Clara Riso

A diretora da Casa Fernando Pessoa fala da reabertura

Clara Riso

Após uma intervenção profunda, a Casa Fernando Pessoa reabriu ao público com uma nova exposição, melhor acessibilidade e um auditório mais equipado. Clara Riso, atual directora do equipamento cultural, partilha as suas impressões sobre esta nova fase da casa do poeta dos heterónimos que se quer habitada por todos.

A Casa Fernando Pessoa reabriu com uma nova exposição? O que mudou?

Estas obras de remodelação da Casa Fernando Pessoa transformaram significativamente os espaços. Eles são agora mais acessíveis, ganhámos em área e todo o edifício foi renovado em matéria de equipamentos tornando-se mais sustentável. Temos agora três pisos inteiramente dedicados à exposição que é um percurso pela obra e biografia de Pessoa. Escolhemos os três temas que nos pareceram mais interessantes: um núcleo dedicado aos heterónimos, outro à sua biblioteca particular e o terceiro à biografia, na relação com o facto de Fernando Pessoa ter vivido ali, no primeiro andar direito daquele edifício, durante 15 anos. Para além da exposição, a biblioteca que é um também um espaço central na actividade da casa, dedicada a Pessoa e à poesia mundial, foi renovada e o auditório mudou de lugar, está agora no rés-do-chão que o torna mais acessível.

De quem é a autoria do projecto museológico?

A partir de uma proposta de Paulo Pires do Vale, o Ateliê de Design GBNP avançou com o projecto que depois veio a ser detalhado e desenvolvido por dois designers com quem trabalhamos, Nuno Quá e Cláudio Silva. O projecto de arquitetura é de José Adrião Arquitectos.

Um dos objectivos foi o de colocar as peças da coleção a falar mais directamente com os visitantes. De que forma?

De várias formas. Passa pela construção do mobiliário ter sido pensada desse modo desde o início. Os próprios suportes estimulam a interacção do público. Por exemplo: em vez de termos uma vitrina uniforme, temos uma com realces, temos surpresas, móveis com gavetas, objectos escondidos. Tudo isso fomenta uma outra dinâmica por parte dos visitantes. A parte física do projecto teve em mente a ideia de como é que os visitantes podiam relacionar-se com a exposição de forma mais activa e participativa. Por isso há poemas para ouvir e segredos de gavetas e prateleiras para descobrir. Todos os textos e legendas foram também escritos desse ponto de vista, de como seria possível contar melhor esta história. Depois existem espaços que são mais de brincadeira, como uma curiosa sala de espelhos para todos nós  vermos a nossa identidade refractada.

Quais os objectos da coleção que despertam mais interesse nos visitantes?

A colecção mais valiosa da casa é a biblioteca de Fernando Pessoa e agora vamos poder ver na sua quase totalidade os livros que a integravam. Com os devidos cuidados de conservação e preservação podemos correr as lombadas desses livros e ver que Pessoa leu autores e temas muitíssimo variados. É interessante compreender como esse lado de leitor veio a transparecer na escrita. Os livros chamam a atenção dos visitantes sobretudo porque a maior parte deles está muito anotada. Depois há outros objectos, mais relacionados com a biografia do Pessoa, que geralmente interessam muito os visitantes como o bilhete de identidade, os óculos, a máquina de escrever. O mobiliário original que faz parte da nossa colecção também é muito profícuo a produzir histórias. Temos a cómoda alta que é referida na carta a Adolfo Casais Monteiro de janeiro de 1935, sobre a génese dos heterónimos. E temos a estante directamente relacionada com os livros que lá estiveram um dia.

Que livros lia o poeta?

Grande parte da biblioteca é em língua inglesa: Milton, Shakespeare, Whitman, Poe. Muitos desses livros em inglês vêm do tempo da sua vida na África do Sul. Pessoa passou a juventude em Durban e foi lá que fez a escola e começou a construir a sua biblioteca. Encontramos também livros com dedicatórias de amigos escritores. Temos o Princípio de Mário de Sá-Carneiro com uma dedicatória muito afectuosa que é uma peça muito importante da biblioteca. É interessante observar que Pessoa tinha livros de todas as classes do saber. Não só de literatura, mas de ciência, de matemática, de ciências ocultas, de engenharia. Possuía um grande leque de áreas de interesse.

Referiu que Fernando Pessoa era um leitor que sublinhava e anotava os livros nas margens das páginas. De que forma é que esses testemunhos ajudam a conhecê-lo melhor?

