Natália Correia e a Rua do Quebra-Potes

Um passeio com "Aconteceu no Bairro"

Natália Correia e a Rua do Quebra-Potes

Natália Correia marcou o século XX português pela sua personalidade desassombrada e pela extraordinária qualidade da sua obra que tocou todos os géneros literários: do barroco fulgurante do seu teatro, revisitação dos principais mitos da cultura portuguesa (O Encoberto, Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente, A Pécora), ao lirismo místico da sua poesia, da adaptação dos mitos clássicos gregos ao Portugal contemporâneo patente nos seus dois principais romances (A Madona e A ilha de Circe), à profundidade dos seus ensaios sobre a questão da Identidade (Somos Todos Hispanos). Aconteceu no Bairro, o seu primeiro romance, publicado aos 23 anos, narra as vivências dos moradores de uma rua imaginária de um bairro popular de Lisboa, ao longo de um dia de inverno, do amanhecer ao anoitecer, criando uma impressiva galeria de figuras do quotidiano da capital de finais dos anos 40. Natália nunca amou tanto as suas personagens. Elas retribuem-lhe, assumindo uma pungente humanidade.

É na rua imaginária do Quebra-Potes, “uma das artérias mais antigas de Lisboa de outros tempos”, que se desenrola a acção principal de Aconteceu No Bairro.

A Rua do Quebra-Potes é uma rua irregular e longa, muito longa! Parece traçar um diâmetro na Eternidade…

A qualquer hora do dia, tem uma cor de algodão sujo, que lhe dá o aspecto de menina órfã, trajando de preto.

A massa simétrica dos prédios, face a face nos dois lados da rua, acentua ainda mais essa imprecisa nota de tristeza, que parece pingar das telhas encarrapitadas no alto do casario.

É cortada por inúmeras travessas. E, assim, a Rua do Quebra-Potes tem esta pecaminosa desvantagem para os seus moradores: é uma rua de esquinas…

Eusébio Fonseca, merceeiro; Quim Fuligem, seu marçano; Luísa, amante de Chico das Luvas membro de uma quadrilha de assaltantes; D. Lili, dona da pensão local; Álvaro e Joana Graça, casal da pequena burguesia; Cacilda, prostituta e seu irmão Jeremias; Simões, taberneiro e tio Aleixo, vendedor de castanhas, são as personagens que povoam o romance. São todos moradores desta rua, cujas vivências se estendem a outros locais da cidade.

Talvez na alma daquela rua melancólica vibrassem as tristezas, as dores, as misérias e os dramas dos seus moradores…

Ou seria que as pessoas gozavam também daquela faculdade comum ao camaleão – tomar a cor do lugar onde pousava?

Avenidas Novas

Eusébio Fonseca dono da mercearia Estrela do Bairro, era “baixo e gordo, de uma gordura mole, espapaçada. (…) Mas aquela obesidade, amplamente espalhada pelo corpo todo com certa harmonia – diga-se de passagem – não o impedia de mover-se, saltitante, como um passarinho insatisfeito. Quim Fuligem o marçano, ao vê-lo naquele irrepousante saracotear, tinha a impressão de que um paio voara do armazém e dava voltas sobre si mesmo, suspenso sobre um fio invisível, no ar.

Eusébio estabelecera-se recentemente no bairro. Viera das Avenidas Novas onde tinha “uma charcuterie das boas, coisa fina, sim senhores! Freguesia da melhor: todos muito amáveis, gente rica, doutores…

Ele justificava-se dizendo que a roda da fortuna desandara e tivera que fechar as portas. Com o dinheiro de trespasse, estabelecera-se “naquela rua modesta, onde ninguém comprava ao mês e se pagava a prestações.

Na realidade, a sua mulher, “alta, morenaça, dando nas vistas”, agarrara-se ao “primeiro, o que estava mais à mão – o caixeiro do Sr. Fonseca.

“E isto explicava a tal história da charcuterie que ele habilmente deturpava por honra da firma.

Baixa Pombalina

Álvaro e Joana Graça são um casal da pequena burguesia (os únicos que têm criada) com pretensões acima do seu estatuto social. Ele, profundamente conservador, ela, em contraste com “a sua vida prosaica isenta de vibrações fortes”, dedicada à leitura consecutiva de romances de amor.

Joana, numa ida à baixa entra no Salão de Chá Imperial. “Mulheres saíam e entravam por uma porta envidraçada, que deixava escapar, ao abrir-se, um cheiro anestésico de perfumes e cigarros. De mistura exalava-se uma baforada agradável de bolos e pastéis.

Sentia-se bem alí, num ambiente chique. “Era (…) de bom tom, frequentar aqueles sítios…Uma pessoa não havia de viver como os brutos – porque a vida era isto, afinal: uma mesa de chá ao lado de outra mesa de chá…

Hotel Ritz

Cacilda é a figura trágica do romance, prostituta (a sua vida era “um negócio de comissões nos prazeres dos outros”) que sustenta um pai alcoólico. Jeremias, o irmão, é groom no Hotel Ritz, desde os 11 anos: “No principio tudo fora deslumbramento, emoção, êxtase. Ia às escondidas do pessoal rebolar-se nas camas fofas de lã, repoltreava-se nos maples e sempre que passava pela cozinha, tinha a pouca escrupulosa habilidade de surripiar dos grandes tabuleiros as iguarias que mais feriam a sua sensibilidade visual.

