Rui Cardoso Martins

Uma comédia como 'Última Hora' "não podia deixar de ter uma nota de desespero, de nostalgia e de realismo"

Rui Cardoso Martins

São turbulentos os dias que se vivem na redação do histórico diário Última Hora, desde que o novo administrador anunciou o provável encerramento do jornal. O corpo redatorial vive horas penosas perante a cada vez mais remota esperança de sobrevivência que, a acontecer, passará por mudanças drásticas na linha editorial do periódico e, claro, pela dispensa massiva de trabalhadores. O drama do Última Hora é o de incontáveis redações de jornais por esse mundo fora e é a base de uma frenética comédia assinada por Rui Cardoso Martins, que estreia a 8 de outubro no Teatro Nacional D. Maria II, com encenação de Gonçalo Amorim.

Em entrevista, o premiado romancista, cronista e argumentista fala sobre o jornalista que foi e que, ocasionalmente, ainda é, e de como uma peça de teatro, que rouba o título ao jornal, consegue mostrar tanto sobre o estado atual do jornalismo e as condições precárias de quem o faz, revelando ao mesmo tempo tanto daquilo que somos, jornalistas ou não.

Apesar de a considerar uma comédia, a peça Última Hora parece ser um réquiem ao jornalismo…

Um réquiem esperançoso, apesar de tudo. Várias pessoas leram a peça e concordam que é uma comédia; outras, que não é só uma comédia, e até houve quem achasse que não é de todo uma comédia. Eu continuo a considerar que é uma comédia no sentido lato do género. É para fazer rir embora, comigo, fazer rir é fazer pensar.

Mas o riso é, muitas vezes, amargo.

Acredito que o humor não é aligeirar, é aprofundar. Claro que, apesar de ter pensado nela como um corpo de comédia, quem escreve uma peça sobre jornalismo tendo sido jornalista, e ainda mantendo alguns trabalhos jornalísticos, não pode deixar de ter uma nota de desespero, de nostalgia e de realismo.

Essa nostalgia não a torna sedenta de um tempo que já não existe?

Não. O trabalho que faço neste, ou noutros campos da ficção, é uma espécie de amálgama cronológica em que as personagens, também de acordo com os pensamentos que têm, vivem vários tempos ao mesmo tempo. Como, na verdade, todos vivemos. E a cada pensamento corresponde uma ação. Aqui, as personagens aparentam estar paradas naquela espécie de museu de imprensa. Mas não – elas estão a reagir ao mundo, às mudanças, à invasão de outras linguagens e outras maneiras de pensar (mesmo que estranhas ao jornalismo) para tentar sobreviver. Nesse aspeto, é um grito de vida.

Reconhece haver, apesar de tudo o que acontece na peça, uma visão romântica da vida nos jornais?

Há aqui ainda o jornalismo dos tempos heróicos, em que até era possível fumar dentro da redação ou ter uma garrafa de whiskey para dar combustível ao texto [riso]. Eu passei por isso tudo. Assisti e vivi. No fundo, procurei fazer tudo dentro desta peça. Ao mesmo tempo quero que as pessoas sejam surpreendidas. Gostaria que o público, no final do espetáculo, sentisse o mesmo que o imperador russo ao intervalo de O Inspetor geral do grande Gogol, e dissesse: “ele está a falar de nós”. Ou seja, pretendi obter um retrato de Portugal, de uma época (que é larga) e de uma sociedade.

E o jornal é aqui um microcosmos?

Não só da portuguesa e dos jornais portugueses. Ao contar alguns dos truques sujos que são usados por alguns que usam o jornalismo no sentido que Kant dava ao “mal radical”, ou seja, pessoas que usam os outros em proveito próprio, fazendo tudo o que é possível para se beneficiarem a si através de outrem, estou a falar do jornalismo, e não só, de cá ou de qualquer outra parte do mundo. Acho que a peça pode ser facilmente compreendida em qualquer lugar, tanto hoje como daqui a uns anos. E embora sendo uma peça escrita por mim, espero que fale por muitos.

Estas personagens podem ser facilmente reconhecíveis por quem tenha passado pela redação de um jornal. Inspirou-se em pessoas concretas?

Curiosamente, e sem qualquer tipo de misticismo, acontecem coisas na vida que têm muitas vezes relação com o trabalho que estou a desenvolver. Este livro foi para a gráfica [Última Hora está publicada em livro numa edição da Tinta da China, com lançamento marcado para a data de estreia da peça] no dia da morte do Vicente Jorge Silva, que foi um dos meus mestres, meu diretor no Público, embora o diretor deste jornal não seja o Vicente. Estas personagens são uma mistura de muitas pessoas com quem me cruzei, têm muito de mim, de amigos, dos que estão, dos que já morreram e até mesmo dos que hão-de vir. Acho que consegui, e os atores reconhecem isso, que cada uma delas tenha densidade, tenha contradições, e que isso as torne reconhecíveis.

Há um retrato feroz daquilo em que os jornais e, consequentemente, o jornalismo se tem tornado, essa tendência para a tabloidização…

Hoje é tramado ser jornalista. Somos olhados de lado, parecemos estar sempre sob suspeita de estar a entrar pelo caminho que este jornal da peça está a tomar. Experiencio isso quando vou a tribunal [o autor assina uma crónica intitulada Levante-se o réu no Jornal de Notícias] e puxo do cartão de jornalista para falar com alguém. Mas eu acredito no bom gosto, e ainda acredito no jornalismo.

