O Sonhador de Grandes Coisas

O legado de Duarte Pacheco

O Sonhador de Grandes Coisas

No dia 1 de janeiro de 1938, Duarte Pacheco tomava posse como presidente da Câmara de Lisboa, há 80 anos. O seu mandato foi curto, tal como foi curta a sua existência mas, em ambos casos, vivida a grande velocidade, com enorme intensidade e plena de realizações. Estes atributos e vicissitudes estão na base da glorificação e até mitificação de que foi alvo e não apenas no Estado Novo. Como observa a investigadora Sandra Vaz Costa, no seu livro O País a Regra e Esquadro, “com a queda do regime mudou-se o nome da Ponte Salazar mas manteve-se o do Viaduto Duarte Pacheco”. Mitificado ou não, o homem a quem os políticos chamavam engenheiro e os engenheiros político, teve o discernimento, a habilidade e a capacidade de navegar as conjunturas políticas e sociais do seu tempo para transformar um país e uma sociedade. A sua ação na modernização de Lisboa foi especialmente notória.

O engenheiro Duarte Pacheco foi Presidente da Câmara Municipal de Lisboa por apenas alguns meses. Ao contrário do epíteto que lhe dedicou poeticamente Cotinelli Telmo e que serve de título a este artigo, para além de sonhador, Duarte Pacheco foi um impressionante fazedor a quem o Governo recorreu quando era preciso concretizar e depressa. Foi o que aconteceu em 1938, quando é de novo chamado ao Governo, para que se possam cumprir os ambiciosos projetos nacionais então lançados, entre os quais a Exposição do Mundo Português, o Plano da Costa do Sol e a consequente transformação da zona ocidental da cidade.

A sua presença em Lisboa remonta a 1917, quando se matricula no Instituto Superior Técnico (IST). Nascido em Loulé, a 19 de abril de 1900, Duarte José Pacheco foi o quarto filho de um total de onze, quatro rapazes e sete raparigas, de uma família de classe média alta, com ligações à administração pública e à política. Seu pai foi Chefe de Repartição de Finanças de Loulé, monárquico convicto e membro do Partido Regenerador e seu tio, Governador Civil de Faro. Órfão de mãe aos seis e de pai aos catorze anos de idade, concluiu o liceu em Loulé e Faro, com média de 17 valores. O seu irmão mais velho, Humberto, matriculou-se em 1916 no Instituto Superior Tècnico, Duarte seguir-lhe-ia os passos um ano mais tarde e com ele partilharia residência, na Rua do Século.

O IST viria a ser, em muitos aspetos, o modelo que Duarte Pacheco aplicaria com tanto sucesso ao longo da sua vida. Desde logo pelo entendimento que os objetivos perseguidos com afinco se podem sobrepor aos constrangimentos formais: a sua nomeação como professor interino e logo depois ordinário foi uma exceção no meio académico, onde a sua juventude e falta de currículo levantaram fortes objeções. Por comparação, o seu companheiro em tantas obras, Porfírio Pardal Monteiro, demoraria 12 anos a fazer o mesmo percurso. Convém aqui recordar que o IST funcionava em instalações consideradas desadequadas e mesmo anti-higiénicas (merecendo o cognome de Barracão da Boavista) e que há anos que o seu fundador e primeiro diretor, Alfredo Bensaúde, lutava por novas instalações que estivessem à altura das exigências modernas do ensino. Duarte Pacheco foi reconhecido como instrumental neste processo, o homem que seria capaz de fazer acontecer a revolução. Nos dois anos que decorreram entre a conclusão do curso de Engenheiro Electrotécnico e a sua admissão como professor, desenvolveu a amizade com Caetano Maria Beirão da Veiga, que se provaria fundamental. Este professor catedrático de Contabilidade, foi por diversos períodos diretor interino do IST e também vereador da Câmara Municipal de Lisboa (1923), para além de administrador delegado da Empresa Nacional de Publicidade, detentora do Diário de Notícias. Os dois desenvolveram o que Beirão da Veiga mais tarde classificaria de uma amizade quase paternal, e através dele, Duarte Pacheco terá tido acesso a muita informação crucial para o projeto do novo edifício do Técnico.

Obras do Instituto Superior Técnico

 

Como professor efetivo a partir de 1926, Duarte Pacheco teve acesso ao Conselho Escolar. Na sua primeira participação, usou da palavra para explicar a sua opinião e o método que viria a usar ao longo da vida: análise das situações, identificação dos erros, definição de prioridades e construção de soluções. Neste caso a solução que apresentou foi a de fazer pressão junto dos poderes públicos, particularmente do Ministro do Comércio, defendendo que a reforma do ensino pretendida pelo governo deveria estar consubstanciada numa obra concreta, as novas instalações do IST. A resposta do poder político veio em 1927, com a publicação de legislação que consagrou as pretensões do Técnico, tendo sido também nesse ano que o Conselho Escolar delegou em Duarte Pacheco a coordenação da operação. É da sua iniciativa a escolha do terreno para o novo IST. A 25 de fevereiro desse ano de 1927, Duarte Pacheco informara o Conselho Escolar de que já tinham sido iniciadas conversações com o proprietário do terreno, no Arco do Cego, nas imediações do primeiro e ainda inacabado bairro social de Lisboa. Com acesso ao crédito disponibilizado pelo Estado, o IST procede à aquisição de uma área de terreno bastante superior à estritamente necessária para o projeto, sem qualquer ilegalidade, visto que estava consignada na lei (Decreto 13 113 de 1 de Fevereiro de 1927). Estas parcelas suplementares viriam  a ser negociadas com instituições do Estado e com particulares, gerando mais valias para financiar o IST. Para além de prédios de rendimento refira-se o caso do Instituto Nacional de Estatística e da Casa da Moeda, ambos edificados em terrenos do Técnico. Ao tornar-se indissociável da obra, torna-se lógico que Duarte Pacheco tenha sido nomeado Diretor do Instituto, ainda que tivesse apenas 27 anos. O facto é que, como se veio a dizer mais tarde, antes de Duarte Pacheco, nada se conseguiu e depois dele, pouco se acrescentou. Enquanto foi vivo, o Engenheiro sempre acarinhou este projeto e depois da sua morte, não se chegariam a construir o Pavilhão de Hidráulica e o Laboratório de Máquinas previstos no plano inicial. O complexo do IST é considerado a primeira grande obra pública moderna e foi também o primeiro alicerce da reputação de Duarte Pacheco.

