Io Appolloni

"Dentro de mim tenho duas pátrias, duas culturas: a portuguesa e a italiana"

Io Appolloni

Se há mulheres que marcaram uma época no teatro português, Io Appolloni foi, indiscutivelmente, uma delas. A atriz italiana, que Portugal conquistou nos idos da década de 60 do século passado, está agora de regresso aos palcos de Lisboa com o recital Poemas na Minha Vida. E se este espetáculo era o principal tema da entrevista, depressa uma vida tão rica se intrometeu no alinhamento. Até porque Dario Fo morrera dias antes deste encontro…

Como soube da morte de Dario Fo?

Estava a ensaiar em Almada [Io terá uma participação especial no novo espetáculo da Companhia de Teatro de Almada, Noite da Liberdade, de Ödön von Horváth] e dão-me a notícia como se me estivessem a convidar para um café. Fiquei destroçada, porque convivi com ele e com a Franca [Rame], dormi em casa deles… Admirava muito a Franca, uma mulher fabulosa. Creio que ele foi esse grande autor porque tinha a seu lado uma mulher como ela.

Refiro Dario Fo porque, provavelmente, o que muitos desconhecem é que foi a Io que o deu a conhecer aos portugueses…

Em 1975, com O Funeral do Patrão. Pouco antes, tinha estado com o meu companheiro, o Eduardo Geada, em Roma e em Milão, e comprei grande parte da obra publicada do Dario. Quando voltámos, decidimos encenar esse texto e, imagina só, o sucesso que por esses dias a peça teve… também, com um título daqueles! [risos] O espetáculo foi filmado e transmitido pela RTP. Mais tarde, em Gubbio, na minha província natal que é Perugia, vou ao encontro dele e conto-lhe a nossa experiência em Portugal com O Funeral do Patrão. É assim que consigo Casal Aberto, peça que o Dario e a Franca ainda não haviam feito, e que eu vou estrear em Portugal em 1984. Foi tamanho o sucesso que corremos o país e ainda fizemos uma digressão por vários teatros de Lisboa.

Falemos agora do espetáculo Poemas na Minha Vida, que estreou em 2009, e que agora fará uma pequena digressão em Lisboa. Como é que o projeto nasceu?

A determinada altura da minha vida dediquei-me muito à poesia, aliás, a poesia acompanha-me desde os sete anos, altura em que comecei a decorar e a dizer poemas. A dado momento, descubro um poema de Jorge de Sena intitulado Carta a Meus Filhos Sobre Os Fuzilamentos de Goya e foi como se rebentasse uma bomba dentro de mim. Se eu me questionava como é que só aos 60 anos é que havia descoberto tal poema, venho a perceber que, de entre os meus amigos e colegas, ninguém o conhecia. Foi assim que surgiu a ideia deste espetáculo, e ao Jorge de Sena juntei o António Gedeão, o Eugénio de Andrade, o Pessoa…

E também os seus conterrâneos italianos…

Claro. E nos seus dialetos originais, com um carinho muito especial para o umbro que me derrete por dentro [risos]. Escolhi assim poemas em umbro do Ezio Velecchi, um poeta camponês que podemos estabelecer alguma comparação com o António Aleixo. Como vivi 12 anos em Roma, e aprendi o dialeto local, não podia deixar de ter um poeta romano…

Ou seja, a Io pretende esboçar uma espécie de autobiografia através das palavras dos poetas que escolheu?

Todos os poemas que estão no espetáculo têm a ver comigo. Ou não fosse eu, Io Appolloni, italiana e portuguesa. É que eu tenho duas pátrias, duas culturas dentro de mim. E sinto-me mais rica do que qualquer outra pessoa por isso mesmo. Os meus primeiros 18 anos de vida foram passados e vividos em Itália; mas estou em Portugal há 51 anos, tenho três filhos portugueses… e, oficialmente, sou portuguesa desde 1975.