“As pessoas desabituaram-se de comprar jornais, de pagar pela informação. Assim, não pode haver imprensa livre.”

 

O Rui tem trabalhado regularmente para teatro, lembrando a coautoria de textos para Casal da Treta ou Zé Manel Taxista, ou a dramaturgia de António e Maria [peça do Teatro Meridional, a partir de textos de António Lobo Antunes]. Mas este é um trabalho diferente. Como foi o processo de escrita?

Partiu de um desafio do Teatro Nacional D. Maria II, do seu diretor, o Tiago Rodrigues, que, por sinal, é filho de outro dos meus mestres no jornalismo [Rogério Rodrigues], em inícios de 2017. Depois, concorri a uma bolsa de criação literária em Berlim e para lá fui escrever uma peça sobre jornalismo sem saber ainda o quê. Visitei bem a cidade, tive a noção que subsiste do Muro, fui a alguns jornais e, durante esse período, desenvolvi uma parte importante da história. Aliás, Berlim está muito presente e há um episódio delicioso, que não quero revelar, mas que está na peça. Posteriormente, já por cá, dediquei-me a este trabalho, que foi duro, abdicando mesmo de outros para aqui concentrar o meu esforço.

Nessa passagem por Berlim, na visita a jornais, encontrou um cenário semelhante ao que se passa em Portugal?

A crise na imprensa escrita é geral, eles vendem menos, mas são ainda assim na ordem do milhão de exemplares. Mas, essa estada coincidiu com um período muito interessante. A imprensa alemã estava, em articulação com a União Europeia, a organizar-se de modo a que, se não queremos uma sociedade dizimada pela desinformação, pelas fake news, pelos populismos (que por lá são uma enorme preocupação), é preciso agir. E a ação passou por chamar “à pedra” as grandes plataformas, como a Google e as redes sociais, que andavam a pilhar o trabalho de quem escreve nos jornais. Havia forte mobilização e um debate acesso sobre o assunto.

Por cá, à devida escala, esse debate também foi feito.

Mas muito tardiamente. Eles estavam a tentar mudar mentalidades, enquanto aqui havia jornalistas que publicavam de manhã no papel ou no digital e à tarde já estavam a divulgar, à borla, o artigo no Facebook. Considero, em primeiro, uma deslealdade para com quem está a pagar; em segundo, é uma forma de alimentar quem não lhes dá nada, ou seja, as redes sociais que vendem publicidade com o trabalho dos outros. Adicionando isto a outros problemas, as pessoas desabituaram-se de comprar jornais, de pagar pela informação. E assim, não pode haver imprensa livre.

Tudo isso e muito mais está em Última Hora, uma peça com ambição, muitas didascálias, muitos pormenores e descrição de ambiente, algo até em contraciclo com o que se vai fazendo na dramaturgia contemporânea…

Quis que a peça tivesse “atos” com “c” [riso, aponta para uma cópia da prova da capa do livro onde se lê Última Hora – Peça em três actos]. Ainda pensei escrevê-la em cinco atos, à Shakespeare (desculpe, mas é uma referência), embora, infelizmente, não dominar a técnica porque é muito complicado perceber quando as coisas devem acontecer ou quando chega o tempo de mudar tudo. Portanto, fui pelos tradicionais três atos e, mesmo assim, é uma peça longa, mas moderna. E quis que estivesse lá tudo: a sala de redação, o bar onde vão os jornalistas, o passeio junto ao Tejo…

E que houvesse muitas personagens.

Sim. Uma redação é um organismo vivo, com muita gente. [pausa] Bem, agora nem tanto devido à pandemia (tem graça que o Miguel Guilherme, que faz o papel do diretor, esteve no Público para sentir o pulsar da redação e acabou por não ver o que realmente é aquele bulício).

Para além de atores consagrados, como o Miguel Guilherme, a Maria Rueff e os atores do Nacional, o elenco conta com muitos jovens. Está satisfeito?

Muito. São todos fabulosos. O Miguel e a Maria vão estrear-se, por fim, no palco da Sala Garrett. E há aqui algo muito curioso que é termos estagiários de teatro a fazer de estagiários de jornalistas. Interessante, num mundo em que as pessoas perderam a perspetiva de terem um emprego duradouro que permita pensar no futuro, numa família… O jornalismo, particularmente, perdeu isso, tal como, calculo, o teatro e tantas outras profissões. A peça é também sobre isso.

Para concluir, a dado momento, o diretor do jornal tem um desabafo, que cito: “eu meti-me nesta vida desgraçada, nesta fábrica de divórcios, nesta máquina de trinchar filhos às postas, neste hospital de malucos, neste alambique de bagaço, neste tanque de nicotina e alcatrão, neste camião cisterna de tinta tóxica em defesa de um bem maior: a Liberdade! E a Democracia!” Este ainda é o bem que o jornalismo defende?

Lá está. Os meus heróis na peça, com todos os seus defeitos, têm um fundo bom, embora muitas vezes estejam confrontados com a sobrevivência. É por acreditar que a liberdade e, já agora, o amor, são o principal, que a peça nunca poderá ser um réquiem ao jornalismo. Apesar desta fase híbrida em que vivemos, o jornalismo não pode acabar e encontrará um caminho. Como nos dizia o Vicente [Jorge Silva] e os seus discípulos quando entrei no Público: “você não está a escrever para o diretor ou para o chefe, está a escrever para o leitor”. Esse é o compromisso.