Uma embaixada de jornalistas americanos (“Manejavam o dólar como os latinos a palavra”) hospedara-se no Hotel Ritz (o atual Hotel Ritz só foi inaugurado em 1959, no romance surge como símbolo de hotel de luxo). Guilherme de Azevedo, membro oficial da comissão que os fora buscar ao aeroporto enamorou-se de uma jornalista alta e sardenta, “rebuscou no ficheiro da memória o cacifo onde armazenara provisões de inglês e emitiu na sua voz sibilante:

– How do you find Portugal?

Ela arreganhou os lábios grossos, mal carminados, deixando ver a dentadura sólida e reluzente:

– Lovely…quite lovely…

E enquanto Azevedo ia mentalmente comparando os dentes da sua interlocutora aos que nos magazines reclamavam os dentífricos Kolinos e Colgates, ela comunicava ao seu colega James, num inglês enxertado de slang, a sua bem pouco lisonjeira opinião sobre aquele doutorzinho português que lhe pedia as suas impressões acerca de um país de que ela apenas conhecia um aeroporto e um hotel.  

Pasteis de Belém

D. Lili, atriz reformada e dona da pensão, tinha a “pele de uma alvura de leite, conservava-se lisa de uma lisura falsa de massa estendia. Exagerava a pintura dos lábios e dos olhos. A opulência dos seios parecia querer romper a seda gasta do vestido, muito cingido ao corpo. Era gorda, segundo o figurino actual e o figurino de todos os tempos. Apenas os tornozelos excessivamente magros, eram frágeis como os de um cabrito maltês.

Todas as terças e sextas-feiras recebe a visita de António, na intimidade o seu Tonecas. Ele aparece “religiosamente com o seu ventre e o seu pacote de pastéis de Belém.

Era uma ligação antiga, reformada. Resistira aos últimos rebates do sexo e ficara como umas ruínas veneráveis a que a tradição se habitua”. Nesse fim de tarde, frente a António surge a “Lili de há dez anos” que, com sucesso, o seduz. “Dentro dela há uma virgem que cora, uma atriz que representa e uma velha depravada que imagina, que deseja…

Rua Rodrigo da Fonseca

Luísa está sozinha. O seu amante Chico das Luvas, membro de uma quadrilha de assaltantes, foi preso. Luísa “dava a vaga impressão de um lírio emurchecido, que por um milagre conservasse o viço e a cor. Não tinha o ar de uma mulher cansada, batida pelas intempéries de uma vida desregrada e hostil. Era antes uma criança triste, perdida num enorme jardim, sem ama nem brinquedos.

Resistindo a uma tentativa de violação por Zé das Fitas, cúmplice do seu amante, Luísa resolve mudar de vida e afastar-se definitivamente do meio. Um anúncio no jornal desperta-lhe atenção:

Demoiselle precisa-se, com apresentação, para tomar conta de uma criança de seis anos. Rua Rodrigo da Fonseca 159-2º.”

 Dirige-se à morada do anúncio: “Nunca entrara numa casa assim e, no entanto, sentia ser aquele o seu meio.

 O Dr. Eduardo, dono da casa, divorciado, pasmado “ante o poder estranho que se desprendia daquela rapariga”, pediu-lhe a sua direcção. Luísa mentiu:

“ – A minha direcção…é na rua da palma 160-1.º…

Sentia-se amarfanhada. (…) O passado marcava-a com o estilete de ignomínia.

Rua Garrett

Eduardo apercebe-se do desconforto de Luísa e sente que ela tem algo a esconder. Segue-a de táxi até à Rua do Quebra-Potes. Aí pede informações ao Tio Aleixo que vende castanhas frente à taberna do Simões:

Sempre lhe digo (..) que aquilo que ali está (…) é louça fina, da mais rara… Não se fabrica! Veio cá parar por engano.

Eduardo tirou da carteira uma nota que estendeu ao velho.

Guarde o seu dinheiro freguês. Não queira pagar a verdade com o que tem comprado tanta mentira.

À noite, descendo a Rua Garrett, à saída de um bar, Eduardo toma consciência que Luísa “escancarara a porta da sua vida sem lhe pedir licença e se instalara lá dentro sem pedir licença com uma estabilidade assustadora.” Escreve-lhe expressando os seus sentimentos e pedindo-lhe que se encarregue da educação do filho.

Luísa recebe a carta e resolve, numa atitude que espelha a audácia e inconformismo da autora, “desafiar a vida e as conveniências”, fugindo ao seu destino. Abandona a Rua do Quebra-Potes “aquela faixa cinzenta, irregular e comprida” que “tinha uma tristeza humana, como se as pedras chorassem dores antigas e futuras”, quebrando o “horrível fatalismo da raça.

É preciso dar qualquer coisa à vida e não apenas receber o que ela nos atira, quase sempre ao acaso…