Nos bastidores do Bairro

'Os Dias de Marvila' acontecem de 5 a 16 de outubro

Nos bastidores do Bairro

Pelo segundo ano consecutivo, a Biblioteca de Marvila promove um festival de artes performativas que, tendo como epicentro este moderno equipamento municipal, é um desafio para abrir a toda a cidade uma freguesia que até há bem pouco tempo era notícia pelos seus bairros sociais, pela degradação urbanística e pelos baixos níveis de literacia e empregabilidade dos seus moradores. Hoje, muito está a mudar neste vasto território a oriente, que começa junto ao rio, compreende uma dezena de bairros e cola praticamente ao Aeroporto. Se o Poço do Bispo, zona de Marvila Velha, fervilha com novos projetos culturais e empresariais, e até se começam a nomear problemas comuns a quase toda a cidade, como o fenómeno da “gentrificação”, para lá da linha de comboio, parece ainda subsistir uma outra cidade. Aquela que fomos conhecer através de uma viagem aos bastidores de alguns dos projetos que vão animar Os Dias de Marvila.

Bem na zona central de Lisboa, na plataforma da estação Roma/Areeiro, dá entrada o comboio suburbano proveniente de Alcântara-Mar com destino a Castanheira do Ribatejo. Sem atrasos dignos de registo, entramos na composição, sabendo que, em pouco menos de um quarto de hora, estaremos sentados no confortável lobby da Biblioteca de Marvila a falar com alguns dos Visionários locais.

Deslizando suavemente pelos carris, o comboio parece transportar-nos para fora da cidade por terrenos baldios, emaranhados de vias rápidas e viadutos que cruzam a linha e estreitas azinhagas que desembocam em pequenas hortas. Como era previsto, em seis meros minutos desembarcávamos no apeadeiro de Marvila. A poucos metros, a norte, sem particular ostentação, mas bem visível, o nosso primeiro destino: a Biblioteca de Marvila.

Vivendo a insónia do programador

Dadas as disponibilidades pessoais, apenas quatro dos 12 Visionários de Marvila responderam à nossa chamada. E é com entusiasmo que partilham a experiência de desempenharem, nesta edição de Os Dias de Marvila, o papel de programadores de dois dos espetáculos a serem exibidos no festival – 1.5º Ponto de Equilíbrio, da Companhia Erva Daninha, e o concerto do quarteto DG4.

Os Visionários posam no Apeadeiro de Marvila

Ser visionário resume-se, precisamente, a desempenhar o papel de programador. O projeto Visionários, promovido em vários municípios pela ArtemRede, proporciona o visionamento de diferentes espetáculos e criações artísticas a um grupo de pessoas que os avaliam e tenderão a escolhê-los para uma futura exibição pública. Porém, não basta gostar – é preciso aferir da disponibilidade dos artistas, do orçamento disponível e de outros tantos aspetos que, por norma, dão muitas noites de insónia a um programador profissional. A Cila, a Dina, o Rui e a Eunice, visionários marvilenses, que o digam! Após terem visto in loco e em vídeo um rol de projetos, o grupo, “muito heterogéneo em termos de idades e percursos de vida”, decidiu e cabe agora ao público em geral avaliar as suas escolhas.

Os rappers Viruz e Rato Chinês com DJ Myslo na Biblioteca de Marvila

Todos os socos que levei foram à pala do rap

O reencontro de velhos amigos que o amor pela música, nomeadamente o rap, uniu. Sentados à nossa frente, depois da sessão de fotografias debaixo de um sol abrasador, Viruz, Myslo e Rato Chinês juntam-se a nós e depressa começam a partilhar histórias que parecem saídas dos temas que entoam. Dos três, Rato Chinês é o único marvilense (Viruz e o seu produtor e DJ, Myslo, são oriundos de Campolide) e o modo como se denomina enquanto artista é bem sintomático daquilo que é, mas também foi, o bairro onde hoje está instalada a Biblioteca. “Rato é a minha alcunha desde criança. É assim que, aqui em Chelas [denominação já removida da toponímia de Lisboa, mas ainda muito usada pelos locais], toda a gente me conhece. O Chinês vem do tempo em que este sítio eram quase só barracas e a estrada era de terra batida: o Bairro Chinês.”

