dizia fazia diferença. Se promover um concerto meu nas redes sociais, sou capaz de ter 100 partilhas, mas se fizer um posicionamento que é considerado político sobre a situação de Angola, sou capaz de ter três mil partilhas. Isso deu-me noção de que não podia falar só sobre o que sentia. As pessoas utilizam quase tudo o que digo como argumento a favor ou contra, então já faço uma melhor gestão do que quero transmitir e por vezes só intervenho quando é muito importante. Musicalmente ainda consigo ter essa liberdade de expressar os sentimentos, mas nunca, até hoje, consegui adulterar uma obra, uma frase que seja, sobre o que queria dizer. No início não ligava a isto, nem sequer tinha noção do contexto político. Só com o tempo percebi que aquilo que dizia podia ser forte para o contexto que estava a viver. Consigo ter essa dinâmica de fazer as coisas por amor, por instinto, sem grandes preocupações com outras questões que às vezes são inibidoras da nossa criação.

Ao longo destes respeitáveis mais de 30 anos de carreira terá, certamente, muitas histórias inesquecíveis. Houve algum momento que o tenha marcado particularmente e que queira partilhar?

Há muitas, de facto. A primeira vez que fui a Moçambique, a Maputo, foi em 1992 e marcou-me bastante porque não tinha noção se ouviam a minha música ou não. Na altura, tinha dois hits, Cherry e Coração Farrapo, e lembro-me de que o primeiro concerto foi no Estádio da Machava, e quando comecei a cantar não conseguia ouvir a minha voz, por causa da forma como o público cantava, em uníssono. Em Moçambique, o público é muito participativo. Outra coisa que me marcou foram histórias que os militares me contavam: quando vinham das batalhas, para curarem as suas feridas, punham a minha música a tocar. Ouvi também histórias de pessoas que foram mandadas parar num controle da UNITA, e que estavam a ouvir a minha música. O pessoal da UNITA, como a minha música é muito interventiva, disse “estás a ouvir o Paulo Flores? Ele é dos nossos, podes passar”. As pessoas que me contaram isso vieram oferecer-me uma bebida e agradecer por isto. Outra coisa marcante foi o primeiro espetáculo que fiz no Estádio dos Coqueiros, em Luanda, que foi marcado muito em cima da hora. Começámos a fazer promoção só uns dias antes, e no próprio dia tínhamos mais de 30 mil pessoas no estádio, foi um momento muito especial. Há muitos momentos marcantes, é um privilégio.

Depois de mais de um ano de pandemia, e de vários meses sem poder tocar ao vivo, o que espera deste regresso aos palcos?

Sinto muita falta, até desse nervoso miudinho antes dos concertos. Já não vou a Angola há mais de um ano, algo que não acontecia desde os meus 14 anos… há praticamente um ano que não dou concertos ao vivo. Este concerto no Coliseu vai ser muito especial porque é uma sala onde desejo tocar desde criança. Acho que vai ser mágico, não só apresentar o novo álbum, mas também fazer essa viagem pela minha carreira. Estou muito ansioso.

O concerto que leva ao Coliseu conta com participação de alguns convidados especiais como Yuri da Cunha ou Prodígio, uma referência do rap angolano. Como vai ser partilhar o palco com estes músicos?

No caso do rapper Prodígio, fizemos um disco juntos, que saiu em outubro do ano passado, A Benção e a Maldição. No fundo, é uma conversa geracional porque, embora eu seja mais do semba e da quizomba, ou seja música mais étnica, o Prodígio é do hip hop, música mais contemporânea. Mas o nosso sentido de nação, de preocupação humanística e até a nossa poética é parecida. Ele faz-me lembrar quando comecei, faz-me voltar a esse tempo em que o instinto vinha antes do pensamento. É um trabalho tão puro e tão duro que aumentou ainda mais a proximidade que já tínhamos. O Prodígio, tal como outros rappers, inspirou-se na minha escrita. São géneros diferentes, mas existe essa ligação. O Yuri da Cunha é a nossa continuação e a certeza do semba e do futuro da música de Angola. Vou ter também o Manecas Costa que canta comigo dois clássicos da música de Angola no disco: um da Guiné-Bissau, Si Bu Sta Diante da Luta, e Xica Feia de Angola, do Bonga e do Manuel Rui Monteiro. Cantamos as duas músicas e é sempre um momento muito emocionante, que já fazemos desde 1994. Faltava esse lado de homenagem à mulher, à maternidade, que em África, mais até do que noutros lugares, acaba por ter uma importância decisiva, porque as mulheres, no tempo da guerra, tiveram um papel decisivo: tornaram-se empresárias, mães, professoras, trabalhavam na lavra, foram guerreiras… era importante ter esta homenagem. Aliás, ela está na capa do disco. O designer gráfico fez várias capas, mas a que acabou por ficar foi quase como se ele tivesse lido a minha mente, porque significa mesmo o meu crescimento, a minha infância, as minhas dúvidas sobre os dois mundos.

Como viveu o período de confinamento? Aproveitou para compor?

Estou sempre a criar e a vida real, que passa ao lado da criação, de vez em quando surge. Acho que me aguentei melhor no primeiro confinamento. Sou uma pessoa caseira, por isso no início não senti muita diferença. Durante essa fase preparámos um live dos 3G, que era eu, o Yuri da Cunha e o Cota Bonga, e fazer o guião artístico ocupou-me algum tempo. Gravei o disco com o Prodígio, que acabou por ser lançado na altura em que a pandemia estava no auge, por isso nunca chegámos a apresentá-lo ao vivo. Estou também a trabalhar num projeto de música infantil, que é um universo muito pouco explorado em Angola. As crianças têm de ouvir músicas de adulto ou música juvenil. Este projeto também me tem ocupado bastante tempo e tem sido muito prazeroso trabalhar o futuro e o imaginário das nossas crianças. Tem sido muito isto: produzir, reorganizar a forma de comunicar e de chegar às pessoas. Aproveitei também para organizar o meu património, que andava muito espalhado pela internet e por outros sítios.

O que se segue?

Temos o concerto a 21 de maio, no Coliseu. Dia 10 de junho sigo para Angola, onde vou dar alguns concertos de lançamento do disco até julho. Se tudo correr bem em termos de pandemia, tenho um concerto para fazer com o Yuri, Os dois no Semba, que vai passar por vários sítios até final de agosto. Para o ano, faço 50 anos de idade e 34 de carreira e quero gravar um disco com alguns amigos, uma celebração desta minha vida. Esse é o plano para 2022: um álbum que tenha duetos com artistas que fazem parte da minha vida. Planos não faltam.