A arte da emoção pura

Centenário de Alicia Alonso

A arte da emoção pura

Um crítico escreveu, depois de ver dançar Alicia Alonso: “O mundo deteve-se, e voltou a nascer, melhorado!” No centenário do nascimento da grande bailarina, um álbum fotográfico, editado pelo Centro Português de Serigrafia, celebra a sua gloriosa contribuição para a história da dança no século XX. Foi a primeira e única latinoamericana a ter o título simbólico de prima ballerina assoluta, concedido apenas aos bailarinos de excepção.

“Os mais cruéis labirintos retrocedem diante do seu passo de dança” Desta forma, o poeta José Lezama Lima prestou tributo à arte incomparável de Alicia Alonso (1920-2019), uma das maiores bailarias do século XX, considerada “a primeira na via láctea das grandes Giselle”. Dotada de um domínio técnico preciso e virtuoso, de uma profunda musicalidade, de uma linha de dança puríssima e perfeita, aliava uma qualidade de movimentos grácil e fluída a uma singular intensidade emocional.

“Se algum dia, Alicia Alonso se decidisse a mostrar a história dos seus gestos, dos seus movimentos, que deliciosa novela proustiana teríamos”, escreveu Lezama Lima.

O seu estilo era elegíaco, frágil e etéreo. Parecia, literalmente, flutuar no palco, levando um crítico norte-americano a escrever, em 1967, após assistir a uma representação de Giselle: “sempre que o seu partenaire levantava Alicia Alonso, provocava uma sensação única: que não a elevava, mas que a agarrava para a impedir de voar”.

Se hoje, a figura da Alicia Alonso nos surge como lendária e quase sobrenatural, um ser de uma outra era, a verdade é que a grande bailarina sempre causou essa impressão. Já em 1943, no início da sua carreira, um crítico nova-iorquino afirmava: “Alonso pertence a esse período longínquo quando uma bailarina dançava em pontas para demonstrar ao público que não era uma simples mortal, que era um ser superior, cujo único contacto com o nosso mundo pecador é o espaço reduzido em que pisa o solo”.

Alicia foi a intérprete suprema das grandes obras do repertório clássico e romântico, porém admitiu que Giselle era uma obra muito especial na sua carreira, declarando: “Entre todas as obras do ballet tradicional, Giselle é a mais completa dramaticamente e oferece à bailarina amplas possibilidades para elaborar uma personagem. O contraste entre o primeiro ato – uma ingénua camponesa apaixonada – e o segundo – um ser imaterial, espectral que, não obstante, ama para além da sua própria natureza – constitui um verdadeiro repto interpretativo para uma bailarina.”

O poder de transcender o gesto

Alicia Alonso criou a sua própria versão coreográfica de Giselle, interpretada pelo Ballet Nacional de Cuba, e que montou para a Ópera de Paris, a Ópera de Viena, o Teatro Colón de Buenos Aires, a Companhia Nacional de Dança do México e o Teatro San Carlo de Nápoles.

Alicia dançou no Ballet Theatre de Nova Iorque, nos Ballet Russes de Monte Carlo, nos teatros  Bolshoi e Kirov. Após a revolução cubana de 1959, regressou a casa e formou o Ballet Nacional de Cuba, colocando o seu país no altar da melhor da dança mundial e formando várias gerações de bailarinos. A formação da escola do Ballet Nacional de Cuba mereceu o seguinte comentário de José Lezama Lima: “Alicia Alonso já ensinava, dançando”.

A artista exerceu igualmente um relevante papel de activismo cívico em Cuba. O famoso corégrafo Maurice Béjart exalta este aspecto da sua personalidade: “A bailarina é extraordinária, o personagem não o é menos. Esta noite Giselle, amanhã Carmen, depois de amanhã com botas e uniforme de combate bailando a Revolução Cubana, nas cidades de Oriente ou nas praças de Havana.”

A bailarina ficou quase cega aos 20 anos de idade, depois de sofrer um duplo descolamento de retina. Com uma coragem e tenacidade excepcionais, compensava a falta de visão periférica treinando os seus parceiros para se colocarem sempre no lugar exacto que ela fixava e usando luzes de diferentes cores no palco como guias de orientação. “Quase cega, mas clarividente”, escreveu Maurice Béjart.

Alicia Alonso dançou ininterruptamente até aos anos 80, sem qualquer vestígio de diminuição de faculdades técnicas ou artísticas. Em 1981, o crítico do Ballet News, comentava a sua apresentação aos 61 anos de idade: “Alonso no apogeu da sua forma, deslizou, incrível e facilmente através das exigências técnicas de Giselle.”

Citamos, uma vez mais, José Lezama Lima que, evocando o encontro da arte de Alonso com a sua poesia, escreveu: “ Uma bailarina como Alicia Alonso comprova que existem entre nós miríades de iridescências, de metáforas, de reflexos, de ideias, de nascimentos e presságios que podem ter momentaneamente uma evidência, alcançando forma e esplendor ao serem dançados.”

Homenageando os 100 anos do nascimento da grande bailarina cubana, o Centro Português de Serigrafia edita Alicia Alonso – Prima Ballerina Assoluta, um álbum de Paco Bou que exerceu, durante mais de 30 anos, a função de fotógrafo pessoal de Alica Alonso. Publicação que inclui dois poemas com o título Dança, o primeiro, de Pablo Neruda, o segundo dedicado a Alicia Alonso, da autoria da poetisa portuguesa Joana Lapa.

Uma belíssima edição que celebra o talento da bailarina que, segundo o romancista e musicólogo Alejo Carpentier, tinha “o poder de transcender o gesto, elevando-o ao plano da emoção pura.”