Os livros de janeiro

Sete livros para iniciar o ano

Os livros de janeiro

Em Os Testamentos de Margaret Atwood, brilhante sequela de A História de uma Serva, a protagonista, numa sociedade autocrática do futuro que nega a leitura às mulheres, tem finalmente acesso a uma biblioteca e descobre que “ler não dá resposta a todas as perguntas. Leva a outras perguntas, e depois a outras.” Para iniciar o ano de 2021, propomos seis livros que promovem sugestivas reflexões sobre temas de grande relevância: a essência das relações amorosas, a massificação do desporto, o mundo existencial de Tchékhov, o universo da internet, o conceito de radicalismo, a opressão na Espanha franquista. Para os mais novos, sugerimos uma deliciosa história escrita e ilustrada, justamente, por Margaret Atwood.

 

Annie Ernaux

Uma Paixão Simples

A reedição de Uma Paixão Simples, agora na Coleção Miniatura, e no ano em que a editora já nos dera o maravilhoso Os Anos, da mesma autora, não terá sido coincidência, mas efeito da exibição da adaptação ao cinema deste livro curto (cerca de 70 páginas), pela realizadora libanesa Danielle Arbid, aquando da mais recente edição do Lisbon & Sintra Film Festival. Perguntamo-nos, não tendo visto o filme, o que pode ser a visão cinematográfica de um livro todo em discurso interior, de memórias fugazes de um romance que terminou, entre uma mulher de meia-idade divorciada, e um homem de Leste, mais novo, casado, viajante. Relação que apanhamos em andamento, nos momentos de espera da mulher, e na presença fugaz e fantasmagórica do homem. A escrita de Annie Ernaux é depurada e frontal, ao ponto dos seus livros poderem ser tidos por autobiográficos. Ernaux estabelece com o leitor um pacto de intimidade, ficamos próximos desta mulher (ou mulheres), independentemente de a lermos ou não como se tratando dela mesma, pela riqueza da sua exposição franca e despojada. Livros do Brasil

Mickaël Correia

Uma História Popular do Futebol

“Cresci num bairro privado de Buenos Aires… privado de água, de luz, de telefone”, ironizava Diego Maradona. O pibe de oro, herói mítico do futebol, manteve sempre uma sólida consciência de classe. A sua personalidade indomável, provocatória e subversiva consubstanciou a ideia de Jorge Luís Borges de que “o argentino (…) não se identifica com o Estado. O argentino é um individuo, não é um cidadão”. Ora, é justamente pelo poder subversivo do futebol, não como fenómeno mundializado, paradigma do desporto mercantil e da cultura de massas, mas como arma de emancipação, que este livro se interessa. Para além do universo futebolístico dominante, a presente obra propõe uma abordagem social e politica do fenómeno, descrevendo episódios em que que o desporto-rei esteve ao serviço das lutas contestatárias. Dos jovens operários de bairros pobres aos movimentos anti-coloniais e feministas, passando pelas subculturas da modalidade, o futebol fez emergir novas formas de organização e representação. Da Palestina à Africa do Sul, dos hooligans ingleses aos Ultras na Primavera Árabe, eis um impressivo relato do futebol como jogo de resistência e oposição à ordem estabelecida. Orfeu Negro

Anton Tchékhov

Peças em Um Acto

A medicina é a minha esposa, a literatura a minha amante”. Após terminar o curso na universidade de Moscovo, Anton Tchékhov tornou-se assistente do médico distrital de uma pequena cidade de província. A sua profissão permitiu-lhe contactar de perto tanto com os camponeses como com os membros da nobreza, momentaneamente igualados na doença, trazendo-lhe o profundo entendimento da condição humana que haveria de reproduzir nos seus contos e teatro. As suas peças – A Gaivota, O Tio Vânia, As Três Irmãs, O Cerejal – afastam-se dos aspectos melodramáticos e da acção tradicionais para se centrarem na vida emocional dos protagonistas. Os seus dramas do quotidiano formam uma pintura irónica e melancólica das classes médias russas e dos seus destinos medíocres. As peças em um acto, chamadas “vaudevilles” à falta de melhor designação, continuam a ser separadas das suas grandes peças. O tradutor António Pescada salienta as diferenças entre elas: “Nas peças de ‘grande formato’ (…) as personagens têm sonhos e aspirações que não se realizam; nas peças em um acto as personagens têm apenas pretensões lastimáveis, preocupações mesquinhas e absurdas.” Relógio D’Água