Viruz e Rato conhecerem-se na década de 90, no Bairro Alto, e juntos faziam freestyle rap na rua, dando eco à admiração que tinham “pelos poemas e pelo beat que ouviam dos mais velhos à porta da escola”. Falam de um período dourado, entre 2001 e 2004, em que a dupla fazia furor no animado bairro da capital. Entretanto, a vida levou-os por caminhos diferentes: Viruz tem uma carreira consolidada no rap nacional e Rato está de volta à arte que o fez levar todos os socos de que se lembra. E, de certo modo, é um regresso que a Biblioteca patrocinou: “entrei aqui, uns meses depois da abertura, e perguntei por um estúdio. Não havia, mas abriram-me as portas de um auditório”. Aliás, esta experiência leva o trio a sublinhar a importância de se acabar com a desconfiança e o preconceito mútuos entre os residentes na zona e aqueles que vêm de fora: “e a nós, enquanto artistas, cabe-nos ser mediadores dessas realidades”, sublinham.

Cultivar a autoestima em quem tanto precisa

Cruzamos agora a linha de comboio em direção à Estrada de Marvila, virando costas a Chelas. Na Azinhaga das Veigas, um velho palácio alberga a Casa de São Vicente, uma associação atualmente dedicada à reabilitação de pessoas portadoras de deficiência, fundada em 1940 pela Condessa de Mafra, Maria Antónia de Mello Breyner. Aqui, Suzana Rodrigues trabalha com alguns dos utentes desta IPSS na exposição A nossa cara não é estranha, que estará patente na Biblioteca de Marvila durante o festival.

Os modelos da Casa de São Vicente provam como ‘A Nossa Cara Não é Estranha’

A exposição consiste em registar, através de fotografia, imagens que são particularmente familiares a todos os públicos, usando como modelos os jovens, e não tão jovens, utentes da Casa. Suzana dá-nos um exemplo, mostrando no computador o famoso quadro de Johannes Vermeer A  Rapariga com Brinco de Pérola. De seguida, exibe uma fotografia com a modelo, uma aluna, utente da instituição, reproduzindo a bela pintura, e questiona-nos: “Não é bonita? Consegue perceber que se trata de uma mulher com deficiência cognitiva?”

O objetivo desta exposição será, precisamente, mostrar a todos como “estas pessoas são especiais, que esta é a sua outra cara” e ao mesmo tempo mexer com a confiança dessas mesmas “pessoas com p grande” que, ao se verem expostas nestas fotografias, “vão ver subir a autoestima”. Por outro lado, um momento público desta dimensão proporcionará uma motivação suplementar para que muitas das famílias venham de novo ao encontro dos seus. Muitos dos alunos da Casa estão em internato (são 25 utentes do sexo feminino em Lar) e pouco ou nenhum contacto têm com a família.

Na despedida, a diretora técnica da Casa de São Vicente, Cristina Gomes, deixa-nos um desejo: “Queremos estar cada vez mais incluídos na cidade, mas a cidade tem de nos incluir a nós. Temos muitas ideias para partilhar”. Esta exposição é, seguramente, uma delas.

“Sítio dividido em zonas com letras do alfabeto”

Seguimos agora para oriente, para a zona de apogeu da Marvila Velha, onde tudo parece estar a mudar a um ritmo alucinante. Com o rio bem à vista, entramos no complexo One Your First Stop, um antigo entreposto ferroviário, hoje ocupado por indústrias criativas e projetos de coworking. Ali encontramos o encenador e performer Tiago Vieira, um marvilense de gema, e a encenadora e membro da Companhia Cepa Torta, Patrícia Carreira, acompanhada por jovens do seu projeto de teatro comunitário com alunos das escolas da freguesia e com a comunidade dos bairros de Marvila Velha, Lóios e PRODAC. Ambos vão apresentar duas criações n’ Os Dias de Marvila.

O encenador Tiago Vieira com jovens do projeto de teatro comunitário ‘O Mapa do Mundo Reinventado’

Nome já firmado no teatro português, Tiago é cofundador da Latoaria, na Mouraria. “Não enceno e crio da maneira como o faço se não tivesse nascido e crescido em Chelas”, esclarece, antes de nos explicar o conceito de A Pátria é a minha Revolução, espetáculo que prepara com um elenco de atores e bailarinos profissionais, e que será apresentado num dos armazéns do complexo onde estamos. Para aquilo que designa como “concerto apocalíptico”, Tiago vai buscar autores que muito o marcaram, como Ortega Y Gasset, Nietzsche, Genet, Rimbaud, mas também Sam The Kid, o rapper que, tal como ele, nasceu e cresceu no bairro e cantou Chelas, “sítio dividido em zonas com letras do alfabeto”. “É uma homenagem às pessoas que me marcaram em Chelas, uma interpretação poética das memórias que guardo, daquele tédio quase tchekhoviano dos dias quentes trazendo aromas das terras distantes de África. Porque em Chelas, sobretudo na Zona J ainda se respiram ambientes profundamente africanos. E não concebo as minhas memórias de bairro sem eles.”

