Joana Sousa e Miguel Ribeiro

Doclisboa, ou a vontade “de imaginar futuros juntos”

Joana Sousa e Miguel Ribeiro

O Doclisboa – Festival Internacional de Cinema adapta-se ao contexto em que vivemos e apresenta uma programação dividida em módulos, entre outubro de 2020 e março de 2021. O festival tem também uma nova direção composta por Joana Gusmão, Miguel Ribeiro e Joana Sousa. Falámos com os dois últimos sobre o novo formato, a programação e a importância de ver filmes.

Qual é o vosso projeto para o Doclisboa?

No final do festival passado, quando assumimos a direção, terminámos o nosso discurso com a vontade “de imaginar futuros juntos”. As possibilidades de futuro nesse momento são um pouco diferentes das que agora se apresentam, dado o contexto atual em que o festival acontece e a imprevisibilidade do que aí vem. Contudo, a nossa missão e prioridades continuam a ser as mesmas: um festival que defende a pluralidade do cinema, que promove o pensamento crítico e que constantemente levanta questões sobre o mundo que o rodeia. O Doclisboa não defende apenas filmes perfeitos, queremos construir um programa com filmes que enfrentem as suas próprias fragilidades, de cineastas que repensem a sua prática para chegar às pessoas, lugares ou assuntos que nos mostram. Queremos construir o festival em constante diálogo entre o passado e o presente, utilizando a visibilidade que um formato de festival traz. Queremos também que o festival reflita sobre as potencialidades do cinema, no seu futuro e nas suas evoluções. Acima de tudo, é importante criarmos um lugar aberto, com desejo de dar a conhecer, de partilha e de crescimento.

A realidade que se vive condicionou a realização do festival? De que formas?

Esta crise afetou-nos profundamente, e durante os meses da quarentena reservámos algum tempo para nos reorganizarmos e refletirmos sobre as nossas prioridades, o que é importante para o festival, qual o seu papel e qual o caminho a seguir. Acreditamos que um festival serve também a comunidade na qual se insere, as salas, o público, os profissionais do cinema e que deve ter o respeito máximo pelos filmes que apresenta. Nesse sentido, nunca foi uma opção tornar o Doclisboa num evento totalmente online. Para nós é importante sublinhar que o cinema é uma experiência coletiva e que os festivais de cinema servem exatamente como plataforma para esse encontro. Num período em que tudo abrandou, adaptámos também o ritmo do festival e estendemos a programação ao longo de seis meses, dando assim ao público oportunidade para ver todos os filmes do festival e abrindo espaço para mais debates, atividades paralelas e outros momentos coletivos de discussão e pensamento. Na prática, mantivemos as salas habituais e adicionámos outros espaços da EGEAC onde iremos realizar algumas atividades simultâneas. O número de filmes exibido será o mesmo e manteremos a pluralidade de temas, abordagens e linguagens que sempre apresentámos. Todos os eventos relativos à indústria migraram para o formato online.

O cinema da Geórgia é homenageado com uma retrospetiva. Porquê a escolha deste país e que obras destacam?

Esta retrospetiva partiu de um desejo e de um desafio. Queríamos trabalhar cinematografias menos conhecidas em Portugal e, num encontro com o Georgian National Film Center, falaram-nos sobre o projeto monumental que têm em mãos de recuperar e restaurar filmes seminais da cinematografia georgiana. Desafiaram-nos a pensar num programa a partir desses filmes e decidimos então desenhar um mapa mais alargado do cinema deste país. A Geórgia tem uma relação bastante antiga e rica com o cinema. Mesmo antes de se tornar parte da União Soviética, o cinema georgiano já estava bem estabelecido e, nos 70 anos seguintes, prosperou com realizadores que exploraram linguagens e técnicas inovadoras. No entanto, as convulsões políticas que explodiram com o final da União Soviética, afetaram profundamente a produção de filmes. No início dos anos 2000, um conjunto de realizadores e produtores, aliado a um governo interessado em reavivar a indústria, deu um novo fôlego ao cinema georgiano. São estas mutações que acompanhamos ao longo da retrospetiva, desde os anos 20 até à atualidade, com filmes de realizadores incontornáveis como Mikhail Kalatozov, Serguei Paradjanov ou Lana Gogoberidze. E descobrindo novas cinematografias com outros mais jovens, como Mariam Khatchvani ou Salome Jashi. Vão ser 10 dias de viagem pelo cinema georgiano na Cinemateca Portuguesa, em que destacamos Magdana’s Lurja (1956), de Rezo Chkheidze, Tengiz Abuladze, um filme belíssimo sobre a inocência da infância e o sistema feudal. Ou, por exemplo, Dede (2017) de Mariam Khatchvani, sobre o conflito entre tradição e modernidade no contexto dos papéis de género.

O Trabalho está em foco nesta edição, com um ciclo que exibe mais de 20 filmes. Qual o objetivo deste programa?

