Francisco Frazão

O "novo" Teatro do Bairro Alto

Francisco Frazão

Situada a dois passos do Largo do Rato, a sala da Rua Tenente Raúl Cascais, que durante 40 anos foi a casa da Cornucópia, reabre ao público a 11 de outubro. À frente do novo teatro municipal dedicado a projetos artísticos experimentais, nacionais e internacionais, está Francisco Frazão, o programador que durante mais de uma década foi responsável pelas artes performativas na Culturgest durante a administração de Miguel Lobo Antunes. Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Frazão distinguiu-se ainda muito jovem como tradutor de Beckett, Pinter, Jon Fosse ou Stephen Greenhorne, e pela sua colaboração com a Comissão de Leitura dos Artistas Unidos. Fez crítica, foi docente e é, depois de um concurso público promovido pelo Município de Lisboa, o diretor artístico do Teatro do Bairro Alto (TBA).

Depois do fim da Cornucópia e da decisão tomada pela Câmara de Lisboa de interromper o projeto artístico prosseguido pelo Teatro Municipal Maria Matos após a saída de Mark Deputter, este novo TBA pretende ser uma conciliação dos dois legados?

O projeto do TBA é novo, com um foco específico na experimentação e no emergente, mas não quer dissociar-se desse lastro, seja pela relação com o espaço em que a Cornucópia trabalhou durante décadas, seja porque cerca de metade da equipa é proveniente do Maria Matos. Ou seja, as paredes são aquelas e as pessoas são estas. A maneira como a Cornucópia usou o Teatro é inspiradora, sobretudo pela versatilidade e flexibilidade do espaço, características benéficas para a experimentação. Quanto ao que herdámos do Maria Matos foi um grupo de pessoas que trazem o saber e a experiência para dentro de uma equipa nova. Mas, apesar de tudo isto, não somos, de todo, nem herdeiros nem continuadores desses dois projetos.

Como é que o TBA se vai tornar um espaço de diferenciação no panorama cultural da cidade, tendo em conta que há vários projetos de experimentação artística muito ativos, como a Rua das Gaivotas, o Ibérico ou até mesmo o TNDM II, o São Luiz e, claro, a Culturgest?

Reconheço que possam existir interseções, aproximações, sobreposições ou até colaborações com outros teatros. O que me parece ser distintivo neste projeto é o foco. Ao contrário daqueles que também programam “experimental”, o foco do TBA é, exclusivamente, esse. Depois, existe um espaço diferenciador à partida. Dos institucionais este é o único que não é um teatro à italiana, portanto, o que aqui temos é um grande hangar que pode ser usado de múltiplas maneiras: ser compartimentado e reduzido até uma escala muito intima; ou ser utilizado em toda a sua extensão, que ronda os 30 metros. Podemos ser uma black box para 50 espectadores ou para 170, o que significa podermos oferecer aos artistas a possibilidade de testar ideias no espaço. Outra característica distintiva é a regularidade da programação internacional.

Podes ser mais concreto?

Acho que, com o encerramento do Maria Matos e a saída da equipa do Miguel Lobo Antunes da Culturgest, houve aqui mais ou menos um ano em que projetos internacionais de pequena escala deixaram de ser vistos em Lisboa com tanta frequência. Os nossos primeiros meses de programação têm precisamente a ver com isso, num esforço para recuperar aquilo que possa ter sido um tempo perdido.

Não temes que esse hiato, e até pela atomização dos públicos tão característica dos nossos tempos, tenha provocado um efeito de desmobilização?

É possível. Nós não damos nenhum público como adquirido. Um dos objetivos nestes dois primeiros anos é o de criar um público habitual, e não é só aquele que ia ao Maria Matos ou à Culturgest. Temos que chegar a um público novo, desafiado por coisas que não conhece ou conhece mal. Sobretudo, queremos ter um público aventuroso que venha e queira voltar.

E haverá várias formas de chegar ao público para além das artes performativas, com as conversas, os debates, o pensamento…

Sim, há toda uma programação a que chamamos “de discurso” e, também, formas de chegar às pessoas que não passam necessariamente por tê-las no Teatro. Temos uma programação on line com podcasts de autor, faremos transmissões em streaming e programámos vários eventos fora do TBA, como aliás já fizemos no Quase, o programa que serviu de cartão de visita ao nosso projeto. Aliás, vamos ter, a 19 de outubro, um percurso performativo da Joana Braga em Marvila, na antiga Zona J.

Quanto ao edifício, houve alguma alteração substancial?

O processo de reabilitação do espaço começou antes da minha nomeação. Foi um processo longo que contou com a ajuda de pessoas, que não do ponto de vista do espectador, conheciam bem o Teatro. Diria que, apesar de não terem sido feitas obras profundas, as intervenções são complicadas, sobretudo devido à dimensão do edifício. Depois há os vetores da acessibilidade, da segurança e da renovação técnica que eram essenciais. Na questão da acessibilidade, por exemplo, iremos abrir ainda sem tudo concluído, nomeadamente o elevador. Quanto ao espaço, o bar ainda não vai estar em funcionamento no dia 11, mas espero que o foyer tenha já pronta uma cenografia surpresa.