É de referir que o trabalho de Duarte Pacheco não se restringiu à obra. Também no plano estrito da educação foi interventivo na modernização do ensino, o que lhe terá justificado o convite para integrar o governo de Vicente de Freitas, na qualidade de Ministro da Instrução Pública. É já como ministro e em virtude das suas demonstradas qualidades de persuasão que lhe é acometida a célebre tarefa de convencer um renitente Oliveira Salazar a aceitar a pasta das Finanças, com o sucesso que se sabe.

Com a criação do Ministério das Obras Públicas, a 5 de Julho de 1932, Duarte Pacheco vai aplicar o seu método de trabalho já testado: estudo dos problemas, constituição de equipas técnicas multifacetadas, planeamento e execução. Seguidamente, criar os instrumentos legais que se adequassem ao plano e à celeridade da ação.

Viaduto Duarte Pacheco e Parque Florestal de Monsanto

 

Do seu legado relativo a Lisboa, vale a pena referir dois instrumentos estruturantes que marcaram o desenvolvimento da cidade, o Plano Diretor de Lisboa e o Plano de Urbanização da Costa do Sol (PUCS), desenvolvidos com o apoio de dois experientes urbanistas, Donat Alfred Agache e o seu colaborador Etienne de Groer.

Ao estabelecer as regras e o fundamentos para a atuação ao nível das obras públicas e, com base nestas premissas planear o desenvolvimento, Duarte Pacheco ficará associado à grande maioria das principais obras do país durante largos anos. Muitas das suas directivas estiveram em vigor até aos anos 90 do século passado. A sua morte prematura e trágica num acidente automóvel em Vendas Novas no dia 16 de dezembro do 1943 levou a que o Engenheiro não assistisse à conclusão de muitos dos projectos que lançou. Ao observar de relance o seu percurso, fica-se com a sensação de que provavelmente não o afetaria estar ausente das inaugurações e que era em tudo o que as precedia que se realizava pessoalmente.

Como seria de esperar, nem tudo foi consensual no percurso de Duarte Pacheco. Em virtude das expropriações que os seus planos implicaram, em 1938 uma comissão de técnicos industriais, comerciantes e representantes de proprietários, envia uma carta ao Ministro do Interior, criticando duramente a atuação de Duarte Pacheco. Acusavam-no de megalomania insana, de ter transformado a CML num manicómio Municipal e numa Câmara de Negócios e de favorecer amigos como Pardal Monteiro e Cristino da Silva. Para rematar, um insulto supremo, o de parecer um bolchevista encapotado e inimigo do Estado Novo, ao atacar a propriedade privada.

Caricatura de Duarte Pacheco por Francisco Valença (1938)

 

A magnitude da sua intervenção gerou, por outro lado, comparações um tanto expectáveis com o Marquês de Pombal. Se Pombal fez o centro da cidade, Duarte Pacheco projectou a sua expansão e organização. Como refere Sandra Vaz Costa na obra já citada e que é a principal fonte deste artigo, Pombal e Duarte Pacheco, salvaguardadas as diferenças de escala, chamaram ao Estado a autoridade e a competência na ordenação do território e planificaram e construíram a cidade num modelo maior que a vida de um governo ou de uma geração.

No âmbito desta efeméride, o Gabinete de Estudos Olisiponenses organiza uma mostra alusiva à vida e obra do Engenheiro Duarte Pacheco, e apresenta uma conferência de Sandra Vaz Costa no dia 15 de novembro, pelas 18h30, intitulada Lisboa: a obra capital de Duarte Pacheco.

 

CRONOLOGIA

19 abril de 1900 – Nascimento em Loulé

1917 –    Ingresso no Instituto Superior Técnico

1923 – Termina o Curso de Engenharia Electrotécnica com 19 valores

8 de outubro de 1925 – Professor Interino de de Matemáticas Gerais

1926 – Professor ordinário e Diretor Interino do IST

10 agosto 1927 – Diretor do IST

19 abril 1928 – Ministro da Instrução Pública

10 novembro de 1928 – Regressa à Direção do IST

5 julho 1932 – Ministro das Obras Públicas e Comunicações (MOPC)

18 janeiro de 1936 – Regressa à Direção do IST

1 janeiro de 1938 – Presidente da CML

26 maio 1938 – Ministro das Obras Públicas e Comunicações

16 novembro de 1943 – Falecimento