Uma das jovens que participa no projeto da Cepa Torta O Mapa do Mundo Reinventado, Lara, intervém: “Mas, não são só africanos! A minha família veio do norte para cá. Viveu numa barraca, tinha uma horta. Depois houve o realojamento. E quem não é daqui continua a ver-nos com suspeição. É claro que há pobreza, mas acho que Chelas tem mais fama que proveito quando se fala em coisas más.”

E hoje? O que é que mudou? Nenhum dos jovens presentes está bem certo, mas Tiago remata: “Haver uma biblioteca em Chelas é qualquer coisa de incrível…“

Rui Catalão e intérpretes de ‘O Último Slow’ no Salão de Festas de Vale Fundão

O último slow em Marvila

O nosso próximo destino é o Salão de Festas do Vale Fundão ao encontro de Rui Catalão, que ensaia O Último Slow, espetáculo que terá duas apresentações n’Os Dias de Marvila (embora uma delas no Torreão Poente do Terreiro do Paço). Este é um regresso a este território, depois de há cerca de dois anos, a convite do Teatro Municipal Maria Matos, ter criado Assembleia, um espetáculo protagonizado por marvilenses oriundos de dois bairros distintos: Alfinetes e Armador.

“Para este projeto comecei por fazer uma audição na Biblioteca de Marvila em que aparecerem perto de 70 pessoas. Infelizmente, nenhuma, à exceção do David, que está connosco, se comprometeu.”

Será o David, um jovem do bairro com algumas limitações cognitivas, que funcionará como pedra de toque nesta nova criação. “É um espetáculo de teatro dançado, feito de movimento dramático sem palavra”, a partir de slows, “essa moda em perda”, essas canções que fazem parte do crescimento de cada um de nós.

Em cena, Rui junta performers profissionais e amadores (alguns provenientes de projetos criativos que desenvolveu no Vale da Amoreira), e lamenta que em Marvila “ainda seja difícil convocar a comunidade”. Em causa, o encenador aponta o muito que há ainda a fazer no terreno para que as pessoas se mobilizem. Aspeto que é, aliás, referido por muitas das pessoas com quem conversámos, desde habitantes na zona a outros agentes, e que percebem que só a persistência dos projetos de âmbito social e cultural podem acabar definitivamente com “a cidade oculta” que um dia se chamou Chelas.

O futuro radioso são as crianças

Poderia ser uma espécie de epílogo desta viagem mas, acreditamos, tratar-se do princípio de tudo.

Com o dia a acabar, regressamos à Biblioteca para descobrir mais um projeto que tem, naquele espaço, uma casa. Trata-se do Coro Infantil da Biblioteca de Marvila, e agora que o dia de aulas acabou, algumas das jovens estrelas podem posar para a fotografia.

Conduzido pela maestrina Catarina Braga, o Coro, também ele apadrinhado na sua génese pelo Teatro Municipal Maria Matos, prepara-se para mais um ano de trabalho, ainda sem certezas quanto ao número de crianças que o vão integrar. “No ano passado tivemos 11, 12 crianças a vir regularmente aos ensaios”, precisa Catarina. E, curiosamente, são provenientes de toda a freguesia, pelo que constituem um grupo bastante heterogéneo em termos de estrato social. Apesar de muito desafiante, é uma pequena conquista, e como comenta uma mãe, trata-se de “um projeto que está a expor muito positivamente o bairro, demonstrando que por aqui estão coisas a acontecer.”

Um exemplo concreto de inclusão foi a participação de algumas crianças de etnia cigana. “Não sendo regulares, conseguimos que elas viessem, e esperamos que não desistam. Seria muito importante para elas”, destaca a maestrina.

As crianças do Coro da Biblioteca de Marvila com a maestrina Catarina Braga

Agora é tempo de colocar vozes ao alto e começar a preparar a apresentação prevista para Os Dias de Marvila. E tivemos uma pequena amostra: do Cancioneiro da Bicharada de Carlos Gomes, as crianças presentes interpretaram O Grilo, a partir de poema de Alexandre O’Neill, com direito a coreografia.

No futuro, Catarina quer colocar o Coro a cantar Marvila e, para tal, encetou já uma busca pelo repertório da freguesia, rico sobretudo em marchas.

O sol já se põe e é tempo de deixar este lado da cidade. Rumo ao apeadeiro, ainda se ouvem a vozes eternamente esperançosas das crianças. Afinal, é com elas que se começa a construir o futuro da cidade. E não deixa de nos ocorrer as palavras que ouvimos do rapper Rato Chinês há algumas horas – “No meu tempo, acreditávamos que só havia dois caminhos para sair do bairro: pelo futebol ou pela luta!”

Talvez, agora ou num tempo muito próximo, se abram outros caminhos.