Ed Motta

Orgânico, natural e com instrumentos de verdade

Ed Motta

É possível que Ed Motta nos tenha visitado a cada novo disco, só que Lisboa não é sempre o destino dos seus espetáculos em Portugal. Desta vez volta a sê-lo, e numa sala onde o músico brasileiro e a sua banda nunca estiveram antes. O renovado Capitólio, se olharmos bem, até evoca os clubes modernos de jazz das capitais europeias, onde se escuta a música de pé, mais próximo do palco ou de um dos bares. A 27 de maio pelas 21h30, Ed Motta fará vibrar mais intensamente essa afinidade. Espera-se uma noite de excelente música, em cenário apropriado.

O tema que abre Criterion of the Senses, o seu disco mais recente, é Lost Connection to Prague, que volta a deixar bem clara a influência dos norte-americanos Steely Dan na sua música. Concorda que eles são para si uma espécie de matriz? E o que ficou a faltar aos Steely Dan com o falecimento do guitarrista e compositor Walter Becker (1950-2017)?

Os Steely Dan são uma influência e uma obsessão em relação aos padrões de estúdio, à exigência na forma de construir as composições, os arranjos, são uma grande referência para mim. Costumo dizer que assim como Charles Mingus tinha uma grande obsessão por Duke Ellington, nunca como imitação mas como continuação da proposta anterior, isso também se dá com os Steely Dan, onde adiciono algo da música negra através da minha voz, e na forma de fazer arranjos com a influência do soul. Com o falecimento do Walter Becker a sonoridade passa a ser essencialmente o som do Donald Fagen, que também é parte fundamental na sonoridade deles.

No álbum Perpetual Gateways (2016) teve a possibilidade de gravar com alguns dos seus heróis musicais (Greg Phillinganes, Marvin Smitty Smith, Curtis Taylor) mas em todos os seus discos, sem excepção, a qualidade dos músicos, sejam brasileiros ou internacionais, é excelente. O que tem para si de tão particular o som de Perpetual Gateways?

Foi um disco gravado espontaneamente com esses grandes músicos norte-americanos, um disco gravado num padrão um pouco diferente do que eu faço. Geralmente demoro muito tempo no estúdio, existe uma pós-produção imensa, e no momento de gravar é tudo com muita acuracidade. Não que isso não tenha sido cuidado, mas teve o tratamento de um disco de jazz, algo mais espontâneo gravado ao vivo, em poucos dias. Em menos de uma semana foi feito o disco todo, e geralmente os meus discos levam seis a sete meses a serem gravados atrás do take perfeito de cada instrumento.

As letras das canções de Criterion of the Senses são assinadas por si e várias remetem para universos de fantasia e situações algo irrealistas. Atribui grande importância às letras deste disco ou considera que são sobretudo um veículo para a sua voz?

O Criterion of the Senses é o meu disco que tem as letras mais interessantes,  bastante influenciadas por guiões de cinema noir, por exemplo a música The Tiki’s Broken There, onde se quebra um tiki, aqueles objectos da Polinésia, e dentro do tiki haveria um papiro, a juntar ao envolvimento do tenente da cidade com uma mulher, uma típica história noir bastante cinematográfica. Pela primeira vez, as letras estão à altura da música, do que eu gostaria que o texto das minhas músicas fosse. Comecei a fazer letras de música no disco anterior, o Perpetual Gateways. Não são canções de amor, não são canções de situações pessoais, são guiões. Em alguns momentos existem temas que revelam influências da literatura de ficção científica, de Stanislaw Lem ou de Kurt Vonnegut, de Isaac Asimov, mas mais uma vez com influências também de vários letristas da música pop como Ben Sidran e Donald Fagen.

É importante para si encontrar noutros projectos da música atual uma espécie de “companheiros de estrada” que partilham os mesmos valores que a sua música aponta, ou basta-lhe os exemplos da música do passado para reforçar o sentimento de que está a fazer o caminho certo?

Não sinto que tenha tido algum companheiro de estrada na vida, ninguém com quem me identificasse esteticamente da minha geração. Sinto-me completamente desconetado da minha geração. Nunca ouvi hip-hop, a minha música não tem influência daquilo que grande parte da minha geração adora. O olhar vai desde a música do cinema dos anos [19]30-40-50-60, passando pela música dos anos 60, a pop, o rock, o jazz, mas, sobretudo, essa música produzida dos anos 80 para trás. Nunca me senti parte de um movimento e dou graças a Deus por isso. Se achasse que estava fazendo parte de um grupo de pessoas que fazem a mesma coisa, alguma coisa estava errada.

