Dentro de nós

‘A Casa de Bernarda Alba’ no Teatro Ibérico

Dentro de nós

A partir de A Casa de Bernarda Alba, de Federico Garcia Lorca, João Garcia Miguel construiu um libelo contra o estado de “isolamento que aumenta no mundo”. E escava fundo, bem dentro de nós, através da entrega total à cena de um surpreendente elenco internacional, constituído pelo irlandês Sean O’Callaghan, pelas brasileiras Annette Naiman e Paula Liberati, e pelo português Duarte Melo.

Na peça de Federico García Lorca, a última escrita pelo autor andaluz antes de ser executado pelas forças falangistas durante a Guerra Civil Espanhola, a viúva Bernarda Alba toma com mão de ferro as vidas das suas cinco filhas (Angustias, Madalena, Amélia, Martírio e Adela). A casa é o cárcere onde a matriarca enclausura e oprime todas as pulsões das suas descendentes.

Partindo do enredo desta obra-prima absoluta, João Garcia Miguel (que há uns anos levou à cena outra das peças essenciais do autor, Yerma) escreveu um texto como se procurasse “o segredo oculto e inacessível que ela contém”. Suprimindo algumas personagens, o espetáculo explora “uma conexão profunda com a terra e o corpo” que o encenador descortina na escrita e no universo de Lorca e da qual se apropria. Por isso, A Casa de Bernarda Alba segundo Garcia Miguel afasta-se “do olhar sobre o quotidiano para mergulhar no mais íntimo de cada um de nós.”

Sean O´Callaghan, Paula Liberati e Duarte Melo numa cena da peça.

 

A personagem de Bernarda Alba – aqui interpretada surpreendentemente pelo consagrado ator irlandês Sean O’Callaghan – é paradigmática desse olhar, como se a crueldade fosse, enfim, uma expressão do humano. “Para salvar a família, Bernarda transforma-se na déspota. O luto não é a catarse, mas sim a barbárie”, sublinha o encenador. “No fundo, esta personagem encarna o ciclo invisível entre extremos que cada um de nós tem dentro de si e que a qualquer momento, sem que muitas vezes o consigamos compreender, se revela.”

Num dos vértices desses extremos, surgem Bernardas Albas que “crescem à luz cruel dos nossos dias, tornando-se cada vez mais coercivas, com discursos onde admitem mecanismos de repressão e censura, em nome da liberdade”. Mas, pelo menos neste palco, mais do que abordar economia, política ou a sociedade em geral, “aquilo que verdadeiramente importa é escavar bem no íntimo do humano”, sobretudo numa busca de tudo aquilo que está para além da razão.

As atrizes brasileiras Annette Naiman e Paula Liberati interpretam as irmãs Martírio e Adela.

 

Um elenco internacional

Nesta produção da Companhia João Garcia Miguel, o encenador conta apenas com um ator português, o jovem Duarte Melo, com que trabalhara anteriormente em Tio João. “É um intérprete de enormes recursos, com uma impressionante fisicalidade, daqueles que tem a marca do tipo de trabalho que desenvolvemos”. A ele cabe o papel da governanta Poncia. Mas, como vimos, não é a única “supressão” de género que o espetáculo contém, já que Sean O’Callaghan interpreta a mãe castradora Bernarda Alba.

Para o ator com vasto currículo em produções do Shakespeare’s Globe e da Royal Shakespeare Company, “trata-se de um enorme desafio por se tratar de uma das mais importantes personagens da dramaturgia mundial. Curiosamente, hoje há grandes atrizes a interpretar personagens masculinos. Na Grã Bretanha tem sido recorrente ver mulheres a fazer o Lear ou Ricardo III. A mim coube-me a Bernarda e sinto que é um trabalho de uma enorme liberdade, tão grande que ultrapassa a questão de género.”

Para Garcia Miguel, ambas as escolhas permitem “evitar uma imagem previamente determinada das personagens”, dado que “o teatro não é mais o mundo do naturalismo, mas sim das possibilidades”. E, como iria o encenador não aproveitar a possibilidade de ter em palco, sob sua direção, um ator como Sean O’Callaghan, confesso admirador do trabalho de Garcia Miguel?

A presença declaradamente feminina está nas intérpretes brasileiras, Annette Naiman e Paula Liberati, a quem Garcia Miguel distribuiu os papéis das filhas Martírio e Adela. Para ambas, “não se trata só de trabalhar com um homem de teatro tão reconhecido como Garcia Miguel. Fazer esta peça, tendo em conta o Brasil que deixámos há dois meses e meio, tem um significado muito especial para nós ou não andassem as Bernardas Albas por lá à solta.”

Em antestreia no Teatro Ibérico, de 18 a 20 de outubro, este visceral e empolgante olhar sobre A Casa de Bernarda Alba volta ao mesmo palco entre 12 e 22 de dezembro. Antes dessa temporada mais extensa em Lisboa, o espetáculo passa pelo Brasil durante o mês de novembro.