Lisboa, Menino e Moço

Um texto original de Tiago Salazar

Lisboa, Menino e Moço

Em 2017, Tiago Salazar publicou O Moturista Acidental, livro de crónicas com prefácio de Ferreira Fernandes e ilustrações de João Fazenda, inspirado nas viagens de tuc-tuc que conduziu por Lisboa, durante o verão. Num texto inédito, escrito para a Agenda Cultural de Lisboa, o autor revisita essa experiência e evoca a sua relação de “menino e moço” com a cidade de Lisboa.

Vim ao mundo na Clínica de S. Gabriel, em S. Jorge de Arroios, às 04h20, do dia 21 de Fevereiro, de 1972. A minha mãe, então uma jovem de 19 anos, no momento do parto berrou e insultou as parteiras, a quem chamou de cabras e putas para aliviar a tensão das entranhas abertas e da passagem lenta da minha cachola. Nasci cabeludo, cabeçudo como um pepino, mas depressa fiquei careca, e assim estive, reboludo, bochechudo e calvo, durante um ano.

Alvalade foi o meu primeiro bairro. Ali fiz o tirocínio das artes da guerra que são as de crescer na rua, entre uma rapaziada danada da breca e ciganada dos bairros periféricos do Cambodja e Vietname (em Chelas).

Nos primórdios da adolescência, por curiosidade antropológica, comecei a visitar a aldeia cigana ao cimo da Avenida dos EUA (1). Queria ser adoptado pelo rei dos ciganos e tardava em voltar a casa, deixando-me estar até anoitecer deitado à etrusca nos tapetes da família Lelo que vivia de expedientes de feira e outros, dos quais não me apercebi ao certo, mas deviam ser marginais. Mais tarde vim a saber que eram contrabandistas e traficantes de haxixe e isso explicava os carros de luxo, os molares doirados e o ceptro (uma moca cravejada de diamantes) do grande chefe. Havia sempre guitarras, dança, cantos e lamentos, gataria e vira-latas e um vozear roufenho. Chamavam-me o russo de má-pêlo e acolhiam-me como um dos seus, mal sabendo que Salazar era de origem romani.

Fui parar ao ramo dos tuk tuks por causa do Frederico Duarte Carvalho, um carolas da História e das narrativas orais, além de escritor prolífico e de valor (com quem editei há pouco o livro Cartas do Confinamento [ed. Âncora]. Sabia dos ventos de glória de um par de antigos compagnons de route do Jornalismo, que ali viram uma forma de compensar a míngua das redacções, continuando a fazer da arte de comunicar a bordo de um riquexó o seu ganha-pão, com a tripla vantagem dos vazios legais, o ajuste de contas poético com o Sistema e o grito de liberdade. Dava-me jeito para compensar um azar de percurso e vim a descobrir na vida de feirante um verdejante pasto de crónicas e reportagens, que me levariam a escrever O Moturista Acidental [ed. A23], e a gravar uma série homónima para TV (por estrear). Para quem nunca experimentou a vida de tuktukeiro, isto é, visto de fora, e julgando o monge pelo hábito, quem o faz não passa de uma estirpe de diletantes. Um escol de janados, maltrapilhos, indigentes, impostores. A escória da sociedade, que, não tendo onde cair morta, caiu no cockpit de um tuk para arrebanhar uns cobres fáceis.

Ora, o guia, se tiver brio, estuda e dedica-se. Além de saber meia-dúzia de línguas, os meandros da História, e de entreter, tem que usar da fineza dos vendedores avisados. Está na rua, mas podia estar numa livraria ou alfaiataria, a dissertar sobre a obra de autores ou a vender fatos por medida. Se sabe quem foi o olisipógrafo Júlio Castilho ou quem são Appio Sottomayor e a Maria João Martins, tanto melhor. Se pode levar o viajante à mesa do British Bar onde Cardoso Pires escreveu o seu Lisboa: Livro de Bordo ou à viela onde desafinou o papillon de Baptista-Bastos por avanços sobre a sua esposa; ao Martinho da Arcada, onde Pessoa bebeu absinto e caligrafou A Mensagem; ou à passagem esconsa e sombria junto às Portas de Santo Antão onde Luís Vaz se travou de argumentos que o levariam ao cárcere ali vindo a escrever o primeiro canto de Os Lusíadas, melhor ainda. Se anda munido dos mistérios desvendados por Victor Mendanha ou sabe dos passos secretos e da geometria dos maçons, é pura questão de gosto e apreço pelo que não está à vista.