A sua música parece encontrar um ainda maior reconhecimento fora do Brasil, e de si diríamos que emana a imagem de um intelectual que desfruta dos prazeres da vida com um grau de sofisticação europeu. Alguma vez considerou mudar-se para o velho continente?

Nos últimos três discos a minha música passou a ter um maior reconhecimento fora do Brasil. Fiz muito sucesso no Brasil desde sempre, desde o meu primeiro disco, que já tem mais de 30 anos, mas eu encontro no mercado europeu uma boa vontade muito grande em escutar o trabalho que faço, que não é o trabalho de uma música vigente hoje no mundo. A minha música é feita de forma orgânica, natural, com instrumentos de verdade, com músicos preparados tecnicamente, não tem máquinas, tem a edição natural que qualquer orquestra sinfónica usa. Pensei a minha vida inteira em me mudar para o velho continente mas agora, aos 47 anos, não tenho vontade de mudar. Tentei morar por um curto período na Alemanha, quando lancei o disco Perpetual Gateways, mas infelizmente não me adaptei ao modo de vida, que tem um código que é o absoluto oposto do meu. Prefiro vir à Europa para tocar, trabalhar, aproveitar as coisas de que gosto, ir a Paris a toda a hora… Claro que se fosse possível obter um visto e ter um apartamento com o conforto que tenho no Brasil, numa cidade como Paris, estaria lá ontem, porque ali tem tudo o que eu amo.

Os seus fãs têm de si a imagem de alguém dotado de uma musicalidade exuberante e incessante. Dir-se-ia que poderia gravar um novo disco todos os meses, ou pelo menos uma vez por ano. Porque é que isso não acontece?

Sou muito cuidadoso no processo de gravação dos discos. Demoro a fazer as músicas, depois vou fazendo os arranjos, preciso de conviver com elas. Não faço discos a toda a hora porque demoro bastante dentro do estúdio. Preciso de um orçamento minimamente razoável para chegar a um resultado. Não me sinto apto a gravar todos os meses, acredito num sistema de criação extremamente organizado. Adoro música espontânea, há vários discos de jazz que adoro gravados numa só tarde, mas não é isso que tenho vontade de fazer. Gosto de fazer uma música toda controladinha na régua e esquadro, toda dentro de um sistema que domino.

Qual dos seus discos foi mais importante enquanto afirmação de uma estética e de uma individualidade que são as suas? Dwitza (2002), talvez…

Dwitza é um dos mais importantes. O Aystelum [2005], o Chapter 9 [2008] que é um disco onde toco todos os instrumentos sozinho e que só tardiamente foi apreciado pelas pessoas que acompanham o que eu faço. E os três mais recentes, principalmente o AOR [2013] e o Criterion of the Senses [2018].

Já lhe aconteceu ter um papel mais regular enquanto divulgador musical, na rádio, ou até mesmo o de promotor, por exemplo, à semelhança do que acontece com o DJ Gilles Peterson?

Já tive alguns programas de rádio no Brasil, desde 1992, em Minas Gerais. Depois fiz um programa em São Paulo, por dois anos, na rádio El Dorado, que se chamava Empoeirado. Sinto falta do meu programa de rádio, mas tudo mudou muito, a internet trouxe algo muito democrático e as pessoas talvez não precisem tanto de uma pessoa para escolher músicas.

Quem ficará com a guarda da sua sumptuosa colecção de discos no dia em que deixar de ser você a ocupar-se dela?

Puxa.. não sei. Quem estiver vivo e for relativo a mim. De parentesco. Vai ficar com ela e não sei o que vai ser feito. É uma incógnita. Pensei muitas vezes em vender a minha colecção e parar de fazer shows, parar de viajar, parar tudo, e só gravar discos que é o que eu realmente gosto. Trabalhar no estúdio, muito mais do que tocar ao vivo. Fiz alguns cálculos, a colecção daria um dinheiro, mas se eu investisse esse dinheiro, em acções, não daria para ficar sem trabalhar. Então, se não dá para ficar sem trabalhar eu fico com os meus discos mesmo.