As notas que deixou à margem, chamadas marginália, sublinhados, os comentários mais ou menos longos, inclusivamente um poema que foi encontrado na contracapa de um livro, em 2010, na altura da digitalização da biblioteca, são muitas vezes pensamentos que surgem em reação aos textos. São gestos, inscrições pessoais que mais tarde alguém pode encontrar ao ler ou folhear esse livro. Ali encontramos reflexões sobre a leitura, mas também impressões que essa leitura causa. Além disso, como já referi, existem mesmo trechos de criação literária do próprio Pessoa anotados em livros, porque do ponto de vista pragmático estava mais à mão ou porque o próprio livro levou à escrita desse texto.

Esta casa foi habitada por Pessoa durante os últimos 15 anos de vida. De que elementos dispomos para conhecer o seu quotidiano nesta casa e neste bairro?

O que fizemos neste exposição de longa duração foi tentar reconstituir o apartamento em que Pessoa viveu, parte desse tempo com a família, de acordo com testemunhos que recolhemos e de plantas do edifício. Juntando esses elementos conseguimos desenhar a organização do espaço naquele apartamento: os vários quartos, a sala, etc. Depois usámos o espaço para contar uma história separando várias fases da sua vida. Da infância temos alguns objectos que pertenceram aos seus pais; depois contamos um pouca da história em Durban, a relação com a escola, os meios-irmãos, as longas viagens entre os dois continentes; a seguir a sua vinda para Lisboa, os seus companheiros, a relação com Ofélia Queiróz, o circuito literário e a tipografia que criou. Por fim, ali no bairro temos algumas histórias para contar sobre as lojas da Rua Coelho da Rocha, nomeadamente a barbearia do senhor Manassés, e também um vídeo em que a sobrinha Manuela Nogueira (que, tal como o irmão, nasceu naquela casa) conta as memoria dos 10 anos em que conviveu com o tio nesse apartamento.

Quando é que Fernando Pessoa veio viver para Campo de Ourique?

Quando o padrasto de pessoa morreu na África do Sul, a mãe, agora viúva, quis voltar para Lisboa. Pessoa pretendia um apartamento maior onde coubessem a mãe e os três meios-irmãos, dois rapazes e uma rapariga. Os rapazes ficaram pouco tempo em Lisboa e foram para Inglaterra onde fizeram as suas vidas. A meia-irmã veio a casar e é a mãe dos sobrinhos que já referi.

Em linhas gerais, quais vão ser as traves mestras da programação?

Pensámos em dedicar o mês de setembro às visitas ao novo espaço, à exposição, à biblioteca. Procuramos para já evitar a programação presencial, tendo em conta o período que ainda atravessamos. Mas o propósito desta renovação continua a ser trabalhar sobre Pessoa, o seu legado, contar as suas histórias, estimular o gosto pela leitura dos seus textos, compreender a amplidão e complexidade dos seu universo e, paralelamente, continuar a trabalhar como casa da literatura, nomeadamente com a poesia contemporânea, e passar a palavra sobre a força que os efeitos da literatura podem ter.

Campo de Ourique é um bairro muito particular em Lisboa. O escritor Mário de Carvalho chamou-lhe “a cidade independente de Campo de Ourique”. Porém, atualmente, não há um cinema, um teatro, um museu. Ao longo dos anos, a Casa Fernando Pessoa tem sabido cumprir a sua função de pólo cultural do bairro?

É um espaço importante no bairro em conjunto com outros. Temos um trabalho bastante próximo com a junta de freguesia de Campo de Ourique. A biblioteca do antigo Cinema Europa é muito frequentada e dinâmica em termos culturais. A Casa Fernando Pessoa também o é, e esperamos que com esta requalificação do espaço os vizinhos nos queiram conhecer ainda melhor. Estas obras tiveram um apoio significativo do Turismo de Lisboa, através da Linha de Turismo Acessível, e isso é relevante porque o projecto tem na base a atenção ás acessibilidades e a abertura de portas a todos os que nos queiram visitar.

Fernando Pessoa é o poeta ideal para o presente período de pandemia e distanciamento social? Alguém que criou um mundo interior povoado por personagens que, afinal de contas, são ele próprio.

É certo que a literatura, como outras formas de cultura, estão a ser muito importantes nestes momentos em que passamos mais tempo em casa, afastados do convívio social direto O que Pessoa deixou escrito é de tão diferentes naturezas que muito facilmente vai ao encontro dos interesse de distintos leitores, seja pela irreverência, pela complexidade em termos de busca da identidade, pelo jogos de contradições, pelos textos do Livro do Desassossego que são de deambulação e devaneio. Uma série de campos que podem preencher as nossas tardes e noites mais recolhidos em casa na leitura.