Isabel Meira & Bernardo P. Carvalho

Gosto, Logo Existo

“A internet tem o peso de um morango, mas polui mais do que a indústria dos aviões”. Este livro, aconselhado a leitores a partir dos doze anos, acredita que é importante fazer perguntas e que as respostas não estão todas no Google. Quando a maioria dos leitores desta obra nasceram já estava tudo ligado e nem lhes parece possível que o mundo funcione de outra forma. No entanto, a internet mudou — e ainda está a mudar — muita coisa no mundo, incluindo o jornalismo. Através da internet, apareceram gigantes invisíveis como a Google e o Facebook que, não sendo empresas de jornalismo, transformaram a nossa forma de aceder à informação. Nas redes sociais, as notícias parecem supersónicas e as visualizações, os likes e as partilhas podem chegar aos milhões. O problema é que os rumores, os boatos e as mentiras também. Habituámo-nos a receber a informação e a desinformação que nos chega através de algoritmos secretos. Vivemos numa enorme bolha de likes e partilhas. Mas será que conhecemos bem as regras do jogo? Planeta Tangerina

Victor Correia

O que é o Radicalismo?

O conceito de radicalismo, assim como outro que nos tempos atuais lhe surge por vezes associado, o de populismo, é usado para expressar as novas tendências político-sociais. Tanto um como o outro são dos que mais caracterizam o mundo de hoje, porém o seu significado e emprego são geralmente ambíguos e mesmo confusos, dado que não se compreende a que se referem e o que cada um deles realmente é. Neste livro, O professor e investigador Victor Correia examina a que áreas o conceito se aplica – na política (de direita e de esquerda), na religião (o fundamentalismo), na filosofia (as ideias filosóficas ditas radicais), e na arte (o vandalismo) -, abrindo caminhos para a compreensão dessas áreas a partir do conceito de radicalismo e, no sentido inverso, desse conceito a partir das áreas às quais se aplica. Mostra também o que existe de comum e de diferente no radicalismo em cada uma das áreas. Numa linguagem acessível à generalidade do público, relaciona o conceito de radicalismo com outros conceitos semelhantes, analisando os pontos de convergência e de divergência, e mostra a sua ambiguidade e subjetividade. Guerra & Paz

Eduardo Mendoza

O Rei Recebe

No seu livro Mundo Mendoza, Llàtzer Moix fala de “realidade bifronte” ao referir-se à narrativa de Eduardo Mendoza e estabelece uma distinção entre suas novelas sérias ou maiores, e os seus divertimentos ou novelas menores. Contudo, a esta diferenciação escapa a seriedade, o sentido crítico e a noção de transcendência presente nos seus romances de humor e o humorismo omnipresente nos seus romances sérios. A mais recente obra de Mendoza, O Rei Recebe, é um exemplo perfeito desta transversalidade. O livro inaugura uma nova trilogia literária, As Três Leis do Movimento, que percorrerá os principais acontecimentos da segunda metade do século XX. Ambientada em Barcelona, como quase todas as suas obras, narra a história do jornalista Rufo Batalla que, em 1968, recebe o seu primeiro trabalho: cobrir o casamento de um príncipe exilado com uma dama da alta sociedade. Divertidas coincidências e mal-entendidos levam-no a travar amizade com o príncipe, que lhe encomenda a escrita da sua história. O opressivo ambiente da Espanha franquista leva-o a viajar para Nova Iorque, onde virá a ser testemunha dos grandes fenómenos sociais e culturais dos anos setenta: os movimentos antirracista, gay e feminista, e as novas vanguardas artísticas. Sextante

Margaret Atwood

No Alto da Árvore

As recentes adaptações televisivas de The Handmaid’s Tale e Alias Grace tornaram a escritora Margaret Atwood numa celebridade. Porém, a autora era já um nome de culto entre os leitores mais atentos. The Handmaid’s Tale, originalmente publicado em 1985, vendeu milhões de exemplares, deu origem a um filme (com argumento de Harold Pinter e realização de Volker Schlöndorff), a uma ópera de Poul Ruders e afirmou-se como alegoria política digna de Admirável Mundo Novo ou de 1984. Lamentavelmente, esta notoriedade não se estende à sua notável obra poética, remetida à semiobscuridade pela fama de romancista. Para a autora a poesia representa o cerne da sua relação com a linguagem, enquanto a prosa reproduz a sua visão moral do mundo. No Alto da Árvore revela-nos outra faceta do seu talento, o da escrita e ilustração para crianças. A obra, sobre dois meninos que vivem no cimo de uma árvore, foi desenhada nos primórdios dos livros infantis publicados no Canadá. Só podiam ser usadas duas cores, porque três encareciam muito a impressão: daí o azul, o vermelho e o castanho que é uma combinação das duas. Limitação que a autora transcendeu de forma brilhante. Edição bilingue com tradução portuguesa de Margarida Vale de Gato. Ponto de Fuga