A Lisboa de Rui Cardoso Martins

A partir de uma conversa com o escritor

A Lisboa de Rui Cardoso Martins

Jornalista, escritor, cronista, argumentista, cofundador das Produções Fictícias, Rui Cardoso Martins nasceu em Portalegre, mas vive em Lisboa desde os 17 anos. Numa conversa com a Agenda Cultural de Lisboa, revela como as histórias de Lisboa seduziram a sua escrita numa pluralidade de géneros: na crónica, Levante-se o Réu (2015) e Levante-se o Réu Outra Vez (2016), no teatro, Última Hora (2020), e, sobretudo, no romance Deixem passar o Homem Invisível (2009), distinguido com o Grande Prémio do Romance da Associação Portuguesa de Escritores, o seu livro de referência sobre a cidade subterrânea e à superfície. Como escreve nessa obra: “Seria estúpido alguém aborrecer-se nos segredos de Lisboa, a névoa petrificada do império português.”

Nasci em Portalegre e vim para Lisboa estudar aos 17 anos, já com a ideia de seguir jornalismo escrito, para o curso de comunicação social, na avenida de Berna. Inicialmente, a minha experiência de viver na capital foi um bocado aflitiva. Como muitos dos que vêm da província, estranhei as pessoas que não se falavam, os transportes públicos (lembro-me de um amigo que quando entrou pela primeira vez no metro gritou: “Isto tem cá um arranque!”).

 

Vivi em nove locais diferentes da cidade e foi numa dessas casas entre Sete Rios e a Praça de Espanha que conheci uma das personagens do romance Deixem passar o Homem Invisível, o mágico Serip. Foi uma relação marcante porque ele era muito engraçado e disparatado. Dizia-me: “Se alguma vez escreveres sobre mim, tens de expor também os meus ridículos”. Esta rua foi importante e serve de cenário ao lugar onde vive o cego que protagoniza o romance. Gosto de escrever com sítios específicos na cabeça, que o narrador saiba onde a personagem está e para que lado se vira, um pouco como aquilo que aprendi para escrever sobre um cego, a questão da orientação, da localização e deslocação.

Uma das grandes alegrias que tive foi quando este livro foi passado a Braille. Houve uma sessão na Biblioteca Nacional, às escuras, e dizem-me, ainda hoje, que nunca falei tão bem. Foi porque perdi todas as referências e toda a noção do espaço. Tudo passou a ser preenchido pela voz. Um senhor lá do fundo pediu a palavra e disse: “O senhor Rui que me perdoe, mas até parece ceguinho”. Foi o maior elogio que me podiam ter feito. Eu não queria transformar a cegueira numa alegoria, procurei dar a sua verdadeira dimensão e a do sofrimento que acarreta. Por essa razão, os cegos reviram-se nesta aventura.

Hoje gosto muito de Lisboa e é aqui que quero viver. Mais tarde tenciono dividir o meu tempo entre a cidade e a serra de São Mamede onde tenho uma pequena quinta de família. Por coincidência, a quinta é atravessada por uma pequena ribeira que vai dar a um rio que desagua no Tejo. Sei que aquelas águas vão parar à beira da minha casa de Lisboa (na zona da Expo) e sinto também essa ligação fluvial.

Palácio da Justiça

Fui estagiar para o Público no inicio do jornal. O Vicente Jorge Silva lembrou-se que tinha havido em tempos uma tradição de crónica judicial e sugeriu que eu fosse assistir aos julgamentos. Encontrei ali uma espécie de microcosmos do mundo inteiro, onde se vivem histórias dramáticas, cómicas e, às vezes, uma mistura das duas. Isso deu-me a primeira oficina, aprendi a relatar, com condições, acontecimentos que são fulcrais na vida daquelas pessoas. Histórias de ciúme, paixão, roubo, traição, quebra de confiança, juízes paternalistas… Um sítio onde se ouvem frases extraordinárias como esta: “Peço perdão e vou viver a minha pessoa de outra maneira”. Este conjunto de crónicas foi depois publicado em dois volumes Levante-se o Réu (2015) e Levante-se o Réu Outra Vez (2016).

