Chá no jardim com vista para o fim

'Só Eu Escapei' em estreia no Teatro Aberto

Chá no jardim com vista para o fim

Depois do sucesso de Top Girls e Amor e Informação, o Teatro Aberto volta ao universo inquietante e perturbadoramente atual da dramaturga britânica Caryl Churchill. Em Só eu escapei, quatro mulheres para lá dos 70 anos tomam chá e conversam, enquanto no horizonte se anuncia o apocalipse. Sobre o mesmo palco reúnem-se quatro dos maiores nomes do teatro português do último meio século: Catarina Avelar, Lídia Franco, Maria Emília Correia e Márcia Breia.

No jardim de uma casa, todas as tardes, Lena (Maria Emília Correia), Viviane (Lídia Franco) e Célia (Catarina Avelar), três vizinhas, amigas de largos anos, reúnem-se para beber chá e laranjada. Na pacatez que as rodeia, conversam sobre assuntos do quotidiano, sobre os seus percursos de vida, sobre os tempos que mudam, revelando medos e desejos, anseios e agruras, mas também esperança e alegria, como quando brincam como se voltassem ao tempo de escola e dançam canções dos Beatles como se tivessem, de novo dentro delas, o sopro da juventude.

A elas, junta-se a enigmática nova vizinha, Regina (Márcia Breia) que, como uma sibila, vai anunciando ao espectador visões do fim dos tempos.

Como confidencia Maria Emília Correia, “há algo de muito críptico nesta peça”, onde a bolha harmoniosa do jardim em que convivem as quatro mulheres surge violentamente sacudida pelas visões apocalípticas sobre o futuro do planeta e da humanidade, anunciadas pela personagem de Márcia Breia. “Estas mulheres podem ser os quatro cavaleiros do apocalipse, uma representação simbólica da peste, da fome, da guerra e da morte”, sublinha a atriz.

O próprio título da peça, Só eu escapei, provém de uma passagem bíblica do profético Livro de Job (“só eu escapei para trazer a notícia”). Incumbência que cabe a Regina, a mulher que entra naquele círculo de amigas, envolvendo-se, embora mantendo simultaneamente a distância, “e que se levanta da mesa de chá para sacudir a plateia.”

Uma peça “profética”

“Há qualquer coisa de profético”, afirma o encenador João Lourenço, lembrando que a estreia estava programada para maio e que, devido à pandemia, só agora será possível levá-la ao palco. E lembra: “Caryl Churchill escreveu-a em 2016, ainda antes de Trump e Bolsonaro chegarem ao poder, antes de tomarmos consciência de que o planeta está verdadeiramente em perigo, e tão distantes de imaginarmos que um vírus iria alterar as nossas vidas. Tudo isso está na peça.”

Este adiamento, no contexto em que ocorreu, “acabou por ser importante para que adquiríssemos, eu e as atrizes, um pensamento político coletivo, baseado em tudo o que nos rodeia devido a uma evolução que deixou de ter em consideração a dimensão humana e a necessidade de respeitar a natureza”, sublinha o encenador.

Quatro atrizes que são “a história viva do teatro português do século XX aos nossos dias”

“Nunca estive tão tranquilo antes de uma estreia, ou não soubesse que em palco estão quatro atrizes que sabem muito bem o que têm a fazer e são capazes de lidar com qualquer adversidade. Elas são a história viva do teatro português do século XX aos nossos dias”, sublinha João Lourenço, não escondendo a felicidade e a gratidão de juntar no mesmo espetáculo Márcia Breia, Lídia Franco, Catarina Avelar e Maria Emília Correia.

Com carreiras tão díspares e diferenciadas, o encenador lembra cada uma delas: “a Lídia, que começou como bailarina, fez teatro, filmes e televisão; a Maria Emília, atriz, grande, grande encenadora; a Márcia, com todo o percurso da Cornucópia; e a Catarina, que marcou toda uma época no Teatro Nacional. Que privilégio tê-las aqui a trabalhar comigo.”

João Lourenço lembra ainda a importância de serem mulheres, já que o teatro português tem a particularidade de ser “um bastião das mulheres”. “Quando comecei a trabalhar”, recorda, “a grande mulher do teatro era Amélia Rey Colaço, que ironicamente seria ‘um Salazar de saias’, no sentido em que era poderosa e mandava. Quando fui para o Trindade, era a Eunice [Muñoz] e a Carmen [Dolores]… As mulheres são quem verdadeiramente marca a história do teatro português.”

A juntar à importância de ver estas enormes atrizes em cena, o encenador frisa ainda “o empenho e a coragem” de cada uma delas em dar corpo a estas quatro mulheres “irónicas, engraçadas, inteligentes e intrigantes” que Caryl Churchill criou. Tendo em consideração a idade, fazem parte do denominado grupo de risco. “Em nenhum lugar do mundo a peça está a ser feita, precisamente por isso. Mas, a “resiliência e a vontade destas atrizes” venceu o medo e, a partir de 7 de novembro, de quarta a domingo, no Teatro Aberto, sobe o pano e acontece espetáculo.