Gabriel Ferrandini

"A improvisação é como uma porta que abres e onde está tudo escuro, mas no final sabes que vai ser maravilhoso"

Gabriel Ferrandini

Gabriel Ferrandini prepara-se para apresentar Volúpias, o seu primeiro trabalho em nome próprio, dia 17 de setembro, na Culturgest. Este projeto resulta de um ano de residência artística na Galeria Zé dos Bois (ZDB), e foi o mote para esta conversa, onde ficámos também a saber de onde veio o gosto pelo jazz e de como um concerto no Jazz em Agosto lhe mudou a vida.

 

Como é que a bateria surgiu na tua vida?

É difícil de explicar. Acho que se resume a uma atração, um feeling

Alguma influência familiar?

Não tenho na família ninguém ligado à música. A minha avó tem um lado muito artístico, sempre puxou muito por mim. O meu pai não tem nada a ver com jazz, mas sempre ouviu muita música. Sempre tive muita música em casa.

Quando é que te começaste a interessar pelo jazz?

Quando andava no quinto ou sexto ano, tinha um amigo de escola cujo pai era um verdadeiro nerd, tinha todos os discos de jazz. Eu e os meus amigos juntávamo-nos a ouvir Chet Baker. Nessa altura um disco dava-me para vários meses…

Houve algum disco em particular que te tenha marcado?

Quando és novo e estás a descobrir coisas pela primeira vez, há discos que parecem magia, como o Love Supreme, do Coltrane. Quando o ouvi pela primeira vez pensei: “que loucura é esta?”. Foi uma cena brutal.

Continuas a ouvir esses primeiros discos?

Estou sempre a revisitá-los. Como é algo que faz parte da minha linguagem, há um lado de estudo. Há um lado de “curtição”, mas também esse lado de exploração. Às vezes tenho a neura de ter que ouvir o Elvin Jones para tentar perceber como é que ele fazia aquilo.

Que recordações guardas dos teus primeiros passos no jazz?

Estudei jazz no Hot Clube mas, a determinada altura, tive que sair. Havia coisas muito boas, mas as coisas menos boas estavam a fazer-me mal. Nessa altura o Alexandre Frazão ia começar a dar um novo curso na Academia de Amadores de Música de Jazz, uma coisa muito mais séria. Entretanto, na sede da Clean Feed Records comecei a apanhar o início da onda do free jazz. Foi aí que me eduquei (ou deseduquei) para coisas muito ‘fora do baralho’. Um dia fui ao Jazz em Agosto, vi a Globe Unity Orchestra (devia ter uns 18 anos) e fiquei completamente doido. Saí dali e comecei a tocar free jazz. Era tudo novo, foi um momento lindo. De tal forma que estava a estudar Design Gráfico e desisti. Percebi que trabalhar com computadores não era para mim. Ainda agora estive um ano e meio sem telemóvel, o meu pc mal funciona… É coisa de baterista. Gosto é de bater com paus em coisas.

Não te dás bem com a tecnologia, portanto?

É mais do que isso. Tenho aversão total. Às vezes vou almoçar com os meus pais e eles estão os dois agarrados ao telemóvel. Eu não.

Há alguns anos, tiveste a oportunidade de ter Evan Parker como mentor. Que ensinamentos retiraste desse convívio?

Tive muita sorte porque já estive várias vezes com ele: fiz dois workshops há algum tempo, depois fiz um mini-workshop há relativamente pouco tempo, e fez agora um ano que toquei com ele em dois concertos. Ele representa a verdadeira esperança daquelas pessoas que estão melhor agora do que antes. Nunca tocou tão bem como agora, aos 74 anos. Depois há as questões técnicas, relacionadas com a improvisação. Uma das frases que ele costuma dizer é “you have to make the others sound better”. Ele dizia-me que eu, enquanto baterista, tenho mais esse papel do que os outros. Claro que todos têm que ter a sua voz. Isto é uma discussão eterna nas bandas: saber qual é o papel de cada um. Num trio, por exemplo, cada um tem a sua função, mas isto não é só sobre nós, há algo superior, que é a música. Como dizia o Paul Lovens, que é um baterista incrível, nós somos editores. Fazemos corte e costura em tempo real.

Imaginas-te nesse papel de mentor?

Há pouco tempo estive com o Peter Evans a dar um workshop e gostei bastante da experiência, embora eu tente não dar aulas…

Não gostas desse lado pedagógico?

Não é por isso. Acho é que tem um lado perigoso. Muitos músicos acabam com a sua energia e investem muito tempo a dar aulas. Faz-se muito dinheiro e fica-se preso a isso. Sempre evitei. Já recebi convites e, na altura, pedi imenso dinheiro para garantir que a coisa não se concretizava. Uma coisa são aulas regulares, outra coisa é um workshop, em que, no final, cada um vai à sua vida.

A música está sempre presente na tua vida, ou consegues desligar-te dela em determinados momentos?