Igreja de São Sebastião da Pedreira

Nasci em 1967, ano da grande inundação de Lisboa que matou 700 pessoas e que foi abafada pelo regime. Um dia, no Museu da Água foi-me mostrado o mapa da Lisboa subterrânea com todos os seus 32 caneiros. A minha visão da cidade passou a ser diferente e questionei-me se haveria um cano que começasse na cidade alta e que desaguasse no Tejo. De facto, existe um que tem início em S, Sebastião da Pedreira e desagua no Cais das Colunas. Depois deu-se um facto quase anedótico, um célebre autocarro caiu num caneiro de Alcântara, revelando um rio subterrâneo tapado por betão. O meu raciocínio foi olhar para Lisboa e pensar: se cai um autocarro, pode cair um carro, uma mota ou uma pessoa. A ideia inicial do romance Deixem passar o Homem Invisível, uma grande viagem por Lisboa, por baixo e por cima, foi esta: uma pessoa ou duas que caem num cano e vão andando até ao rio, salvando-se ou não. Depois coloquei a ação no largo em frente à igreja de São Sebastião da Pedreira que está cheia de iconografia deste santo, um dos primeiros mártires do cristianismo, cravado de flechas.

Parque Eduardo VII

Este livro começa com uma catástrofe natural, uma inundação provocada por uma chuva torrencial, e acaba com outra, um terramoto. Pareceu me interessante iniciá-lo nesta área que vai do El Corte Inglés ao Parque Eduardo VII. Era uma zona rural no século XVIII e foi aqui que o marquês de pombal mandou enterrar as cerca de dez mil vítimas do terramoto de 1755, numa enorme vala comum. No romance, este local serve também para evocar uma imagem de Lisboa: os grandes bandos de estorninhos, autênticas marés voadoras que fazem aquelas pinceladas de brilho prateado no céu e que parecem unidas por um único cérebro de pássaro. À noite recolhem para dormir nos choupos e plátanos do parque até lhes dobrarem os ramos com o peso.

Rua de Santa Marta

Na cidade subterrânea, fazendo o percurso das águas até ao rio, os protagonistas do romance, António e João, um advogado cego e uma criança, escuteiro que saía da Igreja de São Sebastião da Pedreira, engolidos pela força da enxurrada, passam por baixo da Rua de Santa Marta. É uma oportunidade para falar de uma Lisboa ao gosto popular, dos restaurantes de bairro que servem caracóis, bacalhau, iscas, e das lojas com saldos de calças, soutiens e cuecas.

Rua da Fé

António e João, encontram abandonado numa sarjeta o corpo de um recém-nascido morto. A ideia tem a ver com a história antiga dos túneis dos conventos onde se encontravam muitas ossadas de recém-nascidos, mas também, mais uma vez, com casos dramáticos a que assisti nos tribunais: bebés deitados no lixo, alguns vivos, outros infelizmente já mortos. O livro tem apontamentos de humor, mas está cheio de situações trágicas como esta.

Teatro Nacional D. Maria II

Escolhi este local por duas razões. Porque foi o local dos autos de fé da Inquisição, período histórico que muito me inquieta. E porque estreei neste teatro, em 2020, a peça Última Hora, onde, de forma humorística, mas espero que com grande sentido crítico, procurei perceber o que vai ser do jornalismo em Portugal, uma atividade que acho essencial à democracia. Gosto de pensar que passa ali por baixo um caneiro que se vai alargando até ao rio.

Cais das Colunas

O final do romance é apocalíptico. O refluxo das águas provocado por um novo terramoto expulsa António e João para um vale de lodo no Tejo. Quando as pessoas pensam se eles morreram ou não, eu acho que não. Pensei muito em como acabar o livro e um dia, na Igreja de Nossa Senhora dos Mártires, ao Chiado, a última frase do livro caiu-me do céu: “António, por muito que lhe custasse, por mais que estivesse errado, continuava a acreditar.”