Alvalade, é falar do meu Sporting, indo um pouco mais além. Avô e pai Gomes, adeptos do Sporting, trouxeram-me, por ADN, a paixão leonina. Tenho bem presente o baptismo no velho estádio José Alvalade (2). Era uma tarde ensolarada e lá fomos, eu, pai e avô (das poucas vezes que nos recordo juntos) assistir a uma partida do campeonato. Vi-me fascinado com o espectáculo ao vivo, embora me lembre de ter passado mais tempo ocupado a comer queijadas e a emborcar sumóis de ananás. Ganhámos o jogo e por cada golo (uma cabazada) vi-me içado como um papagaio de papel entre leões em êxtase. A emoção do golo tem a sua razão de ser na explicação para a irracionalidade do clubismo.

Ao passear um turista em Lisboa dou por mim a pensar no poema Invitation au Voyage, de Baudelaire, e de como a minha ideia de Portugalidade insiste em ser a de um lugar ao sol onde povos sucessivos campearam para se instalarem, mas no final sobrou um gueto feliz, oásis de turistas em sobressalto, um dos poucos lugares do mundo onde é possível uma mesma rua alojar um muçulmano, um judeu e um ateu sem a noite acabar num paiol de pancadaria.

Penso em discussões pífias de futebol, em poetas e versejadores, em mandriões e mânfios e tanas e badanas e sacanas (como lhes chamou o Nuno Bragança) mas tudo malta convencida de que é porreira e de bom coração, penso no Ernesto Sampaio que dizia ser esta uma terra de bimbos, mas a ocidente não conhecer outra melhor.

Viajar fez-me concluir que o português emigrado é um tipo orgulhoso do seu torrão deixado para trás onde sempre voltará, de peito feito à conquista da terra escolhida como canteiro adoptivo mas sem nunca perder de vista a pátria por mais anafada a conta bancária.

Dei por mim, na qualidade de exilado (que me levou a escrever o livro de crónicas e contos Quo Vadis, Salazar? Escritos dos Exílio [ed. Escritório], saudoso de um pão capaz, uma sopa da avó, uma diatribe de bola olho no olho na tasca do senhor Abílio, o mar ao sair da porta, a luz coada do Verão quando ainda é Inverno, o burburinho das ruas estreitas da Mouraria e Alfama onde sempre voltei e me vi guia acidental.

Se professor é quem ensina (a andar, falar, pensar…) a minha avó Vessadas foi a primeira e grande mestra da minha vida. Antes de sentar o rabo na 1ª classe, no Bairro de S. Miguel, comecei por ir com a minha avó para o Campo de Santa Clara (3), onde ela dava aulas aos neófitos. Eu ficava à retaguarda, nos bancos dos fundos, ao lado de um calmeirão angolano. Como era o neto da “stôra”, olhavam para mim de lado, mas com o tempo, acabei por ser incluído e ganhei mesmo a alcunha de Tintim, graças a um redemoinho no meio da testa que perdurou até aderir ao semblante heavy-metal na adolescência. Nas aulas da avó Vessadas aprendi o bê-á-bá (e as linhas de caminhos-de-ferro e os rios e a tabuada) como os mais velhos costumam dizer “à moda antiga” (com açoites de régua e demais ensinamentos).

Qualquer miradouro de Lisboa nos leva à pose de contempladores de mundos, mas tenho especial carinho pelo alto do Parque Eduardo VII (4), onde D. Carlos e o rei inglês se divertiam como ardentes monteiros e bebedores de cátedra. Um dia, a passear um casal de americanos, ouvi este diálogo.

