teatro
Com Arthur Miller no São Luiz
Os Artistas Unidos apresentam 'Do Alto da Ponte'
Desde setembro na estrada, depois de récitas em Viseu, Guarda, Leiria, Cartaxo, Bragança, Aveiro, Póvoa do Varzim, Ponte de Lima e de uma temporada no Porto, os Artistas Unidos chegam agora a Lisboa com Do Alto da Ponte, uma das mais célebres peças de Arthur Miller. Jorge Silva Melo dirige esta tragédia moderna passada entre migrantes, gente modesta dos portos de Nova Iorque à procura do seu quinhão de sonho americano. Antecipando a estreia no Teatro São Luiz, a 10 de janeiro, o encenador Jorge Silva Melo falou-nos sobre o espetáculo e os atores Américo Silva, Joana Bárcia, Vânia Rodrigues, António Simão, Bruno Vicente e André Loubet apresentaram-nos as suas personagens.
Obra-prima da dramaturgia norte-americana, Do Alto da Ponte conta a história de homens que, citando o texto, ganham a vida “nas docas que se estendem de Brooklyn até ao quebra-mar, onde o oceano começa”. Objetivamente, a peça de Arthur Miller (1915-2005) narra o drama de Eddie Carbone, “um bom homem”, daqueles que “trabalhava nas docas quando havia trabalho, trazia o dinheiro para casa e vivia”. Um dia, a vida normal do estivador Eddie altera-se radicalmente com a chegada de dois primos da mulher, clandestinos, provindos de Itália. Sobretudo quando um deles começa a cortejar Catherine, a sua jovem e adorada “sobrinha”.
“A peça é como que um romance intenso entre várias personagens, com um lado folhetinesco muito cativante”, considera Jorge Silva Melo. A genialidade de Miller está precisamente na “facilidade narrativa, carateristica que conquista o público”. Mas não só. O que é arrebatador no texto são as “personagens dúbias e esse conflito trágico entre duas leis: a da família – siciliana, imigrante e clandestina – e a formal – a americana, liberal e democrática.”
Estreada inicialmente em 1955 (numa encenação de Martin Ritt), em plena “caça às bruxas” do MacCarthismo, esta tragédia moderna sobre amores proibidos, suspeição e delação começou por ser um rotundo fracasso na brilhante carreira do autor de Morte de um Caixeiro Viajante e As Bruxas de Salém. Um ano depois, já reescrita, seria encenada em Londres por Peter Brook, passando a figurar de pleno direito entre as maiores obras dramáticas do século XX.
Assim, mais de meio século passado sobre a estreia, Silva Melo e os Artistas Unidos chegam a este Miller, àqueles anos 50 em que despontava o rock’n’roll, àqueles estivadores e migrantes – os “semi-cidadãos” nas palavras do encenador –, àqueles que buscavam um futuro na “garganta de Nova Iorque que engole toda a tonelagem do mundo”, como escreveu o próprio autor.
O elenco e as personagens
Apesar de ter visto várias encenações da peça, sobretudo em Inglaterra, Jorge Silva Melo confessa que nunca imaginou encená-la. “Até hoje, quando percebi que os meus atores tinham a idade certa para a fazer”.
Optando pela total depuração e por uma quase austeridade cénica, o encenador recusou na sua montagem de Do Alto da Ponte toda “a tralha naturalista”. Por isso mesmo coube ao “corpo dos atores desenhar uma cenografia para o espetáculo”. Contando nos papéis centrais com artistas que tão bem conhece, o que importa verdadeiramente experienciar a cada récita são essas “personagens que perturbam, comovem e intrigam”. Como nota introdutória à peça, convidámos os atores a fazerem uma breve apresentação sobre elas.
Américo Silva
Eddie
“O Eddie Carbone é um estivador com uma vida relativamente estável, embora nem sempre tenha trabalho, que um dia vê a rotina ser perturbada com a chegada de dois primos da sua mulher Beatrice. Em crescendo, a presença deles vai começando a destabilizá-lo, e as coisas complicam-se quando um deles, Rodolpho, começa a cortejar a sobrinha da mulher, uma jovem de 17 anos (e que ele criou como filha) por quem nutre algo mais do que um amor filial. Diria que o Eddie é um homem que não se conhece a si próprio, e isso acaba por levá-lo ao desespero e a um destino trágico.”
Joana Bárcia
Beatrice
“A Beatrice é uma dona de casa, casada com Eddie, que devido à morte prematura da irmã, cria a sobrinha, Catherine, como filha. Percebe-se que, apesar de uma aparência submissa muito típica da mulher dos anos 50, ela conhece bastante bem o marido e vai antecipando as desgraças que estão prestes a ocorrer. Aliás, ela adivinha o protagonismo da sobrinha na vida de Eddie e tenta contrariar isso, lembrando o quanto precisa de que o marido volte para ela. Considero-a uma mulher de garra e muito verdadeira.”
Vânia Rodrigues
Catherine
“Para a Catherine chegou a hora de ser mulher. Ela é uma jovem de 17 anos movida pela dúvida, dividida pelo conforto da família e o desejo de emancipação, pelo afeto do tio que a criou e a descoberta do primeiro amor… E vai ter de encontrar um caminho e fazer escolhas. É uma personagem que noite após noite me faz descobrir coisas só minhas.”
André Loubet
Rodolpho
“O Rodolpho é um imigrante ilegal, um jovem que pinta o cabelo de louro, que gosta de cantar e dançar e que sonha estabelecer-se num país novo, que lhe permita cumprir os sonhos. Vai apaixonar-se pela Catherine e entrar em conflito com Eddie, que o acusa de andar apenas atrás de um passaporte. Mas, apesar de toda a hostilidade a que vai sendo sujeito (até porque ele não respeita propriamente os padrões de masculinidade vigentes naquela época), é sempre um personagem vivo, alegre, pacificador e até bastante ponderado.”
Bruno Vicente
Marco
“Ao contrário do irmão Rodolpho, o Marco chega à América como ilegal para trabalhar, juntar dinheiro e voltar para a Sicília natal, onde o esperam mulher e três filhos famintos. É um tipo forte, crente nas tradições ancestrais da honra e que não poderá perdoar a traição.”
António Simão
Alfieri
“O advogado Alfieri tem uma enorme ambivalência na peça. Ele é simultaneamente personagem – o advogado a quem Eddie recorre a dado momento e que o reconhece como um homem bom, simples e trabalhador – e narrador, como se fosse o coro num paralelismo à tragédia grega. Ao mesmo tempo, é ele quem transmite a opinião do público perante aquilo que está a ver e é quem faz a ponte entre o passado e o futuro, o imigrante e o cidadão americano. Ele é, muito provavelmente, a representação do próprio Arthur Miller.”