Miguel Seabra

Encena e protagoniza "A Lição" de Ionesco

Miguel Seabra

A partir de 13 de julho, poucos dias após a estreia no Festival de Almada a 8 de julho, o Teatro Meridional leva à cena A Lição, clássico do grande mestre de origem romena Eugène Ionesco. Encenada e protagonizada por Miguel Seabra, a peça marca o regresso da companhia por si dirigida com Natália Luiza aos grandes textos da dramaturgia mundial e, mais precisamente, ao denominado teatro do absurdo, uma década depois de Waiting for Godot, de Samuel Beckett.

Será urgente, hoje, recuperar um autor como Ionesco e um género (o teatro do absurdo) que marcou tanto o teatro do pós-guerra?

É sempre urgente sentir o prazer de trabalhar um clássico. Em qualquer tempo, num grande texto como é A Lição, podemos encontrar respostas às perguntas que lhe fazemos. O teatro do absurdo surge nas décadas de 40 e 50, após a Segunda Guerra Mundial, quando parecia impensável tudo o que tinha acontecido. A vida que se seguiu tornou-se uma espécie de espaço vazio, sem sentido, e como o teatro reage à sociedade, e é por norma nos tempos de crise que a criatividade floresce (diria mesmo, como forma de sobrevivência) justifica-se a importância que Ionesco ou Beckett, sendo autores tão diferentes, acabaram por ter na dramaturgia mundial.

Tendo trabalhado Beckett e agora, pela primeira vez, Ionesco, que diferenças apontaria?

No Meridional já tínhamos, de facto, feito Beckett [Endgame, com dois elencos em 2004 e 2005, e Waiting for Godot, em 2006], mas nunca Ionesco. São autores diferentes porque Ionesco integra a sua teatralidade mais no insólito do que no absurdo. Acima de tudo, encontram-se significativas diferenças no ritmo da palavra e na lógica descritiva e cognitiva do texto.

É possível reconhecer alguma lógica neste texto que esteja marcadamente inscrita na época em que a peça foi escrita (1951)?

Num texto como A Lição é muito interessante o modo como se percebe o poder que a rádio enquanto arma de propaganda fortíssima durante a guerra, teve na moldação das mentalidades, e isso parece estar muito presente na peça, precisamente na figura do Professor, um homem que detém a força e o poder da palavra.

Isso leva-nos ao enredo da peça. Quem são afinal o Professor e a Aluna que estão no centro de A Lição?

Esta é a história de uma jovem ambiciosa, filha de pais abastados, que, para completar o doutoramento, recorre aos serviços de um professor reformado, homem genial e sábio. Porém, ele é como uma aranha, diria mesmo que é um agente fascista, alguém que, no exercício do seu dom e poder, consegue manipular e esvaziar o outro…

Outro elemento absolutamente determinante na peça é a criada…

A criada é o elemento que faz a dupla perversa com o professor. Aparentemente, ela é quem põe em causa a autoridade, mas no final entenderemos isso muito melhor.

Apesar do lado sombrio, A Lição é uma comédia sobre a incomunicabilidade, mas também, citando-o, “sobre o conhecimento, o sexo e a dominação ideológica”. No fundo, é a peça ideal para falar sobre o poder?

Todos esses temas estão muito presentes no texto, tornando-o inevitavelmente político. No essencial é uma peça sobre o abuso da autoridade e a manipulação, mas também sobre a ambição, o medo e o amor. Diria, em resumo, que é uma parábola sobre o poder, sobre os temas pedagógicos, sobre a educação…

O Professor “é como uma aranha, um agente fascista que, no exercício do seu poder, manipula e esvazia o outro.” ©Joao Tuna

 

Será certamente impossível ver A Lição sem refletir sobre os nossos dias, mais concretamente, sobre a educação e a escola de hoje…

Não será difícil fazê-lo certamente. Se pensarmos na escola de hoje, em Portugal, e na larga percentagem de instituições e de educadores que ensinam por cartola, colocando todos os alunos no mesmo saco, obrigando-os a decorar, não a pensar e a entender, encontraremos na peça muita matéria para refletir. Este professor é uma máquina trituradora, que tolhe e aprisiona, que se torna perverso e lascivo. No fundo, não muito distante daquilo que é o nosso sistema educativo.

Desde O Senhor Ibrahim e as Flores do Corão (2012) que não protagonizava um espetáculo. A par do encenador, o ator está de volta?

E com ele a harmonia singular de ser o único ator do mundo careca, coxo, maneta e do Belenenses [risos]. Não deixa de ser curioso que, em 25 anos de atividade profissional, esta é a sétima vez que venho a palco. Apesar disso, na essência, eu sou um ator que também encena, que também ensina, que também desenha luz. Adoro partilhar com os outros aquilo que sei, adoro dirigir para aprender com outros atores, adoro fazer a luz (apesar de em A Lição ter convidado o Nuno Meira, um profissional que muito admiro, a dar-me a honra de o fazer).

E quando lhe perguntam qual é a sua profissão, responde ator…

Que é como me sinto. Eu preciso do palco para viver, e apercebi-me disso com o passar dos anos. Essencialmente, ser ator faz com que a máquina funcione: a máquina da memória, a máquina da criatividade, do risco e das ideias, a máquina da experimentação… Se deixar de o fazer, temo que a máquina desligue.

Aqui, encena-se a si mesmo, e às atrizes Elsa Galvão e Sara Barros Leitão. Como é que o Miguel Seabra encenador dirige o Miguel Seabra ator?

Confesso que lido muito bem com a parte criativa e com a parte ativa, logo não me assusto com o estar dentro e o estar fora em simultâneo. O meu método de trabalho estrutura-se num lado muito analítico e cognitivo, onde assento, e depois no reconhecimento dos atores como seres criativos. Neste espetáculo conto com uma atriz como a Sara, que é talentosíssima e com grande margem de progressão, e a Elsa, muito experiente, com grande conhecimento e versatilidade. São, como é habitual nas pessoas com quem trabalho, seres humanos do ‘caraças’.