entrevista
Mayra Andrade
“A minha música é um reflexo de como vivo e de como vejo o ‘outro’”
A 12 de setembro, Mayra Andrade regressa finalmente ao Coliseu dos Recreios com o seu Manga, depois de ter visto o concerto de abril cancelado por força da Covid’19. O espetáculo pretende celebrar os 20 anos de atividade musical da cantora e faz uma viagem pelos seus sucessos mais antigos, agora com novas roupagens.
Nasceste em Cuba, viveste em Cabo Verde, Angola, Senegal, Alemanha, França… O que é casa para ti?
Casa é Cabo Verde. Lisboa é, sem dúvida, uma fantástica segunda casa.
Todos estes sítios onde viveste refletem-se no teu adn artístico?
As viagens acabaram por moldar totalmente a minha forma de estar no mundo e de ver a vida. A minha música é um reflexo de como vivo e de como vejo o ‘outro’. Nunca me interessou fazer a análise ao ponto de saber que influências vêm de onde, acho isso completamente desinteressante. O que é importante é perceber de que forma a vida nos torna mais ou menos abertos à absorção de outras coisas, e de que forma é que o nosso metabolismo artístico depois traduz isso.
Ao contrário da maior parte das pessoas, falas muito na necessidade de ter uma rotina…
Dou importância à rotina porque não a tenho. Comecei a fazer concertos há 20 anos. Fiz cinco anos de concertos antes de gravar o primeiro disco. A rotina é algo que nunca fez parte da minha vida, independentemente da música. Com seis anos saí de Cabo Verde e fui viver para o Senegal dois anos. Depois fui para Angola, voltei um ano para Cabo Verde, vivi três anos na Alemanha, voltei para Cabo Verde quatro anos, e depois fixei-me em Paris, onde estive 14 anos. Só com o Manga fiz, desde outubro de 2018, mais de 150 concertos. Rotina é tudo o que não tenho.
Custava-te, enquanto criança, estar sempre a mudar de sítio, de escola?
Sim, mas frequentei escolas onde havia muitos filhos de diplomatas, portanto eu sabia que não era a única pessoa no mundo a passar por isso. Como criança, vive-se uma separação cada vez que se muda de país, isto foi antes da era da internet… Há muitas pessoas que nunca mais vi… Tinha uma morada postal que, passado pouco tempo já não era a mesma e acabava por perder o contacto. Perdia-se ali uma ligação, mas arranjei forma de guardar em mim essas memórias e o que de bom encontrei em cada lugar.
Entre Lovely Difficult (2013) e Manga (2019) passaram 6 anos. Esse afastamento dos discos foi propositado?
Na verdade estive com o Lovely Difficult na estrada até 2015. No final desse ano mudei-me para Portugal, tirei um ano para mim, até final de 2016. Depois estive dois anos a trabalhar no Manga. Na realidade só tirei um ano para mim, de resto estive sempre na estrada ou a compor.
Em 2016, lançaste Reserva para Dois com Branko [Buraka Som Sistema]. O que achaste do convite?
Aceitei essa colaboração porque percebi que o Branko fazia algo muito diferente do que eu faço. No início, tinha mais tendência a colaborar com pessoas do meu universo musical. Com o passar do tempo, cresceu em mim uma espécie de inquietação artística que faz com que procure ou me deixe levar por convites de pessoas que fazem coisas que eu não saberia fazer. Gosto do desafio de sair da minha zona de conforto e ver o que nasce daí.
Esse projeto influenciou, de alguma forma, a sonoridade de Manga?
Quando combinamos vir a Lisboa trabalhar a música, ele teve a brilhante ideia de desafiar o Kalaf. Eu e o Kalaf escrevemos a letra a quatro mãos, o Branko fez o beat e eu criei a melodia em cima do beat. Foi assim que a música se fez, em dois dias. A sonoridade do Reserva para Dois não é propriamente a do Manga… Dentro da música eletrónica são famílias muito diferentes, mas semeou em mim a vontade de fazer algo mais atual. Não só o Reserva para Dois, mas também o Nha Baby, que fiz com o Nelson Freitas. Estas duas colaborações abriram uma porta e surgiram num momento em que não estava a lançar coisas minhas. Acabei por conquistar um público mais jovem, e quando o Manga saiu, parecia que já ninguém estava muito surpreendido.
Manga é uma mistura de afrobeat, música urbana e ritmos tradicionais cabo-verdianos, cantado em português e crioulo. Com tantas sonoridades é difícil manter o foco?
O que acho difícil é criar um som que seja coerente. Esse foi sempre o meu maior medo, fazer um patchwork mal feito. É por isso que demoro o tempo que demoro a fazer os discos. Criar uma alquimia entre ingredientes que nunca se encontraram é um processo demorado. Foi um caminho longuíssimo, em que tive de encontrar as pessoas certas. Isso levou quase um ano, em que experimentei coisas com pessoas diferentes.
O disco conta com colaborações de artistas como Luísa Sobral, Sara Tavares ou Cachupa Psicadélica. Como surgiram estas parcerias?
Já conheço a Sara há muitos anos, a Luísa Sobral e o Lula (Cachupa Psicadélica) conheci aqui. A cena musical de Lisboa acabou por influenciar muito também, correspondeu ao momento da minha mudança para cá. É uma cidade que acabou por me dar uma energia muito dinâmica, com todo este sol e esta forma de viver. Há cinco anos fiz uma viagem ao Gana e vim de lá com uma semente em mim que, juntamente com este ambiente de Lisboa, acabou por ajudar a trilhar os caminhos para o Manga. Fiquei feliz por trazer estes compositores para o meu universo, que me ajudaram a ter um disco que acabou por ser o retrato da minha Lisboa.
É uma cidade inspiradora?
Para o que eu faço, a Lisboa de hoje é inspiradora. Não sei como teria sido se me tivesse mudado para cá há dez anos. É importante que estes créditos de Lisboa sejam associados à cena musical atual, que é corajosa, que se reinventa… Lisboa tem um património histórico, mas o que a torna tão atraente são as pessoas e a sua multiculturalidade.
Porquê este título, Manga?
Porque é uma fruta que tem as cores do disco, que emana uma energia solar, tropical, quente… É uma fruta que vai amadurecendo, tal como este é um disco de maturidade, de uma certa emancipação de uma tradição à qual eu já prestei as minhas homenagens nos discos anteriores. Corresponde a este momento da minha vida, com trinta e poucos anos, idade em que a mulher se assume mais inteiramente. Este fruto é uma metáfora para a feminilidade.
Dia 12 de setembro atuas no Coliseu. O que vai apresentar?
O concerto é a continuação da tournée Manga com algumas alterações. Vamos rever alguns arranjos e introduzir alguns momentos diferentes. O conceito da tournée já evoluiu imenso, há novos elementos na banda, houve trocas de músicos, acho que já nem canto as músicas da mesma forma… O Coliseu é importante porque o público português é importante para mim. É expressivo, carinhoso, acompanha-me desde antes de eu gravar discos. É uma forma de retribuir esse carinho e marcar estes 20 anos.