– Estou a fazer 43 biscas não tarda e que sei disto, do ofício de viver? Ando a ver se consigo pelo menos chegar à fase do quanto menos penso, mais existo. É tramado quando começas tarde a praticar e estás viciado em pensar achando que pensas bem mas apenas ruminas. Mas acho que os resultados estão a aparecer. Esta semana, por exemplo, consegui estar a olhar para uma parede branca meia hora sem pensar em quase nada tirando como pagar a este, àquele e aquele outro e como fazer com que me paguem a mim, para a coisa fluir com boas energias.

– Deixa-te lá de coisas e faz-te à vida. Estás porreiro, tirando essa malapata. Lê o Balzac e “A arte de pagar as suas dívidas e de satisfazer os seus credores sem gastar um cêntimo”. Pensa que há credores sensíveis e bondosos que acabam por se afeiçoar ao devedor. Olha para mim com 67. Devo a meio mundo, querem cortar-me o pescoço, depenar-me e continuo a fazer a minha vida como se nada se passasse.

Quando a Praça de Camões (5) se desvenda ao subirmos a Rua do Alecrim (6), e se dá de caras com a estátua do poeta, o mais certo é o embarcadiço do tuk tuk questionar quem é o fulano da pala. Conta-se então, conforme a inspiração do dia, estarmos diante do mais alto vate da nação. Se for cliente italiano, diremos estarem Os Lusíadas para A Divina Comédia, e Luís Vaz no degrau de Petrarca e Alighieri. Por razões que a razão desconhece, dou por mim a exortar os meandros da Ilha dos Amores, certo de que nenhum outro canto expressa tão avisadamente o que poderá ser a alma lusitana. Perro no italiano, desabrido no inglês e pomposo no francês, quando me chega a hora de impressionar a freguesia nada mais adequado do que pegar num velho exemplar camoniano da biblioteca do meu avô Garcia, empoleirado no banco do meu tuk tuk e de mão direita a desenhar voos picados por cada soneto lido. Aos franceses, comparo-o a Baudelaire como podia trazer à liça Verlaine ou Rimbaud, não tendo Celine parido poesia digna de registo. Aos brasileiros, nada mais os impressiona do que acordar o poeta Pessoa, e aí há que descer à Rua Garrett (7), ao Largo do S. Carlos (8) e às artérias da Baixa, se queremos esbarrar com a alma do poeta total. Camões, Bocage, Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Cesário Verde, o poeta Chiado, navegam a bordo do meu tuk tuk como podiam navegar nas ruas do Rio de Janeiro Clarice Lispector, Vinicius ou Tom Jobim.

Podia contar a história de um sem número de viajantes ocasionais, levados a bordo do meu tuk tuk amarelo, a quem chamo com carinho de machimbombo. Falo aqui de um casal aposentado do Surrey. Vi Kevin a primeira vez numa esquina da Rua Garrett. Linda, a mulher, esperava-o, e não se pode deixar uma mulher à espera ou trocar-lhe os planos. Estavam casados há 35 anos e viviam a reforma dourada. Os filhos criados, o negócio vendido e o suficiente para darem um par de voltas ao mundo até se esfumarem nos ares unidos pelo seu amor antigo. Depois de uma carreira bem sucedida de vendedor,salesman you know, dizia, Kevin era agora na reforma um fotógrafo apaixonado. Antes de zarparmos, deu-me um par de directivas. Queria frequentar ruas sem gente e paisagens dramáticas. Guinei ao cimo do Príncipe Real (9), aos ziguezagues pela Rua das Adelas (10), a Praça das Flores (11), a rua dos Prazeres, até chegar ao meu miradouro secreto nas traseiras do Jardim Botânico. O segredo, estava na hora de dizer-lhe, era apenas um: achar a famosa luz de Lisboa, e descobrir porque esta era a cidade dos céus mais altos do mundo. Diante de si tinha a cidade escancarada, apenas para ele e Linda e o chaperone Salazar, com a colina do Torel (12) ao longe e a cúpula da casa dos galegos a fumegar para fazer daquele instante um momento inesquecível.