Joana Craveiro

"O meu teatro é um nicho de resistência"

Joana Craveiro

Na Fábrica do Braço de Prata, Estevão Antunes e Simon Frankel interpretam vivências partilhadas por camionistas a Joana Craveiro, e à sua equipa do Teatro do Vestido, que ao longo de meses recolheram depoimentos junto desses profissionais do volante. Viajantes Solitários é um mural de experiências de vida que dá sequência ao teatro antropológico da criadora do muito aclamado (e premiado) Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas

Muito recentemente, a Joana andou por casas da Baixa do Porto com Espólios. Agora, a proposta que nos traz é a de partilhar, num tom intimista, histórias de camionistas a bordo de um TIR. O seu teatro não precisa de palco?

O meu teatro vive do trabalho de campo e isso parece determinar o “palco”. Na verdade, desde a génese do Teatro do Vestido, e porque nunca tivemos uma sala, sentimos poder fazer teatro em qualquer lugar, desde que seja possível estabelecer uma relação que nos inspire. No caso do Espólios, por exemplo, optámos por seis casas particulares. Os Viajantes Solitários surge de uma encomenda do Teatro Viriato que, devido a uma parceria com uma empresa de camionagem, me desafiou a criar uma peça de teatro com histórias de camionistas. A condição para aceitar foi poder fazer o espetáculo dentro de um camião. Com isto não quero dizer que recuse o palco (uso-o n’ O Museu Vivo…, por exemplo), mas não quero quebrar a relação intima que pretendo estabelecer com o público e que o lugar, de certo modo, pode determinar.

A memória da realidade, entendida como “verdade”, determina as suas criações?

O conteúdo é determinante, e o espaço define, na maior parte das vezes esse mesmo conteúdo. Vejo o teatro como uma experiência ou, se quisermos, como um “acontecimento”. Acredito nisso, nesse lado comunal que me agrada. Ir ao teatro não tem de ser uma experiência banal, pelo contrário, pode ser mesmo extraordinária. Essa conceção dá-me a convicção profunda de que qualquer ser humano pode dar boa matéria teatral ou artística. O meu teatro é de resistência, é um teatro das pequenas coisas que são tão grandes por se basearem nas pessoas. No caso dos Viajantes Solitários, partimos de uma profissão e contruímos uma dramaturgia com base em experiências pessoais que não nos são tão próximas, ou que estão mesmo pouco ou nada documentadas.

O que é que mais lhe interessou nessas experiências?

As histórias dos camionistas que entrevistámos surpreenderam-me, precisamente porque, ao contrário de depoimentos que recolhi para outros projetos, é um mundo pouco documentado. Foi muito interessante deslocar-me diariamente para as entrevistas, chegar mesmo a viajar até Espanha a bordo de um camião TIR e ouvir todas aquelas histórias de solidão, de distância da família, ou de outras tantas coisas, muitas delas tão dramáticas…

É uma vida dura?

É um mundo rico, e muito teatral, no sentido da comédia e do drama. As entrevistas que eu e a minha equipa conduzimos quiseram passar do superficial, logo aprofundar e ir mais além. Os motoristas são muito solitários, mas têm os seus momentos de convívio durante as viagens onde, segundo eles, se fala de patrões, de mulheres, de camiões… [risos] Depois há um lado mais pessoal, como as memórias de guerra vividas por muitos dos ‘nossos’ camionistas.

Viajantes Solitários estreou no ano passado no Teatro Viriato, fez tournée nacional e chega a Lisboa, em coprodução com o Teatro Nacional D. Maria II. Mas o local do “acontecimento” é a Fábrica do Braço de Prata. Porquê?

A questão logística foi determinante, ou não tivéssemos que estacionar um camião TIR… Se por um lado gostaríamos de estar junto do D. Maria II, talvez mesmo na Praça do Rossio, o peso deste “dispositivo cénico” obrigou-nos a procurar um outro local. E assim surgiu a Fábrica do Braço de Prata, em Xabregas, com um envolvimento urbano muito proletário que nos agradou.

Para além da formação teatral, é licenciada em Antropologia. Por sinal, o seu teatro é cada vez mais antropológico…

Nós, no Teatro do Vestido, somos, de facto, antropólogos do teatro. Trabalhamos com experiências vividas, fazemos trabalho de campo, e procuramos encontrar o lado mais fundo da memória. A minha formação em Antropologia surgiu paralelamente à de Teatro: fiz os dois cursos em simultâneo, até porque, à época, os meus pais não admitiriam outra coisa – seguir somente Teatro não era, propriamente, algo que desejassem. À medida que fui estudando e trabalhando, percebi que a etnografia e a antropologia tinham tudo a ver com o Teatro, e digo isto porque quando nos dedicamos aos estudos da performance descobrimos que os autores referenciais veem todos da Antropologia. Por outro lado, o olhar desta ciência social sobre o trabalho de campo, sobre a memória da pequena história, da pequena memória, são essenciais para o meu teatro…

E isso tornou-o singular…

Quando começámos, em 2001, ninguém trabalhava a autobiografia e a observação da realidade. Lembro que construímos espetáculos com base em chegadas a estações de comboios, e lá íamos nós para o terreno ver gente a chegar… Agora percebo o meu percurso coerente no teatro, com base no trabalho científico da Antropologia. Já agradeci mesmo aos meus pais terem-me feito tirar os dois cursos em simultâneo [risos].

Em julho, em resultado de uma votação do público na passada edição do Festival de Almada, O Museu Vivo… regressa. Surpreendeu-a ter sido eleito como “espetáculo de honra” do mais importante festival de teatro do país?

Em Almada houve uma comunhão única com o público. Foi extraordinário porque, embora soubéssemos estar perante um público muito militante, cultural e politicamente, foi emocionante perceber a sua identificação com o espetáculo. Mal posso esperar por repetir. E é um enorme orgulho ter sido escolhida por um público tão envolvido com o teatro e, no caso, com o seu Festival.