Tenho pesadelos com a bateria em que estou a tocar e os pratos começam a afastar-se… Acho que não dá para desligar, não dá para ser de outra maneira…

“O jazz é um tipo de música que foi buscar referências a outros géneros, um bocado como eu, que tenho uma ascendência variada” ©António Júlio Duarte 

 

Volúpias é o teu primeiro disco em nome próprio, resultado de uma residência artística na ZDB. Fala-me sobre esse processo.

Conheço o Sérgio [Hydalgo, programador musical da ZDB] há muito tempo. Aliás, o primeiro concerto de Red Trio foi aqui. A certa altura sentia que estava a bater contra uma parede, num beco sem saída. Queria compor, fazer um disco. Percebi que precisava de palco e tempo para me organizar. Vim ter com o Sérgio e disse-lhe que a única maneira que tinha de escrever um disco era pondo temas em prática. Sugeri que fizéssemos um concerto de dois em dois meses durante um ano, onde eu escreveria música para cada um deles. Durante dois meses compunha, ensaiava com a banda e dávamos o concerto, sempre neste ritmo intenso. O ano passou mas fiquei com a sensação de que, apesar da experiência ter sido super enriquecedora, a música não dava para fazer o disco. Pensámos sobre o assunto e decidimos ir para estúdio e fazer um best-of das melhores músicas que tinham resultado da residência. Estávamos com uma boa energia no final da residência e revisitámos os melhores temas. O disco é isso, e eu estou feliz com ele.

O jazz não é um estilo de música de massas. Achas que é preciso educar o ouvido para desfrutar do jazz?

É como tudo na vida, ninguém gostou da primeira cerveja que bebeu. Isso depende muito da pessoa. Eu, por exemplo, faço sempre as escolhas mais inusitadas. Escolho sempre o queijo mais mal-cheiroso ou o bagaço mais estranho…

Que outro tipo de música ouves?

Quando era mais novo ouvia de tudo e não quer dizer que agora não o faça, em modo de pesquisa. Estou sempre à procura de coisas novas. Não ouço, por exemplo, música comercial, embora existam coisas antigas e comerciais com boa onda. A televisão também já teve mais qualidade do que tem hoje. O mundo pop era diferente no passado. Hoje, metade do que é comercial é lixo. Antigamente o pop pretendia ser uma coisa popular, não era necessariamente sinónimo de lixo.

O teu concerto abre a nova temporada da Culturgest. É uma sala que te traz boas recordações?

É a primeira vez que vou tocar no Grande Auditório. Tenho dado concertos sempre no Pequeno Auditório. A minha preocupação é que corra bem, é o meu projeto, são os meus temas, há um convidado especial…

Ainda ficas nervoso ao entrar num palco?

Um dia o Riley Walker chegou até mim e disse que precisava de um baterista. Fui ter com ele ao Porto e fizemos um ensaio em que tocámos uma vez cada música. No dia a seguir atuámos no palco principal de Paredes de Coura e no dia a seguir a esse toquei com ele no maior palco onde já toquei na minha vida, num festival no País de Gales. Perante aquele mar de gente fiquei logo vacinado. Depois disso acho que consigo tocar em qualquer lado… [risos]

A 17 de setembro apresentas o teu disco em formato quarteto e terás como convidado o pianista de jazz alemão Alexander von Schlippenbach. Como surgiu a oportunidade de tocares com ele ao vivo?

Ele é um grande músico e está muito velhinho, tem 82 anos, creio. Toquei com ele na Rússia há uns meses. Ele era membro dos Globe Unity Orchestra, a tal banda que mudou a minha vida. É um dos culpados disto tudo [risos]. Basicamente adoro o trabalho dele. Ele tem um trio, os Schlippenbach Trio, uma das minhas bandas favoritas de sempre de pessoas vivas. É um super músico, no mesmo patamar que o Evan Parker. Também tem um free spirit no que diz respeito à improvisação. A improvisação tem muito a ver com técnica, mas no fundo é como uma porta que abres e onde está tudo escuro, mas no final sabes que vai ser maravilhoso.

Portugal não é demasiado pequeno para ti?

Nasci nos Estados Unidos, a minha mãe é brasileira e o meu pai moçambicano. Vim para Portugal com dez anos… Até acho que vim parar à música por causa disso, por ser algo universal e não ter língua. O jazz é um tipo de música que foi buscar referências a outros géneros, um bocado como eu, que tenho uma ascendência variada. Felizmente passo a vida lá fora a fazer concertos não só porque adoro estar na estrada, mas também pela questão económica. Mais de metade do dinheiro que ganho vem dos concertos que dou no estrangeiro. A Europa tem imensa atividade no que ao jazz diz respeito. Mesmo os músicos americanos passam muito tempo na Europa a tocar, porque há mais dinheiro para a cultura.

Já estás a escrever material para outro disco?

Tenho estado a trabalhar num solo, estou a acabar de o misturar e de construir o disco. É um apanhado de quatro concertos e é um disco impossível, uma espécie de desafio. Achamos sempre que os discos têm de ser o mais próximo possível do real, da pureza total. Enjoei-me um bocado disso. Este disco a solo está a ficar um monstrinho muito esquisito, mas tem sido um trabalho muito bom.