Recuando no tempo, como é que uma jovem italiana formada em representação pelo Centro Sperimentale di Cinematografia de Roma vem parar ao Portugal sombrio do Estado Novo?

Chego aqui em 1965, mas não vim por vir. Por isso é preciso voltar atrás, a 1963, quando acabo o curso e sou convidada a ir ao Festival de Cinema de Veneza, onde tenho a grata alegria de filmar com Pier Paolo Pasolini [Comizi d’Amore estreou em 1964]. Simultaneamente, um produtor espanhol contrata-me para fazer um filme em Espanha. Lembro que ainda fiz uma peça de teatro em Roma e depois sigo para Espanha. As filmagens eram para durar 20 dias e arrastam-se por três meses, o que foi fascinante para uma miúda de 18 anos que se fartou de ganhar dinheiro e viver uma vida de sonho em hotel de cinco estrelas, longe do pai, da mãe, do irmão [risos]… A minha passagem por Espanha ainda foi mais valorizada porque estudei canto e flamenco…

E trabalhou com Juan Antonio Bardem, um grande nome do cinema espanhol que, para situar as atuais gerações, é o tio do conhecido ator Javier Bardem…

É verdade. Mas, o momento determinante para vir parar a Portugal foi ter sido feita uma reportagem fotográfica comigo, em Madrid, que saiu na revista Plateia. À época, eu tinha um agente e o Eduardo Damas [autor e compositor do teatro de revista] contacta-o no sentido de se fazer uma revista em Lisboa. Como uma das minhas ambições era fazer teatro em Madrid, achei que poderia ser positivo para a minha carreira ganhar experiência em Lisboa. E, em 1965, cá estou eu, uma “brasa”, uma mulher linda a dar cor a essa cidade a preto e branco como era Lisboa nessa época [risos].

O que a fez ficar por cá?

A revista teve muito sucesso e eu arrasei, sobretudo devido a um número com o Camilo [de Oliveira] onde eu ficava em bikini com um brilhante no umbigo. A plateia vinha abaixo [risos]. Mas, o que me fez ficar foi, em primeiro, uma paixão arrebatadora pelo Camilo, mas também pelas pessoas, pela sua afabilidade e… pela gastronomia. Sem me ter apercebido disso, já cá tinha raízes, e a partir do momento em que fiquei grávida do meu primeiro filho, em 1968, decidi que estava em Portugal para ficar.

Mas chegou a regressar a Madrid…

Sim, sim. Eu conto isso na minha autobiografia. Depois do sucesso que tive em Lisboa, o meu agente propôs-me uma revista em Madrid. Na altura, já estava com o Camilo e decidi fugir, de comboio… E ele foi atrás de mim! Ainda estreei a revista mas, curiosamente, durante esse curto período emagreci cinco quilos.

Pensa que podia ter feito uma carreira completamente diferente se tem resistido a essa saudade de Portugal e, também, ao amor?

A minha vida sentimental teve sempre um enorme peso e atribuo isso à educação religiosa que recebi da minha mãe, muito ligada à família e aos afetos. A época também era muito diferente e, no fundo, a minha carreira nunca foi mais importante do que ser mãe.

A atriz com Camilo de Oliveira (direitos reservados)

No início da década de 1970 estreia O Vison Voador, um espetáculo que marca indelevelmente uma época, sobretudo, graças a si…

E à minha sensualidade muito natural. Não vou ser modesta, mas eu era, de facto, uma mulher muito sensual, e nessa peça despia-me em cena, mas de um modo muito bonito e subtil. Esse espetáculo fez mais de mil representações e marcou profundamente as pessoas, tanto que, ainda hoje, muita gente se lembra.

Não houve problemas com a censura?

Não, porque naquela época a censura em Portugal era mais política do que de costumes (em Espanha, por exemplo, era bastante diferente). Aliás, recordo um problema com a censura em 1972 quando, numa revista fizemos uma piada sobre o Sá Carneiro [à época, deputado da Assembleia Nacional]. Aí, eles não tiveram contemplações e cortaram.

