Um Ricardo III para tempos insanos

Peça de Shakespeare numa encenação de Marco Medeiros

Um Ricardo III para tempos insanos

A história da ascensão violenta e sanguinária de Ricardo, Duque de Gloucester, ao trono de Inglaterra, chega ao Teatro da Trindade em plena pandemia. Numa encenação sublinhada a traço grosso de cultura pop, Marco Medeiros dirige um elenco encabeçado por Diogo Infante, que constrói um Ricardo III à medida dos tempos insanos que vivemos.

Há um profundo trabalho de depuração no longo texto de William Shakespeare nesta nova versão de Ricardo III, dirigida por Marco Medeiros, que parte da tradução e do trabalho de dramaturgia de Maria João da Rocha Afonso, falecida em maio deste ano. Esse depurar intensifica o caráter quase insano da peça, que acompanha a estratégia letal de Ricardo para tomar o poder e, posteriormente, os efeitos dessa ascensão violenta e sanguinária no seu curto reinado.

Tal como no original de Shakespeare, tudo se ergue em torno da figura desse temível personagem que, nas palavras do encenador, “só pensa no poder em si, no seu uso e abuso”. Mas Ricardo surge aqui, na composição que Diogo Infante faz dele, como “um ser andrógino, um excluído que, guiado pela ambição desmedida, procura a sua identidade e o seu ser na aplicação da violência.” Será como levar à letra aquele desabafo da personagem quando diz “Ricardo ama Ricardo”, nada mais interessando.

Num cenário austero e frio, Ricardo move-se como um ser enjeitado, uma espécie de personagem de comic, que arquiteta a sua ascensão ao poder recorrendo a todos os meios, manipulando, ferindo, violando e matando quem lhe surge no caminho. Não existem contemplações nem pejos de misericórdia que o demovam de erguer a coroa, que “nem sequer lhe cabe na cabeça”, como é sublinhado na cena da sua coroação.

Através de citações de cultura pop muito acentuadas, Medeiros reforça a intemporalidade do texto de Shakespeare, como se colocasse a história de Ricardo III no aqui e no agora, neste mundo de pandemia que parece terra fértil para que brotem tiranos. Não é somente a composição que Infante faz do vilão, é o soar do tema de Billie Eilish Bad Guy, as armas de fogo que disparam ou o recurso a técnicas mais do cinema do que do teatro (como os flashes a descortinar as vontades ainda mais sombrias de Ricardo) que proporcionam um inquietante desconforto de tempo presente.

Ricardo III estreia a 26 de novembro, na Sala Carmen Dolores do Teatro da Trindade INATEL, e conta ainda no elenco com Gabriela Barros, Virgílio Castelo, João Vicente, Sílvia Filipe, Guilherme Filipe, Romeu Vala, Diogo Martins, João Jesus, Brandão de Mello, Constança Carvalho, Inês Loureiro e Joana Antunes. O espetáculo está em cena até final de janeiro do próximo ano.