O ciclo sobre as representações do Trabalho no cinema divide-se em dois momentos: um foco sobre visões contemporâneas de questões atuais, como as alterações sociais do último século, o desemprego, a precariedade e a liberalização, a ter lugar no Cinema São Jorge; e um segundo momento que se debruça sobre problemáticas do passado, exibido online na plataforma dafilms.com. Fazemos assim uma ponte entre as lutas de ontem e de hoje, questionando o próprio conceito do trabalho e como este foi evoluindo ao longo do tempo. Olhamos para movimentos grevistas em Reprise (1996) de Hervé Le Roux, a luta pelos direitos dos profissionais do sexo em Les Prostituées de Lyon Parlent (1975) de Carole Roussopoulos ou a modernização de trabalhos tradicionais, em Mudar de Vida (1966) de Paulo Rocha. Há ainda uma série de debates que acontecerão online, de forma a poder incluir participantes de diferentes contextos e territórios.

Que outros momentos destacam no programa?

Destacamos também os filmes que abrem e fecham o festival. Em outubro, o Doclisboa arranca com Nheengatu de José Barahona. Numa viagem pelas margens do Alto Rio Negro, Amazonas, Barahona procura as comunidades que ainda falam Nheengatu, uma mistura do tupi, português e outras línguas indígenas. Esta língua, imposta pelos colonizadores, moldou a paisagem e os povos daquela região e, através do confronto atual entre dois mundos, levantam-se questões importantes sobre antigos e novos colonialismos, tradição e futuro. Em março, fechamos o festival com Paris Calligrammes, de Ulrike Ottinger. Um filme-memória, no qual Ottinger revisita os seus inícios enquanto artista visual e os caminhos intelectual e emocional que a levaram, mais tarde, ao cinema.

“O Doclisboa não defende apenas filmes perfeitos, queremos construir um programa com filmes que enfrentem as suas próprias fragilidades, de cineastas que repensem a sua prática para chegar às pessoas, lugares ou assuntos que nos mostram.”

 

Em 2019 foi criado o Nebulae, um espaço dedicado à indústria cinematográfica. Qual a sua importância e como será desenvolvido nesta edição?

Um festival de cinema, para além de ser um lugar onde ver filmes, é também um lugar de encontros. Ao longo das várias edições realizadoras, produtores, distribuidores e programadores encontravam-se nos vários espaços do festival e daí surgiam ligações, projetos, ideias. Em 2019, estruturámos esses encontros num mapa de relações que é o Nebulae. Conversas, masterclasses, workshops, laboratórios de desenvolvimento de projetos e outras atividades dedicadas a unir os profissionais de cinema. Em 2020, sentimos que é ainda mais importante juntar esforços e estabelecer sinergias. Este ano, dadas as dificuldades de movimentação entre países, decidimos apostar em organizar as atividades em plataformas online. Embora o contato humano seja insubstituível, acreditamos que o mais importante agora é dar o máximo possível de ferramentas e apoio à indústria para que os filmes possam continuar o seu circuito e os projetos o seu progresso. Tornando esta crise numa oportunidade, usaremos as ferramentas online para ligar pessoas que, de outra forma, poderiam nunca ter os meios para viajar e participar nestas atividades.

Mantêm-se as sessões e atividades para os mais novos?

Acreditamos que o cinema documental é capaz de potenciar uma cidadania mais crítica, informada, aberta e respeitadora da diferença. Com base nisso, o festival recebe o Projeto Educativo da Apordoc e, a partir da programação, organizamos sessões, debates e oficinas para várias idades. Este ano, voltamos a organizar várias atividades para os mais novos. De 22 de outubro a 1 de novembro, temos as sessões DocEscolas, pensadas para estudantes dos diversos graus de ensino. Ao longo dos vários momentos do festival serão organizadas oficinas Docs 4 Kids, promovendo a aproximação do documentário às crianças e aos jovens. O cinema sofreu bastante com a conjuntura atual.

A internet e a televisão permitiram durante este período que o cinema chegasse ao público. Parece-vos irreversível a perda de público na sala de cinema e também nos festivais, uma vez que parte da programação destes acontece online?

É importante refletir sobre as relações que as salas de cinema e os festivais estabelecem com os filmes e com as comunidades onde se inserem. As salas e os festivais são espaços de encontro e de criação, de ligações entre os filmes, o público e profissionais do cinema. Vão sempre ocupar um papel de extrema importância para o próprio avanço do cinema enquanto expressão artística, indústria e como vetor social. O período de quarentena tornou mais óbvios certos meios de distribuição e o acesso alternativo a filmes, mas a relação que as salas e os festivais têm com o público não se alterou. As duas formas de ver filmes podem coexistir, oferecendo oportunidades diferentes não só para o público mas também para os profissionais do cinema. Mais do que colocar em oposição direta a distribuição online e a distribuição física, importa pensar como é que o cinema, que é uma forma de expressão artística que se faz e se vive coletivamente, irá mudar? A arte sempre se adaptou a diferentes paradigmas e construiu novas formas de representar o mundo, mas temos de estar atentos às condições em que trabalham os profissionais do cinema e lutar por políticas culturais justas que garantam o seu futuro.

 

Programação em: https://doclisboa.org/2020/