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Daqui ninguém sai vivo
'O Deus da Carnificina' no Teatro da Trindade
Um incidente com dois jovens num jardim da cidade, dois casais burgueses e civilizados quanto baste e um clima de tensão latente e crescente. São estes os ingredientes da aclamada peça de Yasmina Reza, O Deus da Carnificina, que Diogo Infante dirige e interpreta, ao lado de Rita Salema, Patrícia Tavares e Jorge Mourato, no Teatro da Trindade, a partir de 1 de março.
Ao abrir as portas do seu apartamento a Alberto (Diogo Infante) e Bernardete (Rita Salema), o casal Verónica (Patrícia Tavares) e Miguel (Jorge Mourato) está apostado em demonstrar toda a civilidade, depois do filho dos primeiros ter partido dois dentes ao deles numa discussão entre crianças. Na sala, frente a frente, Verónica vai lendo a declaração amigável a ser apresentada ao seguro, porém, as primeiras altercações entre os casais começam quando alguns termos do texto incomodam Bernardete. A partir daí, a situação descontrola-se e, em crescendo, as ofensas extravasam o razoável. A outrora pacata sala de estar transforma-se, assim, numa arena de onde, provavelmente, ninguém sairá vivo.
Nome incontornável do teatro e das letras francesas, Yasmina Reza atingiu a notoriedade nos anos de 1990, sobretudo devido ao estrondoso sucesso mundial da peça Arte (encenada pela primeira vez em Portugal por António Feio, em 1998). Há precisamente uma década, a dramaturga estrearia, em Paris, uma das mais primorosas dissecações dos valores burgueses na comédia negra Le Dieu du Carnage, numa produção que contou com Isabelle Huppert no elenco, e que valeria à autora o seu segundo Tony Award. A aclamação generalizada de público e crítica levaria a peça para o cinema – num filme de Roman Polansky, com Kate Winslet, Jodie Foster, John C. Rilley e Christopher Waltz – e por cá, João Lourenço juntava-se aos muitos encenadores que, da Europa aos Estados Unidos, não conseguiam resistir ao fogo cruzado entre dois casais com vidas aparentemente confortáveis, mas munidos de um rol de intensas frustrações prestes a tornarem-se explosivas.
“Considero-o um texto brilhante que importa dar a descobrir a toda uma geração que não teve hipótese de o ver representado em palco”, aponta o encenador Diogo Infante, sublinhando ainda o orgulho de contar, nesta coprodução entre o Teatro da Trindade/INATEL e a Plano 6, com o elenco certo para o representar. “Esta peça é como um jogo em que nós, enquanto atores, vamos navegando em águas agridoces, oscilando constantemente entre o drama e a comédia, e surpreendendo constantemente o público, até porque tudo decorre com enorme imprevisibilidade.”
Para lá do brilhantismo do texto rápido, cortante e vertiginoso, as pouco simpáticas personagens são facilmente “reconhecíveis na vida real”, o que faz de O Deus da Carnificina “uma peça de grande atualidade”. “O Alberto e a Bernardete são o casal tipicamente burguês que, tendo ou não dinheiro, usam e abusam da aparência”, refere o encenador. Ele é um advogado inescrupuloso, que passa todo o tempo agarrado ao telemóvel; ela é uma mulher carregada de ambição social e com muito pouca tolerância ao álcool. Do outro lado, estão Verónica, estudiosa de arte africana e escritora errante, munida de “muita preocupação social”, e Miguel, dono de uma pequena empresa de venda de ferragens. “Diria que eles são aquilo que apelidamos de ‘esquerda caviar’, sobretudo ela. Até porque, se alguma personagem demonstra alguma normalidade é o Miguel”, acrescenta. Afinal é o único que se considera “um grunho” e desafia todos os outros a deixarem “cair as máscaras”. Como se, aos nossos olhos, elas já não tivessem caído.