Concordas com a ideia de que uma sala como a do Maria Matos era sobredimensionada para as propostas que apresentava?

Nunca a consideraria sobredimensionada. Não tenho nenhum problema em programar contra o espaço, até porque acredito que não devemos ser escravos da arquitetura. Porém, acredito que há determinadas propostas que podemos trazer aqui que, eventualmente, não seriam muito viáveis no Maria Matos; e vice-versa. Sublinho mesmo que, para a experimentação, este é o espaço mais interessante em Lisboa devido às características de que falámos.

Está pensado ser estabelecido um diálogo programático com os outros teatros municipais, o São Luiz e o Lu.Ca, e com outras instituições?

Estamos em contacto. Sobretudo com o São Luiz, uma vez que há artistas que nos interessam. Com o Lu.Ca, há a ideia de encontrarmos colaborações específicas, com criadores que também têm propostas para públicos mais jovens. Onde penso que esse diálogo mais se notará é com os festivais da cidade: o Alkantara, o Temps d’Images ou o Cumplicidades. Aquilo que pretendemos é estabelecer um diálogo aberto com todas as programações. No entanto, e no imediato, as colaborações bilaterais não nos parecem muito produtivas, sobretudo porque precisamos de encontrar o nosso lugar.

“Para a experimentação em artes performativas, este é o espaço mais interessante em Lisboa devido às características da sala”

 

Falando à margem do programador… Continuas a traduzir? Sentes saudades de escrever crítica?

Sim, continuo a traduzir apesar de agora ter muito menos tempo. Crítica, fiz pouca. É interessante como essas atividades, e também a de programador, têm relação entre elas: a programação, a tradução e o escrever sobre objetos artísticos. São todas elas atividades de mediação e é nelas que me tenho encontrado ao longo do tempo. Acredito que fazer crítica é uma maneira de traduzir; e programar é também uma maneira de fazer crítica.

Agora, vais dirigir um Teatro de que foste espectador. Guardas alguma memória especial do “velho” Teatro do Bairro Alto?

Tirando os espaços onde trabalhei, este Teatro foi, provavelmente, o que mais frequentei. Era um espectador da Cornucópia e lembro-me perfeitamente das primeiras vezes que cá vim. Devo aqui ter visto algumas dezenas de espetáculos e recordo muitos deles. Aliás, o título que dei ao meu projeto de candidatura à direção artística do TBA vem do nome de um espetáculo da Cornucópia: Sete Portas, de Botho Strauss [estreado em 1993, com encenação de Luís Miguel Cintra]. Mas há muitos que poderia referir, como Afabulação de Pasolini [1999] ou O Barba Azul de Jean-Claude Biete [1996].

Haverá algum dos textos que a Cornucópia trabalhou que gostarias de programar aqui?

Eventualmente. Há um texto que penso poder caber na programação deste nosso projeto e, por sinal, é o único que a Cornucópia encenou duas vezes…

E qual é?

Isso agora… [risos]. Mas é fácil descobrires! [Francisco Frazão não o disse, mas trata-se de A Missão, de Heiner Muller, que a Cornucópia encenou em 1983 e 1992, resultando em espetáculos diferentes]

Quando é que se prevê que isso possa acontecer?

Não será para já. Acho que chegará o tempo para estudar, pensar e refletir sobre a Cornucópia e, mesmo não nos querendo pôr no lugar daquela companhia, o TBA não poderá deixar de participar. Provavelmente, em 2023, ano em que comemoraria 50 anos, pode haver a hipótese de inscrever esse texto na nossa programação.

O TBA vai abrir com dois espetáculos de dança: Hidebehind, de Josefa Pereira, e CHROMA, de Alessandro Sciarroni. Porquê duas propostas para o mesmo fim de semana?

Eu, a Laura Lopes, a Ana Bigotte Vieira e a Diana Combo, equipa de programação, decidimos que não queríamos ter “o” espetáculo de abertura, a grande inauguração. Queríamos, isso sim, dar visões parciais daquilo que o TBA pode ser. Ou seja, ter várias declarações de intenções que se irão replicar ao longo da temporada. Estes espetáculos foram programados em conjunto porque são peças curtas, são dois solos e têm em comum a ideia do movimento circular. A eles, junta-se ainda uma conferência sobre a ideia de respiração e sufoco pelo italiano Franco Berardi que, como iremos ver, estabelece alguns contactos com os espetáculos.

Para os próximos meses, o que podes destacar na programação do TBA?

Há um espetáculo da Gob Squad, companhia que programei na Culturgest, e que virá ao TBA apresentar, em novembro, um clássico do teatro experimental intitulado Super Night Shot. No mesmo mês, teremos uma coprodução internacional que fizemos com o Tim Crouch, estreada em Edimburgo e que está agora em Londres, no Royal Court. Depois, destacaria também, em dezembro, um solo da Raquel Castro em estreia absoluta e um espetáculo do Alex Cassal, Morrer no Teatro, que é ainda uma produção do Maria Matos, e que estreou este ano no Funchal. Para o ano, temos já agendado um projeto grande da Sofia Dias e Vítor Roriz, uma peça a solo da Teresa Coutinho e uma criação, em coprodução, da iconoclasta artista inglesa Lucy McCormick.