A Lisboa de Camilo Castelo Branco

Chorar e rir com Camilo

A Lisboa de Camilo Castelo Branco

A região de Entre Douro e Minho ocupa o centro geográfico da novelística de Camilo Castelo Branco. Contudo, o genial escritor situa dois dos seus romances mais importantes na cidade de Lisboa: A Queda dum Anjo e O Romance de um Homem Rico. O primeiro, é um dos mais populares do autor. Menos conhecido, o segundo, era o livro favorito de Camilo: “ o que eu mais quero, e, a meu juízo, o mais tolerável de quantos fiz.”

O presente itinerário permite-nos revistar, através de alguns locais de Lisboa, duas obras que representam, na perfeição, as duas principais vertentes da produção camiliana: a novela satírica de costumes e a novela passional. “Chorar ou rir, é onde bate o ponto”, escreveu Camilo. “Quem não conseguir uma das cousas não nos importune.”

A Queda dum Anjo

Ao mudar-se para Lisboa, para ocupar as suas novas funções de deputado, Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado da Agra de Freimas, termo de Miranda, escolhe alojar-se em Alfama “por lhe terem dito que, naquela porção da Lisboa antiga, a cada esquina havia um monumento à espera de arqueólogo competente”. As suas motivações eruditas não foram porém suficientes para o manter na dita morada, já que “ao cabo de três dias, mudou-se para rua mais limpa, supondo que os lamaçais de Alfama haviam tragado os monumentos, lamaçais em que ele desastradamente escorregara, e donde saira mal limpo, e assobiado por marujos e colarejas, seus vizinhos mais chegados”.

Alfama

Recorrendo aos seus amados e reverenciados autores de eras passadas para obviar o problema das águas de Lisboa, que considerava pesadas e salobras, “leu que o Chafariz de El Rei, dava uma linfa gostosa e de suave quentura, a qual limpava a garganta de toda a rouquidão e afinava as vozes, e assim, dizia o clássico, não errará quem disser que ela é a causa das boas vozes que em Lisboa docemente ouvimos cantar; e também dos bons carões que conservam as mulheres”. Mandando que lhe trouxessem um barril, “bebeu à tripa-forra o deputado, e teve uma dor de barriga precursora de febres quartãs”.

Chafariz d’El Rei

Ao Convento de Santa Joana, situado em Santa Marta, junto ao antigo Chafariz do Andaluz, rumou Calisto Elói para se deleitar com as cantorias religiosas interpretadas pelas ditas vozes afinadas pelas propriedades das águas. No entanto, não foi cantoria o que ouviu: eram três narizes roufinhando destoantes (…) Chamou a madre-porteira, e disse-lhe, com a sua candura de bom homem, que recomendasse às senhoras cantoras a água do Chafariz de El Rei”.

Convento de Santa Joana

A estreia parlamentar de Calisto Elói deixou marcas: tendo lido o Regimento da Câmara dos Deputados, o homem de carácter impoluto e nada disposto a transigir das suas convicções, “logo embicou na forma do juramento e disse que não jurava sem aspar as palavras que o obrigavam a ser inviolavelmente fiel à carta constitucional”. Pedindo a palavra e violando os regulamentos com o beneplácito do curioso presidente, referiu: “Senhor Presidente! Nos primórdios da Humanidade, a boa fé dispensava os juramentos: hoje em dia para tudo se faz mister jurar porque a boa fé desapareceu velut umbra da face da terra”.

Assembleia da República

Perante a desilusão de ver repudiado e incompreendido o seu primeiro assombro nas vertigens da paixão (adúltera) pela doce Adelaide, ocorrem a Calisto pensamentos sombrios. Neste contexto, Camilo elabora sobre o ato de dar temo à própria vida (que ele mesmo viria a fazer, anos mais tarde) e de um sítio para essa trágica decisão: “Calisto, digamo-lo sem refolhos, caiu. Atascou-se. Foi de cabeça ao fundo do pego em que deram a ossada o último rei dos Godos, e Marco António, e o rei enfeitiçado pela comborça Leonor Teles, e Simplício da Paixão, e várias pessoas minhas conhecidas, que experimentaram todos os sistemas de desfazer a vida, desde o muro de São Pedro de Alcântara até às cabeças dos palitos fosfóricos”.

São Pedro de Alcântara

Romance dum Homem Rico

O narrador apanha o comboio em Santa Apolónia em direcção a Santarém e conhece outro passageiro, o padre Álvaro Teixeira de Macedo, protagonista do romance. Já depois da morte deste, através de uma analepse, dá-nos a conhecer as vicissitudes da sua vida. Natural de Lisboa, possuidor de uma educação esmerada e de bens avultados, está desde a mais tenra idade prometido em casamento a sua prima Leonor por quem sente um amor profundo e sem limites.

Santa Apolónia

 Leonor enamora-se de um poeta de Vila do Conde, Miguel Sotto-Mayor. O pai, o morgado dos Olivais, encerra-a no Convento das Comendadeiras, ao Largo de Santos-o-Novo, para a forçar a casar com o primo. “Leonor ostentou brava reacção, mas cedeu, por fim, à força, dizendo que o tempo era a arma e a vitória dos fracos”. Desobedecendo, a jovem casar com Miguel. O poeta, ao saber que o sogro está arruinado, entrega-se amores adulterinos. É baleado e morto num dos seus encontros nocturnos.

Convento das Comendadeiras

Viúva, Leonor transfere-se para um palacete em Buenos Aires, procurando “a vida luxuosa de Lisboa” e entregando-se a uma existência dissoluta. Abre os seus salões “a uma partida semanal de parentes e amigos íntimos. Estes chamados ‘amigos íntimos’ são às vezes os inimigos de fora”. Leonor vive da beneficência de seu primo Alvaro e de sua tia Maria da Glória. Entretanto, torna-se cortejada por um moço sem “nascimento nem posição”. O jovem arrivista abandona-a quando toma conhecimento de que ela está arruinada. Humilhada, Leonor tenta suicidar-se.

Rua de Buenos Aires

“A vida voltou lentamente a Leonor, mas jamais a saúde”. Em consequência da tentativa de suicídio “seguiu-se a paralisia, e a inteira inactividade”.  Álvaro abraça a carreira sacerdotal e Leonor recolhe ao convento de Santa Marta (atual Hospital de Santa Marta) onde vem a morrer. O seu primo e eterno noivo revela-se de uma dedicação invulgar e sem limites visitando-a “duas vezes em cada dia”.

Convento de Santa Marta

O pai de Leonor, o Morgado dos Olivais, Sebastião de Brito, possuía no local “um palácio em ruinas desabitado desde o terramoto”, “o palacete onde nasceu Leonor” e “duas quintas que se espreguiçam na margem do aurífero Tejo”. Será nesse palácio em ruínas, na Quinta do Canavial, que passará os seus últimos dias Álvaro Teixeira de Macedo. Vive “na porção mais reparada e habitável do palacete (…) uma sala e dois quartos contíguos. Num destes estava a cama e a livraria do padre, o outro era devoluto para hospedes”. O “homem rico” deste romance, que fez do dinheiro meio de felicidade alheia, após a morte de Leonor, sua amada da juventude, extingue-se também, pois dá por terminada a missão que tinha na vida.