Mas, apesar de tudo, a Io não aparecia integralmente nua em O Vison Voador.

Só faço nu integral, em 1978, na peça feminista Guilherme e Marinela [de Viveka Melander], estreada no Cinema Satélite [o estúdio do já desaparecido Cinema/Teatro Monumental]. Foi extraordinário o sucesso que a peça teve, sobretudo, devido à minha astúcia. Passo a explicar: eu decidi chamar a atenção por aparecer nua, mas depois apresentava um espetáculo feminista ou, mais do que feminista, um espetáculo anti-machista por excelência. No Porto, tínhamos programado três representações e acabámos por fazer 60. Chegámos a gravar para a televisão, mas não a deixaram ir para o ar.

Nesses tempos a Io era já uma mulher e uma atriz de causas…

Ainda antes do 25 de Abril, depois de me separar do Camilo tive um longo relacionamento com o Eduardo Geada, à época jornalista, um intelectual que me abriu horizontes, sobretudo para as questões políticas. Como sempre fui uma mulher extremamente curiosa, assimilei tudo com uma velocidade tremenda e, quando se dá a Revolução, lá estou eu a integrar as Campanhas de Dinamização Cultural e a fazer parte, pela mão do Rogério Paulo, do Partido Comunista Português.

É uma época em que corre o país fazendo um teatro muito politizado, não é?

Sim, sim. Foram centenas de espetáculos muito militantes, sobretudo sobre a causa da mulher. Foi um período tão, tão lindo, porque todos tínhamos a vontade de ser úteis para transformar a sociedade. E o dinheiro não nos interessava nada.

Nos anos de 1990, deixamos de a ver no teatro e passamos a associá-la a um doce típico italiano, o tiramisu. O que é que aconteceu?

A última peça de sucesso que fiz foi Socorro, sou uma mulher de sucesso, uma comédia musical onde cantava, dançava, enfim… fazia tudo! Depois, vieram os anos do fim dos subsídios pontuais e estive uns dois anos sem trabalhar. Mas, um artista não consegue parar e, se por um lado desenvolvi um sentimento de amor/ódio à profissão, a minha atitude criativa lança-me na doçaria. No início dos anos 90, decido dar a conhecer o meu tiramisu e, como tinha uma cozinha grande, começo a fazê-lo para uma série de restaurantes. A dada altura vou a um programa do Herman José, o Parabéns, e faço o tiramisu em direto. O impacto foi tal que nunca mais parei, e fartei-me de ganhar dinheiro. Costumo dizer que aquilo que tenho hoje devo ao tiramisu, não ao teatro.

A doçaria substituiu o teatro?

De certo modo, sim. Apesar de me fazer falta o teatro, percebi que, ao me dedicar à culinária e mais especificamente à doçaria, estava a servir o público e a transmitir emoções. Isso apaziguou-me… Depois, houve mais do que o tiramisu, e até um doce de manjericão eu criei… [risos]

Quanto tempo esteve sem pisar o palco?

Cerca de 20 anos. Só voltei em 2009, precisamente com os Poemas na Minha Vida.

Vê muito teatro?

Sim, vou muito ao teatro. E quando é mau, vou lá e insulto…

Como um dever?

Não é um dever. É uma necessidade física e psíquica. Ainda há uns dias vi uma peça com uma grande amiga e, no final, fui lá dizer-lhe: “como é que tu te meteste nesta merda?”

De uma penada, como é que poderia resumir o seu percurso?

Diria que a minha vida se resume em quatro etapas. Fui uma sex symbol do teatro comercial em Portugal numa primeira; pouco antes da Revolução de Abril, cresci, amadureci, tomei consciência política e dediquei-me a um teatro de intervenção, assumindo-me como uma voz de defesa da condição feminina e das mulheres; nos anos 90, dediquei-me à doçaria, essa outra paixão artística. Hoje, vivo a etapa da poesia, e o espetáculo que agora apresento em Lisboa demonstra isso mesmo.